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4 "Normalidade" e padronização

5. Édipo e "normalidade"

As reflexões precedentes levam-nos inevitavelmente a colocar uma ques- tão bastante embaraçosa, a qual arriscamo-nos a talvez nos acharmos incapazes de responder sem apelar, conscientemente ou não, a jufzos de valores ou opções ideais.

Se tomarmos como hipótese de trabalho o risco de definir a "normalida-

de" como uma adaptação pelo menos bastante perceptível aos dados estruturais internos estáveis e exteriores móveis, somos levados a considerar como "nor- mais" os comportamentos mais ou menos originais de todas as estruturas, neurótica ou mesmo psicótica, não descompensadas. Ora, se aceitamos a "nor- malidade" de estruturas psicóticas bem adaptadas, guardaremos ainda a possi- bilidade de recusar o rótulo de "normalidade" a todo este grupo de organiza- ções antidepressivas, anacliticas e essencialmente narcisistas, cuja fraude nas defesas acabamos de descrever como "pseudonormalidade", "falso self", "per- sonalidades como se" e anaclíticas diversas, que não conseguem viver bem fora do grupo? Agora qualquer episódio mórbido, uma organização do tipo "estado limite" seria menos "normal" do que uma estrutura psicótica? Menos sólida, o fato parece certo par a os clfnicos, mas menos "normal"?

Os resultados de pesquisas das mais honestas levam a pensar que existem, grosso modo, nas populações de nossas cidades. um terço de estruturas neu- róticas, um terço de estruturas psicóticas, e um terço de organizações mais ou menos anaclíticas (cf.C. CHILAND, 1971 a, p. 180-183).

Outras estimativas concordam na cifra de psicóticos. mas variam para me-

nos na cifra de neuróticos (em torno de 20% apenas), e para mais na cifra das organizações intermediárias (em torno de 50%). Seríamos, pois, levados a eliminar do campo da "normalidade" certa- mente mais de um terço de nossos contemporâneos? E mais: dado que, fora mesmo de qualquer opção sócio-política clara e deliberada, as gerações por vir conhecerão, em função da inevitável evolução sócio-econômica "grupal",

à

ima-

uo tioutz,

menos riscos de evolução psicótica, porém mais dificuldades no

a-esse

a UI'Tl Édipo organizador, veremos sem dúvida aumentar a cada ano, a ""=:"Ce"'tagem de arranj os anac líticos em uma população média. Em conseqüên -

a.

,averia cada vez menos pessoas "norma1s"?

O aspecto irônico da questão contudo nada recobre de leviano : em reali-

::oade,

é

toda a função "normativa" da orgamzaçáo pelo t:dipo que se encontra posta em questão, e não simplesmente, por certo, o conhecimento ou reco nhe- cimento de uma vivência edipiana no inconsciente mas a estruturaçáo da perso- l"'a lidade por ocasião da passagem pela posição triangular com um objeto e um ri- val sexuais plenamente investidos como tais, e as

irreversíveis conseqüências estruturais daí decorrentes .

A ssim definida em seu rigor, será que a organização pelo Édipo é indis- pensável? Pode-se encorajar, em plena consciênc ia e clareza, sistemas educati- vos, polít icos, econômicos, sociais, até filosófic os,que certamente limitam os ris- cos de psicotizaç ão prec oce, mas tornam aleatório o acesso a um estatuto edi- piano autêntico?

Será que a organização pelo Édipo se mostra necessária para viver feliz?

O dilema parece insolúvel: será que podemos contentar-nos co m um "bem" para o maior número, estabelecido a partir de um mínimo múltiplo co- mum situado abaixo das possibilidades de muitos, ou será preciso,ao contrário, tender para um

"melhor", ficando perfeitamente conscie ntes de que (como no ditado) o "melhor" pode ser inimigo do "bem" e reservado a

uns poucos, os únicos que saberão e poderão atingi-lo, enquanto se sacrificarão os mais mo- destos no plano da organização psíquica de base7

Apenas levantei a questão em termos muito pragmáticos, contudo dema - siado severos par'a serem propostos às pressões mal defi nidas das paixões pú- blicas, e eis que, sob uma forma aparentemente teórica, desenvolve-se agora um feroz movimento de massas que corre ao assalto da fortaleza edipiana, fan- tasi ada (tal como a imagem negativamente idealizada da Bastilha em 1789) co- mo repleta de tesouros secretos inestimáveis do Poder, inumeráveis vítimas da Injustiça, e os mais ardentes defensores do Capitalismo (aqui analft1co).

