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1 ·A linhagem estrutural psicótica

D) REFLEXÕES DIFERENCIAIS

Em conformidade com o propósito de não debater aqui os aspectos sin- tomáticos e fenomenológicos manifestos, mas os aspectos metapsicológicos e genéticos que permitam compreender os modos de organização latentes do fun- cionamento mental nas diferentes estruturas, parece-nos possível estabelecer agora um quadro sintético das características profundas das três grandes cate- gorias psicóticas (cf. fig. 3).

A estrutura esquizofrénica corresponde a uma fixação tópica que incide so-

bre as hesitações da dialética eu - não-eu, e a uma organização pulsional fixada

à

fase oral, não havendo o primado desta economia jamais sido superado em meio aos diversos aportes posteriores, que permaneceram heteróclitos e não- integrados. A angústia de fragmentação, comum a todas as estruturas psicóticas, extrai aqui sua especificidade em um temor de fragmentação ligado

à

impossibi- lidade sentida de constituir um verdadeiro ego, suficientemente autônomo e unificado. A relação objetai orienta-se para o autismo, ou seja, um esforço de re- cuperação narcísica primária. Os principais mecanismos de defesa comportam a negação primária de uma parte da realidade; primária, na medida em que certas partes desta realidade jamais foram objetivamente

reconhecidas; esta negação

é

acompanhada pelos mecanismos fundamentais do processo primário: desloca- mento, condensação e por uma certa parcela de simbolização. Os fantasmas e, por fortes motivos, o delírio, funcionam exatamente como o sonho; mui comu- mente permanecem como única forma de reinvestir os objetos. A relação pa- renta! primitiva e significativa é do tipo simbiótico para com a mãe; é necessá rio, além disto, que esta demonstre, desde os primeiros instantes da vida, uma certa toxicidade afetiva.

Ponto de vista tópico

Economia pulsional Natureza da

angústia Relação Objeta i Mecanism os de defesa Representação fantasmática Gênese da relação parenta! Distinção Prim ado Fragmentação Autismo Negação Modo de

...

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oral por falta de unidade primária + reinvesti- mento dos simbiótica tóxica 2 ::> liíg Deslocamento Condensação objetos ww Sisnbolização

Falha do Ego Regressão Fragmentação Primado Negação Retorno Mãe ambivalente

) Falência do do fa lismo por perda da secundária sobre si da qual só foram

Ideal de Ego oralidade realizada do agressividade + do ódio conservados os

a analidade obj eto

anaclltico

lntrojeção do objeto aspectos trustra ntes Ego incomp leto Primado Fragm entação Perseguição Negação Primária Modo de Mãe fálica

sem o objeto do primeiro por temor Domlnio + defesa narcisista

Idea l de Ego sub-estágio da Projeção utilização ocultada por

2

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FIGURA 3: Quadro sintético das estruturas psicóticas

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A estrutura paranóica comporta problemas tópicos ligados a um eu nitida- mente distinto do não-eu, mas sem poder autonomizar-se, a não ser em uma dependência agressiva do objeto, e a um ideal de ego não apenas ingênuo, co- mo na imaturidade afetiva (tratando -se aí da impossibilidade de atingir todas as identificações entrevistas), mas inadaptado, na medida em que persegue simples quimeras irreais e defensivas .A evolução pulsional jamais superou o primado da economia anal de rejeição.A angústia de fragmentação centra-se na ameaça de estilhaçamento por penetração sádica da parte do objeto. A relação objetai é, conseqüentemente, feita de temor de perseguição e de necessidade de domínio, resumidos na economia homossexual passiva. Afora uma negação igualmente primária de certas realidades, o principal mecanismo de defesa é a projeção, au- xiliada pela anulação, a denegação e os dois modos de retorno (retorno das pul- sões e retorno contra si). Os fantasmas são muito mais unívocos do que na es- trutura esquizofrênica, envolvendo imagens de ciladas, necessidade de controle, necessidade do outro para fantasiar mais livremente em lugar do sujeito. No contexto familiar primitivo, a mãe conserva uma importância fálico-narcisista primordial, mas a imagem do pai aparece como tela sutil que a oculta e a prote- ge.

