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RECONHECER O "PARADIGMA PESSOAL" DO PACIENTE

No documento TERAPIA COGNITIVA DA DEPRESSÃO Beck (páginas 61-63)

O terapeuta deve ter em mente vários princípios específicos durante o tratamento. A visão pessoal de mundo do paciente e suas ideias e crenças negativas lhe parecem razoáveis e plausíveis, ainda que se afigurem exageradas para o terapeuta. O paciente acredita seriamente e de modo consistente, em suas convicções de que é carente, defeituoso, inútil, indigno de amor etc. Na realidade, essa consistência interna é frequentemente mantida apesar de notáveis e repetidas provas externas contraditórias àquelas crenças. As crenças geralmente se organizam num sistema semelhante ao que Kuhn (1962) descreveu como "paradigma" científico. As observações e interpretações da realidade feitas pelo paciente são moldadas por esse quadro conceitual. Como no caso de mudança das crenças científicas, o paradigma pessoal pode ser abalado e modificado quando o indivíduo está preparado para reconhecer uma anomalia não explicável pelo paradigma, ou perceber evidências que mostrem que ele não pode ser confirmado.

De modo geral, entretanto, o paciente não dá atenção ao significado dos factos que poderiam refutar sua visão depressiva, ou não o assimila. Aceitando-se as ideias do paciente como subjectivamente válidas para ele em seu estágio actual, essas ideias de fato passam a ter validade objectiva, problema que poderá ser explorado mais adiante. O paciente geralmente apresenta suas ideias negativas ao início do tratamento. À medida que o terapeuta começa a elicitar as razões pelas quais tem essas ideias, descobrem-se usualmente duas fontes de informações. Primeiramente, o paciente expõe suas visões acerca de factos específicos do passado, que acredita consubstanciarem suas ideias negativas. Em segundo lugar, pode interpretar um ou mais factos do presente como provas que apoiam tais ideias. A terapia focaliza predominantemente os acontecimentos actuais, visto que o paciente pode recolher dados recentes sobre os factos e anotar suas interpretações dos acontecimentos correntes (suas cognições). As falsas interpretações de acontecimentos presentes são mais facilmente corrigíveis, uma vez que as comprovações empíricas podem ser extraídas de observações e rememorações mais recentes e, por isso mesmo, mais confiáveis que na correcção cognitiva de acontecimentos do passado. Entretanto, alguns pacientes parecem impermeáveis a informações novas, que possam contradizer suas pré-conceituações.

O exemplo que se segue ilustra como uma paciente inicia o tratamento com um autoconceito negativo firmemente estabelecido, que se reflecte em suas interpretações de acontecimentos tanto do passado como do presente. Algumas evidências que refutavam essa visão negativa foram apresentadas na primeira sessão do tratamento, A paciente descobriu razões para invalidar essas provas. Depois de várias sessões,

começou a duvidar dessa autopercepção e a trazer voluntariamente novas evidências que contradiziam sua auto-imagem negativa. Uma testagem subsequente dessa visão (por exemplo, o comparecimento a reuniões sociais) forneceu dados adicionais, que a paciente utilizou para construir uma auto-imagem mais realista.

Uma mãe deprimida de cinco filhos descreveu-se como incompetente e obtusa. Acreditava que as seguintes provas apoiavam fortemente sua convicção de ser pouco inteligente: seu medo de prestar um exame final, que tinha resultado em sua impossibilidade de colar grau na universidade; o facto de não ter uma carreira profissional como a de seu marido, que era médico; e problemas recentes na escola com dois de seus filhos adolescentes (o que a levava a encarar-se como uma mãe incompetente).

Na primeira sessão do tratamento, o terapeuta tentou contrariar prematuramente sua autopercepção negativa. Informou à paciente que seu quociente de inteligência, baseado em testes psicológicos recentes, era 135. Ela imediatamente apresentou várias razões que invalidavam o resultado do teste como sendo exageradamente alto.

Várias sessões mais tarde, voluntariamente relatou diversos aspectos de sua vida que não mencionara anteriormente: tinha sido uma estudante de nível A em todo o curso médio; era modelo registrada; seu marido a considerava mais inteligente que ele; tinha tido aulas de vôo, tinha experiência como actriz e modelo, era fotógrafa amadora e, em várias reuniões sociais recentes, tinha ouvido dizer que outras pessoas (reitores de universidades, médicos etc.) a consideravam atraente e muito interessante, e não insípida e maçante como presumira.

Assim, embora a autoconceituação dessa paciente como sendo pouco inteligente não tivesse qualquer validade externa, o conceito tinha coerência interna significativa (para a paciente) até bem depois do início do tratamento; a "validade" interna de suas crenças se mostrava coerente com suas outras ideias sobre si mesma, suas observações e suas recordações mais vivas. Inicialmente, o terapeuta procurou compreender a base para essas conceituações falsas aparentes; acatou a crença da paciente em sua própria visão e não tentou rejeitar ou descartar suas ideias como tolas. (De facto, um ataque a seu paradigma pessoal provavelmente teria resultado em confusão e numa possível ruptura nos métodos da paciente para organizar e interpretar a realidade). A validade objectiva de suas crenças negativistas foi testada a partir da reunião de dados adicionais de sua história passada, anteriormente não lembrados e relatados, e pela "realização de um experimento" para reunir informações sobre sua auto-avaliação errónea.

Se as informações contraditórias forem apresentadas cedo demais (por exemplo, relato prematuro do quociente de inteligência no caso citado), o paciente pode descartar ou distorcer esses dados. O terapeuta se descobrirá desempenhando o papel do adversário, e não o do colaborador ou orientador. Ao que parece, somente após sentirem que tiveram a oportunidade de "expor seu caso" e que foram compreendidos é que os pacientes estarão prontos a considerar dados contraditórios a sua visão e a testar a validade externa de suas crenças.

No documento TERAPIA COGNITIVA DA DEPRESSÃO Beck (páginas 61-63)