• Nenhum resultado encontrado

Um caso de "neurose pseudopsicótica"

D) AS FALSAS "NEUROSES"

1. Situação nosológica

Estima-se habitualmente que o termo "neurose" tenha sido introduzido em 1777 por W illian CULLEN e o termo "psicose" apenas em 1845, por FEUCH- TERSLEBEN, mas estas duas denominações têm sido obj eto de incessantes re- manejamentos e limitações quanto à sua significação própria.

As diversas escolas psiquiátricas, psicológicas ou psicopatológicas não

pararam, desde a criação destes termos, de precisar as entidades clinicas ou es- truturais às quais deveriam ser reser vadas tais categorizações.

Em outro movimento de investigação, numerosos autores têm tentado

atenuar, ao contrário, os termos "neurótico ou psicótico", que se tornaram de- masiado categóricos: os psiquiatras, em particular, criaram mais de quarenta denominações para dar conta de possibilidades nosológicas ou estruturais que não podiam entrar no quadro próprio das organizações vedadeiramente psicóti- cas ou neuróticas: formas atenuadas de demência precoce (KRAEPELIN, 1883), heboidofrenia (KAHLBAUM, 1885), esquizofrenias latentes, organizações psicóti- cas esquizomorfas, esquizofrenia simples (BLEULER, 1911), esquizotimia (BLEULE R, 1920), esquizoidia (KRETSCHMER, 1921), esquizozes (CLAUDE, 1925), esquizomanias (LAFORGUE, 1927), formas benignas de esquizofrenia, organizações esquizó ides de caráter, esquizoastenia, esquizonóia, falsas esqui- zofrenias de evolução favorável ( LABOUCARIE, 1958), e todas as esquizofrenias ditas pseudoneuróticas, pseudopsicóticas (dos autores americanos), pseudoca- racteriais, mistas, polimorfas, leves, menores, crônicas, incipientes,frustras, afe- tivas, apsicóticas, em potência, larvares, ambulatórias, bem como estados psicó-

-=os

·ntrovertidos (JUNG, 1907) ou pseudoesquizofrênicos, os processos psicó-

-.:os

incipientes, as psicoses marginais ("randpsicoses"), etc.

Pode-se acrescentar a esta lista o grupo das denominações "pré-psicóti- QS" diversas das psicopatias (E. DUPRÉ, 1925) e

personalidades psicopáticas (K. SCrlN EIDER, 1955), delfrios neuróticos de compulsão, paranóides abortados, a

: aranóia sensitiva, os apáticos, as personalidades hebefrênicas, certas personali- dades perversas, os "sonhadores acordados", os rabugentos, as reações psicó- g.anas, as personalidades "as if" ou "simili" (Helene DEUTSCH, 1945), os dese- cuilfbrios psfquicos (J. BOREL, 1947), os mitomanfacos (DUPRÉ, 1925), os dese-

::Jillbrios caracteriais, as caracteropatias, etc.

Podemos compreender também, nesta posição nosológica incerta, nume- rosos estados ditos "mistos", ou "depressivos", estados de angústia difusa evi- dentemente não-neurótica, num grande número das famosas "neuroses de ca-

·ãter" e situações de aparência perversa, toxicômanos ou delinqüentes, alcoo- listas ou pseudomelancólicos.

Quer se trate da primeira atitude, acentuando o rigor dos termos para ex- cluir o que não pertence nem

à

estrutura psicótica nem

à

estrutura neurótica, ou da segunda atitude, que dilui estes mesmos termos para estender sua aplicação a outras categorias vizinhas, porém distintas, em ambos os casos cabe dar conta da existência dE;l uma série de entidades clfnicas ou modos de funcionamento mental aos quais não podem convir os dois grandes quadros estruturais que acabamos de estudar no capftulo anterior .

Constatamos imediatamente que a maioria dos autores está de acordo acerca de um ponto de partida, ou de encontro. Desde os trabalhos de EISENS- TEI N, em 1949, principalmente, agrupa-se a maioria destas entidades sob ovo- cábulo inglês "border-lines", traduzido por "casos limftrofes" (cas limites) ou, mais comumente, "estados limftrofes" (états limites). Este último termo é o que empregamos de forma corrente nas investigações pessoa is publicadas a partir de 1966.

Os trabalhos das diferentes escolas ainda divergem quanto à posição no- sológica exata que deva ser conferida a tais organizações.

Para alguns, parece tratar-se de formas menor es de psicose e, em especial, forma s menores de esquizofrenia. Este ponto de vista é desenvolvido por H. E Y e seus colaboradores (1955 e 1967). Ora, os critérios nosológicos da esquizofre- nia va riam de um escola para outra, e M. POROT (1965) lembra que devemos ser muito prudentes quanto às form as atfpicas desta afecção...