A estrutura melancólica, conforme vimos, situa-se em uma ótica bastante

diferente em relação às duas outras estruturas psicóticas em virtude da impor- tância de seus fatores de deterioração regressiva, incidindo ao mesmo tempo sobre o ego e a libido, ao passo que as estruturas esquizofrênica ou paranóica limitam-se essencialmente a fixações arcaicas do ego e da libido.

Por este motivo

é

que mostra-se tão difícil situar com justeza a estrutura

melancólica em uma classificação "linear" das três estruturas psicóticas de base. Colocá-la em terceira posição nesta enumeração não significa absolutamente que a estrutura melancólica se encontre em um lugar mais elaborado no plano libidinal que a estrutura paranóica. Pareceu bom classificá-la depois das duas outras para marcar o seu lugar um tanto particular.

Esta estrutura melancólica corresponde, no plano tópico, a uma falha do

ego e a uma falência do ideal de ego. A economia pulsional, que outrora havia chegado a um nível em que o falismo havia podido desempenhar o papel orga- nizador, vê-se na obrigação de regredir, conseqüentemente à reativação da feri- da narcisista arcaica fundamental, para os estágios pré-genitais oral e anal. A angústia retornou a uma angústia de fragmentação, que contudo conserva mar- cas da ansiedade anaclítica e fóbica de sua evolução anterior mais progressiva; encontramo-nos, pois, diante de uma angústia em que o sentimento de que o objeto se perdeu constitui agora ameaça imediata de fragmentação , ao passo que, na época anterior (ainda não psicótica), a angústia incidia sobre o risco de perda do objeto e a simples depressão consecutiva. A relação objetai ambiva - lente anterior, correspondendo ao mesmo tempo ao ódio e 'ao amor, acha-se arrebatada pela dominação de sentimentos cada vez mais violentos. Os meca- nismos de defesa são representados, em primeiro lugar, certamente, pela nega- ção da realidade, mas uma negação secundt1ria de parte da realidade, que pôde ser reconheeida anteriormente, antes de encontrar- se defensivamente negada

quando, na última fase, a estruturação psic6tica mostrou-se completamente acabada; a introjeção vem então apoiar a negação: trata-se de uma introjeção muito arcaica, do tipo devorador. Os fantasmas estão ligados ao luto do objeto, luto este impossível de realizar, e aos afetos agressivos que acompanham a in- trojeção . A situação familiar primitiva comporta sempre uma mãe cuja imagem apresentava-se ambivalente, sem distinção nem, todavia (e sobretudo), unifica- ção possível entre seus aspectos "maus" e "bons"; isto enquanto os primeiros aspectos ainda não a haviam dominado, tanto e tão bem como terminaram por dominá-la...

Nossa figura

3 tenta dar conta, de forma sintética, destas diferenças fundamentais de modo de organização latente entre as três grandes estruturas psicóticas.

Depois de procurar definir critérios fundamentais e estáveis que permitam determinar grandes categorias estruturais psicóticas de forma precisa, uma preocupação com a clareza apela à prudência, à nuance e à nitidez, no registro da morbidade, a fim de não recair, a este nível de subgrupos patológicos, nas armadi lhas denunciadas a propósito das grandes classes de entidades estrutu- rais.

A atenção deve incidir particularmente sobre um certo número de termos

em si muito precisos, não podendo acomodar-se a sinonímia equívoca: para co- meçar, a noção de "pr psicose" mereceria ser reservada unicamente a um as- pecto ainda não acabado da linhagem estrutural psicótica apenas, e não ser confundida com as

"parapsicoses': descritas por P.C. RACAMIER como formas clínicas crípticas e focalizadas, correspondentes a uma estrutura

psicótica niti- damente constituída.

Da mesma forma, existe aquilo que se chama de "pós-psicoses': isto é,

estados clínicos que sucedem a um episódio patológico, correspondendo, de resto, a uma boa recuperação no seio de um a estrutura psicótica única e inalte- rada; convém não confundir estas "pós- psicoses" com simples episódios regres- sivos passageiros de aparência psicótica, que podem ocorrer mesmo em neuróti - cos de estrutura e, por motivos mais fortes ainda, em um estado limite ou seus derivados.

