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As grandes estruturas de base

Uma concepção psicopatológica corrente no passado decompunha-se em postulados sucessivos bastante simplistas, bloqueando, por um certo período, toda e qualquer investigação em psicologia estrutural.

O primeiro postulado pode ser formulado, sem forçar a caricatura, pela distinção praticamente automática entre "aquele que delira", mais ou menos as- similado à estrutura psicótica, e todo o resto, mais ou menos assimilado à es- trutura neurótica.

O segundo postulado, aparentemente mais científico, mas em realidade tão simplista quanto o primeiro, via no paciente "psicótico", a grosso modo, um distúrbio orgânico e incurável; pouco importava qualquer tratamento a que fosse submetido ou que fosse deixado sem cuidados (em casa ou em um "asilo"), pois não se obteria resultado algum com um doente desta natureza. Por outro lado, o paciente dito "neurótico" era um doente dito "psíquico", e se neste caso even- tualmente atenuássemos a parte reservada à organicidade, tal ocorria para au- mentar de imediato e na mesma proporção a parte do "imaginário" (no sentido pejorativo do termo), para não dizer de simulação, mais ou menos atribuída à má vontade do sujeito. Tal doente podia, pois, curar-se, mas "se ele o quisesse"; em contrapartida, se não aceitasse mostrar-se, enfim, gentil e compreensivo, se não obedecesse às nossas ordens de cura, era porque manifestava agressividade em relação aos terapeutas infalíveis (o que sempre foi muito mal suportado). Fi- nalmente era internado em uma "casa de saúde", ou então procurava-se "es- condê-lo" em uma alcova ou asilo, para mascarar a impotência dos terapeutas e das pessoas próximas, tanto quanto para satisfazer sua cólera.

Compreende-se facilmente, até a revolução psicanalítica, o mérito e a co- ragem de certos psiquiatras que não aceitavam tal cenário, e também a pouca

paixão pelas pesquisas psicopatológicas que fossem além das descrições de epi- sódios e sintomas. Há alguns anos estamos diante de uma reação quase inversa: quantos

substantivos que envolvem alguma consonância em "psi" não assumem, por isto, uma auréola supervalorizada?

Florescem por todos os lados as descrições fenomenológicas que revivem, mui comumente sob vocábulos retumbantes, banais constatações antigas. As noções mais audaciosas e duvidosas, contanto que cheirem um pouco a enxofre, são facilmente aceitas pelos congressos mais conservadores, sob o bastão jovial de um presidente "conciliador". Os termos científicos, filosóficos, psicológicos ou técnicos já não são mais suficientes; criaram-se abundantes neologismos aparentemente revolucionários, o que evita operar uma evolução real das men- tes.

A autêntica psicanálise vienense, verdadeiramente, jamais teve chance:

outrora combatida como demasiado progressista, agora é condenada como rea- cionária, antes mesmo de haver conhecido um verdadeiro direito de cidadania em nossas instituições de tratamento e universitárias. Um poderoso sedutor que transpõs PLATÃO em termos psicanalíticos para os lingüistas, e lingüísticos para a psicanálise, conhece, nos salões filosóficos do momento, o mesmo sucesso que TOMÁS DE AOUINO, entre os copistas do século XIII, por sua adaptação teológica do pensamento de ARISTÓTELES . Numerosos espíritos efervescentes pensam haver "superado FREUD", quando nada viveram da experiência que ele propõe e simplesmente defenderam-se, pela intelectualização, contra os perigos que esta experiência comportava para o seu conforto manifesto ou sua angústia latente.

Diante destes movimentos exagerados, contraditórios e apaixonados, co- mo conservar o desejo de honestamente fazer objeto de nossos conhecimentos o funcionamento mental/atente, e não unicamente manifesto? Como ousar ainda procurar empregar termos e noções que tentem distinguir o que aproxima ou diferencia os humanos,o que constitui suas esperanças ou suas angústias? Co- mo compreender e situá-los sem recortá- los de forma letal, nem abandoná-los ao caos informal, outra manifestação inaparente, mas igualmente eficaz, de nos- so instinto de morte em relação a eles...