O mesmo problema foi levantado a partir da paranóia e suas formas lar-

vares ou menores e também no que diz respeito às formas não acabadas de psi- cotização do tipo melancólico. O problema parece ainda mais delicado no domínio das pré-psic oses: já

estamos, ou não, em uma economia psicótica?

Quando se examina bem de perto as observações apr esentadas pelos au- tores que sustentam esta primeira posição, apercebemo-nos de que certos casos parecem corresponder a estruturações autenticamente psicóticas, muito crfpti- cas, bastante focalizadas, do tipo parapsicótico descrito acima, ou ainda pouco

descompensadas, ao passo que outros casos parecem não repousa r sobre uma estruturação psicótica em fu nção de seus dados econômicos de base, tais como os def inimos no capítulo precedente.

Uma segunda posição, menos difundida e igualmente citada por H. EY (1955), considera este grupo de categorias atípicas como podendo const ituir for- mas maiores de neurose. Numerosas manifestações fóbicas são dispostas em tais posições, situadas muito perto das psicoses, mas conservando um estatuto neurótico. Contudo, não cessamos de atrair a atenção dos clínicos para os peri- gos d ater-se apenas aos sinais exter iores e conferir - lhes um va lor nosológico em si. Embora ex istem, seguramente, formas graves de neurose, não se pode confundi-las com organizações de aspecto exterior viz inho que, porém, não re- conhecem o primado do genital.

Uma terceira posição teórica conheceu um sucesso bastante grande ao de- fender a existência de formas de passagem entre

neuroses e psicoses . H. CLAUDE (1937) desenvolveu este ponto de vista . Em 1964, A. GREEN evocou a event uali- dade de uma

possível continuidade entre estruturas neuróticas e psicóticas, mas não estabeleceu com precisão se se tratava de uma verdadei ra mutação estru- tural ou de estados clínicos que de fato se encontravam em situação intermediá- ria. Para MARKOVI TCH ( 1961) tratar-se- ia realmente de uma metamorfose da estrutura.

É

possível responder que a concepção defendida aqui não pressupõe tais

"passagens" senão por ocasião da adolescência, ou em alguns momentos pos· ter iores que possam corresponder a retardas da adolescência. Em contrapartida, pode-se conceber, no seio da mesma estrutura, variações de defesa ou de sin- tomas, contudo sem variação da organização de base: por exemplo, uma estru- tura psicótica não descompensada que se defenda perfeitamente bem com o au- xflio de defesas do tipo obsessivo pode ser tomada por uma estrutura neurótica, até o dia em que se descompense e entre em dellrio; da mesma forma, uma es- trutura histérica pode apresentar, durante um bom período de tempo, surtos agudos de aspecto delirante e psicótico, até decompensar de maneira neurótica evidente, sob a forma de histeria de conversão ou de histerofobia; no plano la- tente, as estruturas de base não terão, portanto, variado.

Um quarto grupo de autores, cada vez mais numeroso atualmente, consi- dera os estados limltrofes como constituindo uma

unidade noso/ógica indepen- dente. Os psicanalistas anglo-saxões foram os primeiros a defender este ponto de vista: V. W.

EISENSTEI N (1956), M. SCHMIDEBERG (1959), A. STERN (1945),

R. KNIGHT (1954), O. KERNBERG (1967) puseram em evidência argumentos econômicos determinantes. Na Europa, M. BOUV ET (1967) ateve-se ao rigor descritivo das diferentes relações de objeto. Em seguida, sucederam-se os tra- balhos de MALE e GREEN (1958), acerca das pré- esquizofrenias da adolescên· cia, de LEBOVICI e DIATKINE (1955 e 1956) e MISES (1968), acerca das desar - monias evolutivas e das pré-psicoses na criança, de A . GREEN (1964), sobre os limites entre neuroses e psicoses, de NACHT e RACAMIER (1967), sobre os es- tados depressivos, de GENDROT e RACAMIER (1967) sobre a "neurose de an- gústia", de GRUNBERGER (1958) e PASCHE (1955), sobre o narcisismo, de

MARTY, FAIN, DE M'UZAN e DAVID (1963) sobre as regressões psicossomáti- cas e as sínteses apresentadas por M. GRESSOT (1960) e B. SCHMITZ ( 1957) sobre o verdadeiro problema dos estados limítrofes.

Foi na linha dos autores americanos e europeus que desenvolvi minha in- vestigação, tentando definir com o maior rigor possível as bases metapsicológi - cas e genéticas específicas de uma organização mental que comporta, justa - mente, flutuações e imprecisões.