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Este seguramente não é o caso de um "doente" tratado por um psi- quiatra. Este gênero de organização não consulta médicos; isto infeliz- mente limita-nos muito em nossas pesquisas clínicas. Com efeito, de uma parte, vemos apenas muito poucos sujeitos desta natureza e, de outra parte, é-nos diffcil empreender junto a eles uma investigação referente ao modo de estabelecimento de suas primeiras relações objetais.

Trata-se aqui de um alto funcionário da administração prefeitoral, do qual fui vizinho de andar durante alguns anos, que faleceu depois, devido a um acidente automobiHstico do qual não havia sido o autor.

Na época em que o conheci, ele tinha por volta de cinqüenta anos. Car-

regado de funções socia lmente importantes, era muito estimado por seus colaboradores e perfeitamente considerado nos diversos meios em que suas funções levavam-no a tomar decisões muitas vezes delicadas. Suas sucessivas promoções atestavam sua adaptação às realidades humanas e econômicas.

Ele era casado com uma mulher simpática que parecia estar plena- mente satisfeita; os dois filhos haviam estudado seriamente. Ambos ha-

viam acabado de casar-se, muito felizes

à

primeira vista.

É certo que este intelectual era conhecido na cidade devido ao seu in- teresse pela magia; freqüentava uma sociedade instruída em relação à et- nologia oriental e outros grupos reputados como mais esotéricos que científicos. Mas tudo isto parecia ser praticado por "um bom pai de famf · lia", por mera curiosidade. Chegou mesmo a apresentar uma ou duas conferências, após missões efetuadas no Extremo Oriente,as quais havia aproveitado para trazer muitos documentos de valor acerca das práticas mágicas locais.

Quem veria aqui qualquer "anormalidade"?

Encontrei-o um dia, por acaso, em um trem, e ele convidou-me para almoçar.Lá pelo fim da refeição, como

conversávamos livremente, estan- do sozinhos à mesa, subitamente colocou-me uma primeira questão: "Doutor, o Sr. acredita na metempsicose?", seguida, diante da "neutrali- dade benévola" de meu silêncio interrogador, de uma informação igual- mente inesperada : "Bem, Doutor, assim como o Sr. me vê aqui, posso confessar algo entre nós, ao Sr. que é reservado e bem informado sobre estas coisas: eu sou a sétima encarnação do SCARRON."

Nada menos do que isto. Minha primeira reação íntima foi de supor uma brincadeira; contudo não o favorecia o contexto, nem o tom, nem a mímica, e meu interlocutor de modo algum era conhecido como um espí- rito farsante. Seus colaboradores próximos e seus amigos de infância o confirmaram depois.

Eu estava lidando com um de/frio, mas permanecendo meu questiona- mento forçosamente discreto, foi-me difícil saber, por muito tempo, se uma tal "confidência" era freqüente. Fiquei sabendo depois que esta sem- pre havia sido algo excepcional , embora não única,e jamais proferida no exercício de suas funções oficiais,nem mesmo em público. A família esta- va a par, mas não se inquietava muito, pois ele jamais havia criado escân- dalo nem qualquer dificuldade com esta idéia aberrante e sobretudo bas- tante secreta.

À mesa, contentei-me em pergunta r com sobriedade o que o levava a crer em tal operação mágica. As explicações imediatamente tornaram-se muito nebulosas. Este homem ordina riamente tão sensato comportava-se então como um autodidata ininteligente e pouco inteligível. Começou ci- tando-me "fatos", para ele inegáveis, referentes a casos supostamente co- nhecidos, tocantes aos mesmos fenômenos. Como o levasse de volta ao seu problema, entregou-se a uma espécie de operação algébrica para mo- dificar, por retiradas e acréscimos sucessivos, o nome de sua mãe para um vocábulo que correspondia aproximadamente a AUBIGNÉ 1, segundo me- canismos perfeitamente ilógicos com

pretensão racional,peculiares às es- truturas psicóticas.

1 Madame de MAINTENON era neta de Agrippa d'AUBIGNÉ ;ela, muito jovem, havia des- posado SCARR ON já paralftico e depois, mais tardi a mente, LUIS XIV ,pustuloso e hidrópi- co.

O servente que trouxe a conta interrompeu ar o seu insólito propósito. Jamais se voltou a falar deste episódio entre nós, apesar de outros encon- tros privados.

Em contrapartida fiquei sabendo, de fontes diversas, que este homem muito cedo havia perdido o pai, idoso e paralltico, que sua mãe o havia criado mui duramente antes de casar-se de novo com um conhecido ho- mem de negócios, de idade e poderoso, que a esposa levava pela ponta do nariz.

O paciente mesmo sempre viveu, em sua juventude (como ainda atual- mente no contexto familiar), segundo um modo privado hermético, con- trastando com as boas relações mantidas no plano "oficial"; dormia pouco

à

noite, lia muito, principalmente obras consagradas ao irracional; depois, fez "quarto separado", não freqüentava regularmente nem convidava nin- guém, comportando-se de forma muito cortês com o grande número de pessoas que sua esposa recebia em casa.

Poder-se-ia facilmente duvidar do valor do diagnóstico colocado em um caso sobre o qual nada mais temos do que informações bem frag- mentárias. Entretanto, pela ausência de elementos visivelmente genitais enquanto organizadores da relação de objeto, pela ausência de comporta- mentos anaclfticos, bem como pela perda do real em certo momento, com reconstrução delirante compensatória, pela negação da realidade e pelos distúrbios de identidade, pela natureza das projeções e incoerência das operações mentais, devemos referir-nos a uma estruturação do modo psi- cótico.

Contudo, o delrrio parece perfeitamente circunscrito a um setor delimi- tado, do qual o paciente não sai jamais, o de suas origens e a forclusão do nome do pai.

É

a isto que consideramos, juntamente com P.C. RACAMIER, o tipo mesmo das "parapsicoses".

Obs.n 7