A originalidade de uma tentativa de classificação verdadeiramente psica- nalítica das estruturas mentais não pode repousar sobre "supercategorias" ma- nifestas, mas ao contrário, sobre as precisões e nuances trazidas ao exame atento do modo de funcionamento das infra-estruturas psíquicas latentes, tanto no estado normal quanto nas evoluções mórbidas destas organizações de base e, por outro lado, a metodologia utilizada não deve visar a uma classificação do tipo entomológico, mas às ligações, associações e investimentos que regem os modos de escoamento, representação e satisfação pulsional. Dito de outra for- ma, toda classificação estrutural psicanalltica não pode senão retomar, ao nlvel e por meio dos processos secundários, o estudo das eventualidades particulares, neste caso ou naquele, dos processos primários fundamentais.

Não procurarei apresentar, neste trabalho, os princípios clássicos de cate- gorização estrutural psiquiátrica, simplesmente em termos diferentes. Meu es- forço tende, ao contrário, para uma síntese nova e ao mesmo tempo mais racio- nal, profunda e global, empenhando-me em empregar apenas termos já conhe- cidos e aprovados. Cabe-me, assim, a tarefa não de modificar, mas de precisar e purificar o sentido destes termos. Creio ser possível não me bater por palavras, contanto que evite, justamente, o emprego destas em um sentido qualquer.

A linguagem psicanalítica, como a linguagem psiquiátrica, possui um vo- cabulário já bastante rico e variado para que, utilizando-o com maior rigor,não se sinta qualquer necessidade de recorrer a neologismos suplementares.

Minha investigação pessoal situa -se no mesmo sentido das preocupações

de A. GREEN (1962) e

J.

H. THIEL (1966), procurando não deixar no esqueci - mento qualquer das modalidades psicopatológicas habitualmente descritas, tal- vez de modo demasiado fragmentário, pelo psiquiatra clássico. Um dos maiores inconvenientes de tal fragmentação é o de conduzir, sem sempre tomar plena consciência, a duas hipóteses que me parecem embaraçosas e demasiado facil- mente admitidas: de uma parte, não reconhecer a existência de todo um sistema de organizações ligadas entre si, gravitando de forma autônoma entre as linha- gens neurótica e psicótica, em torno das vicissitudes do narcisismo e, de outra parte, permitir que se suponha que um mesmo suj eito possa sucessivamente passar de uma estrutura psíquica fixa a outra no decorrer de sua existência.

Meu propósito consiste em apoiar-me em dados metapsicológicos e gené- ticos correntemente admitidos, para mostrar em que diferem, no plano econô- mico, as organizações psíquicas (mórbidas ou não), e como podemos conceber articulações genéticas entre elas, sem para tanto admitir a possibilidade de uma mudança de linhagem estrutural, em um sentido ou em outro, a partir de um certo nível de estruturação real.

Finalmente, desenvolverei o ponto de vista de THIEL (1966) acerca da

identidade estrutural dos estados, mórbidos ou não, no seio de uma mesma li- nhagem, apelando-me em minha concepção mui relativista de "normalidade", tal como a apresentei no capítulo primeiro desta primeira parte.

Meus principais critérios de classifica_ção, próximos das referências de

L.

RANGELL (1965), serão similares para todas as categorias examinadas e essen- cialmente centrados em quatro fatores: -natureza da angústia latente;

- modo de relação de objeto;

- principais mecanismos de defesa; modo de expressão habitual do sintoma.

Certamente será fácil e útil criticar, no plano científico, algumas das minhas hipóteses teóricas ou clinicas, mas o essencial de meu propósito refere-se às condições de ligação das diferentes organizações psíquicas entre si, seu estatuto como modo de

funcionamento menta/latente, e não apenas aos aspectos aparentes dos comportamentos observados a partir do exterior, o que

sem dúvida desloca singularmente o eixo dos futuros debates desej ados a propósito destas hipóte- ses.