Existem, finalmente, ''psicoses pseudoneuróticas", em que todo o sistema superficial de sintomas e defesas é de modo neurótico, mais comumente de aparência obsessiva, para lutar contra os riscos de descompensação da estrutura profunda, autenticamente psicótica; basta atacar as defesas de tipo neurótico de tais pacientes para deixá-los a sós com sua angústia psicótica e precipitá-los no delírio. Mui comumente os clínicos recebem pacientes encaminhados por "neu- rose obsessiva grave" que, de evidente estruturação psicótica ainda bem com- pensada, delirariam assim que fossem colocados sobre o divã.

Da mesma forma, encontramos também "neuroses pseudopsicóticas" on-

de, inversamente, uma estrutura autenticamente neurótica mascara seu conflito genital e edipiano por meio de esboços de despersonalização ou desrealização, um sentimento de perda iminente dos limites do ego. Se tratarmos tais pacien- tes como psicóticos, isto é, por via simplesmente medicamentosa ou psicoterápi-

c:a

superficial, privamo-los (por vezes irremediavelmente) dos benefícios de uma análise profunda dos seus conflitos e da inadaptação de suas defesas, o que pos- sibilitaria a muitos negociar melhor a economia genital sob o primado da qual estão organizados estruturalmente, apesar dos enormes fatores pré-genitais que obscurecem as suas manifestações.

Parece útil ilustrar meu propósito, neste momento do debate, por meio de exemplos clínicos referentes às cinco categorias de distúrbios que acabei de citar e para as quais o diagnóstico estrutural se mostra particularmente delicado .

Obs. n'? 4

Um caso de "pré-psicose"

Michêle tem 18 anos e foi encaminhada por um colega que a trata há um ano por uma "depressão neurótica" que não

cede às terapêuticas clássicas empregadas até então.

Michele chega à consulta trazida por seus pais, que se revelam como

personagens curiosos: a mãe ocupa praticamente toda a sessão,num tom de puerilidade que não se mostra tão fingido quanto se poderia ter pensa- do de infcio; esta mulher de 42 anos, visivelmente inteligente e sensível, em nada se parece fisicamente com o "dragão" descrito em relação às mães de crianças gravemente acometidas; apresenta-s e apenas em doçu- ra, respeito, modéstia, demanda de ajuda, de conselhos, tanto para ela quanto para sua filha, etc... e parece não haver subterfúgios em seu propó- sito: ela é realmente uma menininha. Poder-se-ia perguntar, considerando o lugar tomado por seu discurso pessoal nesta primeira entrevista, para quem ela veio consultar.

De fato, ela expõe, após falar um pouco a respeito de sua filha, que ela mesma se encontra em tratamento psiquiátrico há bastante tempo com o colega que tratou desta durante estes últimos meses.

Além disto, esta mãe

é

uma pintora "de talento", diz seu marido neste

momento, abrindo a boca pela primeira vez (ficamos sabendo posterior - mente que este julgamento era perfeitamente exato). Efetivamente,o pai existe; ele é farmacêutico, 50 anos, e um acidente de guerra deixou-lhe um dos braços ligeiramente paralisado. Ele mesmo trabalha enormemente, mal secundado e sem queixar-se, para fazer frente às enormes despesas feitas em toda parte pela mãe e as duas crianças.

Existe um irmão de 12 anos, do qual a mãe fala agora com volubilidade,

pois ele

é

"o agressivo" da famflia, o terror do bairro, expulso de todas as escolas, etc.

Mas, e Michele?... efetivamente, apanhados na torrente de palavras da mãe, chegaríamos a esquecê-la. Ela está lá, ausente, em sua cadeirinha, entre o pai que descansa, pois uma vez que cumpra seu dever não se lhe pergunta nada, e a mãe, que não fala senão dela própria e do menino-falo.

Pobre Michêle! ... Por que, exatamente, aceitei-a em tratamento? Por seu isolamento? por seu procedimento gentil? pela impressão incrivel- mente simpática que, definitivamente, me causou a fam!lia? por tudo isto, e por quantas outras coisas ainda?

É

evidente que eu não podia saber grande coisa dela nesta primeira sessãG, senão que, segundo a mãe:

1) ela estava deprimida;

2) não podia continuar assim, impedindo a mãe de pintar; 3) que o Dr.Z... havia dito que eu devia encarregar-me dela.

Efetivamente, não procurei saber mais, de momento, mas já havia feito uma primeira idéia acerca desta "pseudodepressão", pela qual tantas pes- soas teriam pensado em me gratificar (?) dispondo-a na categoria dos "estados limítrofes".