Seria por demasiado fácil declarar , sem trazer a demonstração ,que o "an- ti-édipo", depois da "antipsiquiatria", limita -se, como novidade essencial, ao seu modo muito violento de apresentar a hábil mistura, por um lado, de críticas jus- tifica das já muito antigas e, por outro, de erros científicos não menos antigos, mas trazidos agora para o plano sócio-político, logo mais difícil de denunciar pelos não-especialistas.

Procurarei situa r-me em outro nível e permanecer fixado ao domínio es- tr-to deste estudo,considerando as reflex ões que sugerem,diante do conceito de "normalidade", as posições de G. DELEUZE e F. GUATTARI (1972) em seu Anti- Eápo.

É evident e que aqueles dentre os psicanalistas que pretendiam ser os f r eu- c .anos mais fiéis há muito limitaram-se ao estudo e tratame nto dos "neuróti-

!DS • w'as talv ez também descrevessem ou tratassem sob este vocábulo, por ve- zes be'TI outra coisa do que estruturas autenticamente neuróticas? Entretanto,

parece mais incômodo ainda pensar que a ortodoxia analítica muitas vezes con- siderava como único padrão-ouro sólido de "normalidade " o "capital-edipiano" conseg uido pelo sujeito. Manipular habilmente o Édipo tornava -se, jun to ao su - jeito e junto ao ana lista, o equivalente a uma boa operação na bolsa de valores. Os valores sãos e seguros eram apenas edipianos.

Entretanto os possuidores do saber e do poder genital-edipiano não ig- noravam as dificuldades das organizações mentais mais modestas, mas sen- tiam-se menos armados ou menos motivados para aí levar remédio, na medida em que os "normais" (os "recuperáveis", em suma) para eles eram contados apenas entre os edipianos ("de sangue" ou arrependidos).

As reações diante de tais abusos (e tal falta de prudência) não deveriam

tardar: uma primeira leva de contestadores contentou-se em tir ar proveito das contribuições sócio -culturais que facilit avam a imitação; estes foram os "novos- ricos" de um pseudo-estatuto genital, aqueles que simplesmente vestiram - se à moda edipiana, os

anaclíticos do "como se"... Os aristocratas do Édipo nem sempre far ej aram a armadilha, o casamento desigual. A falsa genitalização edi- piana mui comum ente era vivenciada apenas como uma homenagem estabele - cida sob re a base de uma ordem asseguradora e essencial a ser mantida: a pri- mazia do Édipo não er a,de modo algum, contestável como critério de "normali- dade".

Os depressivos, aliás, não deram maiores problemas para G. DELEUZE e F. GUATTARI (1972) do que para os fr eudianos "puristas". Os cordeiros jam ais

inquietam os pastores.

Mas havia-se esquecido um segundo lote de "desviantes" em relação a esta nova burguesia edipiana da segunda geração freudiana: as estruturas psi- cóticas e as organizações perversas. As segundas, que negam ferozmente seu apego aos verdadeiros valores edipianos, e as primeiras, que são sinceras quan- do declaram não sentirem a preeminência deste gênero de padrão afetivo trian- gular e encontrarem-se em perfeitas condições de dispensar o aspecto relaciona! particular que os girondinos do Édipo declaram obrigatório para ter acesso

à

"normalidade".

Em uma reflexão limit ada aos aspectos nuançados da noção de "normali- dade", certamente seria perigoso deixar-se levar a uma querela ou polêmica cuj os defensores ficam em um domínio mais afetivo do que científico.

Atendo-me às minhas hipóteses que propõem uma concepção da "nor-

malidade" ligada ao bom funcionamento interno e externo desta ou daquela es- trutura , ao mesmo tempo coloco meus critér ios em perfeita independência em relação às modalidades especificas de estrutura ,ou seja, não mais preciso preo- cupar-me a priori em saber se se trata de uma estrutura edipiana ou não.

Entretanto, fiel à minha maneira de encarar a estrutura, não teria como conceder o estatuto de estrutura a um modo de funcionamento mental que não fosse estabelecido sobre bases sufic ientemente sólidas e constantes; deveria então assumir os riscos de muitas críticas, por não reconhecer uma "nor malida- de" de funcionamento às simples organizações frágeis e instáveis do tipo anaclí- tico, tais como as descrevi em outra parte, no contexto do "tronco comum orde- nado" dos estados limítrofes. A existência de uma "pseudonormalidade", defen-

siva mas pouco assegurante, parece não provocar dúvidas ao psicopatologista.

A distinção fica mais delicada quando se trata dos arranj os, quer de modo caracterial, quer perverso, menos frágeis que o "tronco comum". Poderá pare- cer muito perigoso recusar um estatuto de "normalidade" a tais organizações mentais, quando se deve ter em conta a pressão dos recentes movimentos de opinião que reivindicam, sob motivos manifestos diversos, não apenas liberda- des diante dos superegos individuais ou coletivos constrangedores, mas uma "normalidade", cuj o verdadeiro sentido latente constituiria um satisfecit conce- dido de fato ao fracasso da maturidade pulsional, bem como o reconhecimento oficial de um êxito obj etai ao n!vel do simples objeto parcial, da pulsão parcial e da relação de obj eto parcial.