As coisas, entretanto, pareciam bem mais sérias, e o futuro deveria confirmar minha primeira impressão, bastante reservada.

Esta paciente havia sido criada por uma babá estrangeira, no domicílio, sob as ordens da mãe, sempre ausente para os cuidados e, ao mesmo tempo, sempre presente para as instruções... as mais desordenadas ... as relações primitivas foram extremamente frustrantes e profundamente in- quietantes; a possessividade materna efetuava-se sem gritos, sem calor afetivo, sem aparência policialesca, mas com uma eficácia no domínio, igual em intensidade à desordem na qual se achava o conjunto da famflia .

Dois episódios anoréticos (aos 2 e aos 5 anos), cada um com a duração de seis meses, culminaram os fracassos das relações orais primitivas e tar- dias. Uma infecção digestiva séria levou a uma icterícia grave aos 12 anos.

Durante um bom período não houve qualquer escolarização; a mãe não permitia que lhe tirassem a filha, da qual se ocupava tão pouco, sem acei- tar que alguém a substituísse validamente .

Não era autorizado qualquer contato social; para a mãe, "as pessoas do bairro não eram do mesmo meio..."; nenhuma identificação válida possí- vel... muito mais: nenhuma identificação verdadeiramente realizável.

Estavam reunidas todas as condições necessárias

à

eclosão de uma es- trutura psicótica.

E de fato, realmente nos encontrávamos diante de uma evidente estru- tura da linhagem psicótica, ainda não descompensada, ou seja, uma típica pré-psicose.

A "pseudodepressão" ocultava a profunda perda de contato com a rea- lidade (inaparente no plano manifesto, pois a mãe provia todo tipo de lo- gros com o dinheiro do pai).

A angústia de fragmentação levava apenas a fobias do trem, dos ôni- bus, etc.: que não fosse por isto, andava-se somente de táxi, e

a

mãe esta- va lá.

A inaptidão a toda e qualquer tarefa escolar ou profissional encontrava uma justificativa imediata: "uma mulher do nosso meio não trabalha". Os acessos agressivos eram normais: "ela tem o caráter estourado do pai".

Quanto

à

relação fusional com a mãe, a primeira entrevista havia-se mos- trado bastante demonstrativa ... . Tudo, pois, já parecia jogado no plano estrutural, mas nada ainda per-

dido. A psicoterapia analítica empreendida de par com um coterapeuta mais diretivo foi longa e muito ditrcil no início,em virtude das incessantes interferências maternas que se precisou desmanchar, em primeiro lugar não mais caindo na cilada das constantes provocações ao sadismo (sem- pre pronto a "prestar serviço") dos terapeutas...

Efetivamente, o início da autonomização foi cheio de angústia para a paciente, cheio de sofrimento para a mãe, reparador para o pai... mas foi a vez do irmão descompensar pouco a pouco.

A pobre mãe, de fato, aparentemente havia perdido tudo. Seu médico

pessoal foi bastante hábil para apoiá - la e apegá-la

à

sua pintura. Infeliz- mente, esta quase não vende, e o aporte narcisista permanece magro. Também a prensa em que se debatia a filha não foi fácil de soltar.

Obs. n!! 5

Um caso de "pós-psicose"

Quando um colega e eu assumimos o caso em coterapia, o diagnóstico não provocava qualquer dúvida.

Blaise é um psicótico de 34 anos que, depois de estudos de teologia bastante longos e sendo padre, lecionava há três anos em um seminário do centro da França, onde já havia apresentado alguns sinais de desordem mental.

Uma primeira fuga quase não acarretou conseqüências médicas nem disciplinares . Em contrapartida, a segunda beirava o sacrilégio :como Blai- se havia sido visto errante e agitado nas ruas muito animadas desta grande "cidade pequena", onde todo mundo se conhece, e como não escutava qualquer conselho de moderação, nem de retorno ao seminário, seu bispo, pensando sem dúvida ter parte na infalibilidade do poder que lhe era dele- gado, lançou-se ele próprio

à

sua procura e encontrou-o em uma praça, onde o paciente discursava para a multidão.Assiste-se a uma admoesta- ção discreta, depois mais insistente, da parte do bispo. A resposta de Blaise a seu bispo foi breve e ríspida: "Senhora, grita-lhe, sois uma puta, estou indo ao bordel, quereis vir comigo?"