Ainda há pouco critiquei os aristocratas do Édipo e estou seguro de em

nossos dias conseguir sucesso fácil em uma posição de aspecto liberal inversa à deles, condenando o primado do Édipo e incluindo perversos e caracteriais no lote dos "normais" poss!veis. Uma tentação demagógica mais ou menos cons- ciente de parar por ar

certamente me pouparia muitas dificuldades junto às pes- soas turbulentas do momento, sem denunciar ao mesmo tempo a ilusão eco- nômica da "pseudonormalidade" sob todas as suas formas, mesmo as mais su- tis e refinadas. O contexto sócio-cultural

de fato muitas vezes se mostra cúmpli- ce, tanto pela satisfação voyeurista, quanto pela fraqueza de expressão de um Ego individual e coletivo que, no fundo, jamais

é

levado em conta, e na realidade

não está absolutamente de acordo com o pauperismo afetivo na ordem do dia, sej a qual for a forma militante e racionalizada sob a qual este pauperismo se propõe à boa vontade de numerosos indecisos.

O paradoxo de nossa posição continua sendo, pois, o de aceitar uma pos-

sibilidade de "normalidade" tanto nas estruturas neuróticas quanto psicóticas não descompensadas, mas declinar a solicitação de cumplicidade, a "piscada de olho" que nos propõem as frágeis organizações narcisistas intermediárias para serem admitidas no mesmo contexto dos "normais" possfveis, cuj a estabilidade contenta-se em imitar às custas de ardis psicopatológicos variados, incessante- mente renovados e profundamente custosos e alienantes.

Segundo meu ponto de vista, uma estrutura psicótica não descompensa- das

é

muito mais verdadeira, muito mais rica em potencial de criatividade, muito menos "alienada" em relação a si própria, do que um frágil arranj o caracterial que se contenta em fingir que possui tal modo de estrutura mais consistente e que

ao mesmo tempo altera uma parte importante de sua originalidade, isto é, da- quilo que deveria constituir uma base autêntica e sólida de funcionamento mental em relação às nuanças, interesses e déficits naturais das realidades inter- nas e externas sob seus aspectos subj etivos, elaborativos e intersubjetivos.

6A "descompensação" corresponde, para mim, à ruptura do equilfbrio original qu e pOde se estabelecer em tal arranjo particular, no seio de uma

estrutura estável de base, entre in- vestim entos narclsicos e objetais.Tal equ iHb r io (contanto que não haja descompensação) seria, pois, tributário de dois nlveis de limitação: a economia geral, por um lado, induzida

::Jela estru tura ção de base e, por outro, o arranjo original peculiar ao sujeito propriamente c':to no interior do seu subgrupo de estrutura especifica,

Do mesmo modo, uma estrutura psicótica não descompensada também será muito mais "verdadeira" do que um arranjo perverso, cujo campo de criati- vidade, o jogo pulsional e a pauta das relações objetais encontram-se entrava- dos pela feroz negação defensiva e ofensiva do sexo feminino, em uma rigidez dos investimentos, não permitindo qualquer nuance, qualquer variação, qual- quer riqueza de temas fantasmáticos ou dos modos relacionais de pensamento e expressão.

Uma estrutura psicótica é incapaz de conhecer a flexibilidade das econo-

mias genitais no jogo dos investimentos libidinais a este nfvel, mas os investi- mentos narcisistas complementares da estrutura psicótica, contudo, são muito mais flexfveis do que aqueles encontrados no mesmo registro no anaclftico "Ji- mftrofe", caracterial ou perverso. Esta possibilidade de mutações narcfsicas va- riadas reflete-se, por exemplo, nas tiradas ou criações artfsticas muito peculiares aos psicóticos. Contanto que permaneça "normal", o psicótico, diante de um de- sinvestimento diffcil de suportar, guarda chances de recuperar-se em outro in- vestimento narcisista tão brutal e total quanto o primeiro; a economia anaclftica não dispõe de recursos tão facilmente intercambiáveis.

De outra parte, um individuo "normal" pode, a todo momento, tornar-se "anormal" e descompensar-se, sem que por isto se deva contestar seu anterior estatuto de "normal"; com a condição, todavia, de que não se trate de uma or- ganização meramente anaclftica. Da mesma forma, fora da linhagem anaclftica, todo "anormal" conserva a possibilidade de voltar a ser "normal", sem que o observador tenha de sentir-se culpável pelos sucessivos diagnósticos apenas aparentemente contraditórios.

Concluindo, posso apenas renovar minha adesão

à

hipótese retomada por

R. DIATKINE (1967), segundo a qual toda a noção de "normalidade" deve ser independente da noção de estrutura. Contentar- me-ei em acrescentar uma cor- reção, precisando que os "ordenamentos" narcisistas dos estados intermediários não parecem capazes de constituir uma "estrutura" e, com isto, entrar nos mui- tos arranjos funcionais da "normalidade", na medida em que seu ego não se estabeleceu mais solidamente (paradoxalmente, mesmo que em um sentido psi- cótico, com a condição de não haver descompensação).

Entretanto, embora seja possfvel reconhecer a independência da noção de "normalidade" em relação à noção absoluta de "estrutura", cabe igualmente re- conhecer a independência desta mesma noção de "normalidade" em relação a uma possfvel idéia de hierarquia das estruturas no sentido maturativo, elaborati- vo e relaciona! das diferentes funções do ego.

Pode-se ser "normal" sem haver atingido o nfvel edipiano, com a condição

de haver realizado uma verdadeira estrutura; contudo e estrutura do tipo edipia- no deve, da mesma forma,ser disposta a um nfvel elaborativo superior ao da organização estrutural psicótica.

Toda e qualquer hierarquização estrutural pode apenas repousar sobre a

completude das bases narcfsicas da constituição do ego, a extensão das possibi- lidades criadoras e relacionais, o modo principal, genital ou não, parcial ou total, de relação objetai, a integração obtida, ou não, das pulsões parciais sob o pri- mado do genital, das pulsões agressivas sob o primado do Eros.

Tais detalhes na prática são independentes do estatuto funcional de "nor- malidade", mas a partir deste fato pode-se muito bem conceber hierarquias maturativas de "normalidade": uma "normalidade psicótica", poderá parecer menos elaborada, no plano relaciona! , do que uma "pseudonormalidade carac- terial" por exemplo; nem por isto o primeiro modo de funcionamento mental deixa de corresponder a uma adequação pulsional mais conforme às necessida- des reais, a um funcionamento suficientemente sólido, tendo em conta a autenti- cidade da estrutura, podendo o segundo exemplo corresponder a não mais do que uma simples imitação menos estável, mesmo que o jogo operacional exte- rior se mostre superficialmente mais rico.

Contudo abandonamos, assim, o registro particular da normalidade, tal

como havfamos tentado definir esta noção (principalmente a partir de um ponto de vista funcional), para entrar no jogo da comparação de elementos tocantes a outros domfnios, e não especificamente à "normalidade" .

A "normalidade" de um sujeito de tal estrutura não pode ser comparada

hierarquicamente (ficando-se unicamente no plano, justamente, da "normalida- de")

à

"normalidade", forçosamente muit o diferente, daquele outro suj eito, cor- respondente àquele outro modo de organização mental.

Pode-se estabelecer uma hierarquia das maturações sexuais, dos nfveis de elaboração dos processos mentais, dos graus atingidos pela força do ego, dos nfveis de constituição do superego, das possibilidades de relação ou de indepen- dência obj etai, etc. Não é possfvel colocar em paralelo dois arranj os funciona is originais que tenham atingido suas possibilidades de "normalidade" para da[ deduzir um ordenamento qualquer. Pode-se constatar as diferenças, não classi- ficar segundo uma ordem de sucesso.

Para finalizar este capftulo gostaria de, contudo, tranqüilizar aqueles que possam ter medo de ver, no esquema teórico e geral de minhas hipóteses, uma forma demasiado delimitada, radical e sistemática de classificar os comporta- mentos humanos em três categorias estanques e excludentes.

Penso que meus desenvolvimentos posteriores acerca da diferença, por exemplo, entre traços de caráter, caráter neurótico e patologia de caráter ,esta- rão aptos a precisar melhor e, sobretudo, detalhar bem meu pensamento. Com efeito, não seria j amais o caso de classificar automaticamente, em algum "quar- to-de-despej o intermediário", até uma espécie de caos informe, toda e qualquer organização que apresente alguma suspeita de aspecto dito "caracterial" e, igualmente, de negar os componentes "caracteriais" obrigatórios em toda es- trutura autêntica, seja ela neuróÜca ou psicótica. Nem por isto deixam de existir numerosos déficits narcfsicos secundários em "circuito aberto", diferentes da organização genital do funcionament o mental neurótico e diferentes també m dos déficits narcísicos primários precoces, em "circuito fechado", encontrados

· nas estruturas psicóticas.

É

nestas organizações que primam, sobretudo, a busca narcisista com ten- dência a dominar o obj eto, o anaclitismo e a clivagem do objeto, que não po- dem, em meu entender, entrar no contexto da "normalidade" autêntica.