O sangue episcopal ferveu; imediatamente apelou ao auxílio dos bfceps seculares e

à

ambulância, em um primeiro tempo, depois, em um segundo tempo, Blaise é encarcerado em um serviço fechado, cuidado por freiras, com os cuidados médicos de um psiquiatra "bem-intencionado" perfeita- mente inativo, mas felizmente pouco tóxico.

Como um irmão de Blaise era médico, foi-nos pedida uma consulta em concordância com o médico que o tratava, no serviço em que trnhamos o

hábito de trabalhar juntos, este médico que o tratava e eu.

A estrutura não era difícil de definir, nem causava dúvidas a ninguém: tratava-se de uma esquizofrenia, descompensando aos poucos, por surtos sucessivos e progressivos, do tipo maníaco, desde a idade de 23 anos, ao que parece.

A descompensação atual achava-se em relação direta com uma opera-

ção cirúrgica a que a mãe havia-se submetido em condições brutais, e que muito inquietou o paciente. A angústia de fragmentação do esquema cor- poral materno atingiu Blaise como uma ameaça de fragmentação do seu próprio corpo, desde sempre pouco diferenciado do da mãe.

Demos uma passada rápida pela anamnese: um avô materno terrível sob todos os pontos de vista, uma mãe que dele recebia plenos poderes sobre a familia, um pai inexistente e depressivo. Um irmão, igualmente depressivo, médico em um serviço administrativo, celibatário e, ao que parece, homossexual, talvez mesmo de estrutura psicótica.

A mãe guardava autoridade sobre todos, e não deixava ninguém em paz. Encarnava o direito divino paterno (a pequena indústria familiar tam- bém conservava o nome deste pai da mãe), sendo a única potência legíti- ma a que se juntavam, ademais, devido ao seu caráter próprio, exigências e questionamentos dignos da inquisição.

Blaise nunca conseguiu ter uma identidade própria. Seu narcisismo

primário jamais esteve completo, acabado, unificado. Rapidamente reti- rou-se em devaneios, com algumas escapadas descompensatórias do tipo messiânico ou cósmico, durante as quais afirmava com perfeita convicção "haver tudo compreendido" e sentir-se pronto para "salvar o mundo".

Sua "vocação religiosa" sustentou-se facilmente por bastante tempo, devido a tais idéias, enquanto permaneceram discretas.

Mas o que sobretudo nos interessa aqui é o futuro de Blaise: estabele- ceu-se uma coterapia muito atenciosa. Meu colega conservava o pólo di- retivo e medicamentoso; eu, por minha vez, conduzia uma psicoterapia muito analítica e sóbria.

Vimos Blaise sair aos poucos do emaranhado de seus pensamentos e dos antigos medicamentos. Começou a aceitar, sob a cobertura desta du- pla transferência asseguradora, a modéstia de uma situação de dependên- cia junto a um dos seus antigos colegas do ginásio, fabricante de biscoitos.

Pareceu-nos de excelente prognóstico que, pela primeira vez na vida,

ele fosse capaz de aceitar-se no papel de simples almoxarife durante um ano, dormir em um quarto de pensão, asseado mas triste, comer frugal- mente, sem com isto sentir-se perseguido. Depois passou a ajudar na contabilidade da empresa e, no ano seguinte, substit uiu sozinho o conta- dor que havia adoecido, durante três meses. Sob os conselhos do amigo que o empregava e estava contente com ele, achou necessário mudar de empresa e conseguiu um emprego de chefe de escritório em uma pequena sociedade imobiliária. Sua seriedade, seu devotamento, bem como suas idéias originais para fazer face às situações inesperadas, fizeram com que

fosse nomeado chefe de agência em uma cidade do Mediterrâneo, para onde a empresa havia-se estendido hã pouco. Casou-se a seguir com uma jovem viúva, e nasce uma criança.

O tratamento foi lentificado aos poucos, mas Blaise continuava a ver seus terapeutas regularmente, vindo de muito longe.

Nosso esforço não cessou de incidir sobre a necessidade de mantê-lo em uma situação de realismo periférico e de suficiente satisfação narcisis- ta, para evitar-lhe a tentação manfaca, não tanto como episódio ativo de uma psicose cíclica, mas como possível novo mergulho esquizofrênico em um movimento agressivo.

Era preciso evitar -lhe a qualquer preço os acessos de megalomania