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A noção de estrutura da personalidade

1. O sentido dos termos

A comunicação entre os psicopatologistasl muitas vezes é diffcil em virtude do modo impreciso e às vezes equivoco segundo o qual é empregado um certo número de termos que, contudo, aparentemente, não parecem colocar proble- mas em especial.

Os adjetivos "neurótico" e "psicótico", por exemplo, demonstram criar muitas ambigüidades latentes em sua utilização corrente. A dificuldade não pro- vém, aliás, tanto de uma incerteza psiquiátrica acerca das característica s ligadas às noções de neurose ou psicose, mas sobretudo de uma falta de rigor ou preci- são acerca do nfve/ real do plano em que nos situamos ao descrever uma entida- de qualquer que se qualifica de "neurótica" ou "psicótica". Fala- se, por exem- plo, de "surto psicótico" ou "defesa neurótica", e os perigos de confusão são

. evidentes e imediatos: um surto brutalmente rotulado como "psicótico", sem prudência, detalhes, nem precisões complementares, pode muito bem corres- ponder apenas a um banal incidente de desrealização no seio de uma estrutura neurótica fortemente maltratada por circunstâncias dramáticas externas ou in- ternas, assim como uma defesa rotulada "neurótica" pode muito bem encon- trar-se em uma estrutura psicótica.

Parece,pois, necessário nos colocarmos de acordo, não para criar uma no- va terminologia, complicada e hermética,mas para estabelecer em que sentido preciso e limitado as palavras usuais podem ser empregadas par a satisfazer tanto as exigências de rigor científico, quanto as certezas de compreensão reci- proca, indispensáveis a toda e qualquer comunicação.

A} SINTOMA

Fala-se habitualmente de "sintoma psicótico" pensando nos comporta- mentos delirantes, nas manifestações alucinatórias, nos fenômenos de desper- sonalização ou nos estados de duplicação da personalidade. Do mesmo modo, considera-se o "sintoma neurótico" como correspondendo a uma conversão histérica, a um ritual obsessivo,ou a um comportamento fóbico.

Entretanto, a experiência cHnica cotidiana leva-nos a reconhecer que um episódio delirante pode muito bem não corresponder a uma organização pro- funda do sujeito, de natureza psicótica; a grande variedade de manifestações fó- bicas, observada tanto em nossos pacientes quanto no homem da rua, obriga- nos a distinguir numerosas fobias que nada têm de realmente neurótico.

Por outro lado, a importância dos dados freudianos citados em nossa pri- meira parta,.· leva-nos a considerar o sintoma em toda a sua dimensão latente e segundo seu valor relativo (e não suficiente em si), relaciona! (ao objeto interno) e econômico (no jogo das defesas e das pulsões, por exemplo, ou da dialética princfpio de prazer-princfpio de realidade).

Certos sintomas do tipo dito "neurótico" podem muito bem servir para

camuflar a origem pré-genital (logo, nada neurótica em si) dos distúrbios, cor- respondendo a uma organização já centrada, em maior ou menor grau, no sis- tema estrutural psicótico. Do mesmo modo, certos sintomas de aspecto dito "psicótico", tais como, por exemplo, certas formas muito agudas de angústia, com ameaça de despersonalização, podem servir defensivamente para mascarar a origem genital e edipiana de um conflito próprio de uma autêntica estrutura neurótica.

Poderia, então, parecer um pouco equívoco qualificar de safda, demasiado

nitidamente, um sintoma como."neurótico" ou "psicótico". Pareceria mais pru- dente e preciso falar apenas de sintoma de

modo ou linhagem neurótica ou psicó- tica, para bem assinalar com isto que nosso ponto de vista qualificativo refere-se apenas

à

natureza do sintoma percebido e ainda não explica, de modo algum, um juízo acerca da natureza da estruturação profunda do

sujeito.

Dito de outra forma, no plano cientifico, convém ocupar-se com o sintoma

único apenas no uso limitado, porém útil, para o qual este sintoma foi construí do, isto é, uma manifestação de superfície

destinada a expressar a presença de um conflito, o retorno de uma parte do reprimido pelos desvios das formações substitutiva s ou das realizações de compromisso (entre desejos pulsionais e im- possibilidade de realizá-los) e também, por fim, mui comumente, das formações reativas de contra-investimento pulsional, quando a elaboração do sintoma se acha mais avançada, sem todavia constituir por isto uma garantia estrutural neurótica.

De qualquer forma, definitivamente, o sintoma não nos permite jamais ,por

B)DEFESA

Em psicopatologia, habitualmente agrupam-se entre as defesas ditas "neuróticas" o recalcamento, a condensação, a simbolização, etc., e entre as de- fesas ditas "psicóticas", a projeção, a negação da realidade, a duplicação do ego, a identificação proj etiva, etc.

Entretanto, não

é

raro encontrar organizações estruturais autenticamente

psicóticas que se defendem contra a descompensação, graças a defesas de mo- dalidade neurótica, mais particularmente obsessiva, por exemplo. Podemos mesmo afirmar, após haver examinado atentamente em consultório psicológico muitos pacientes já rotulados como "neurose obsessiva", que a maioria dos doentes encaminhados por exuberantes manifestações defensivas com compli· cados e impressionantes rituais não se encontram, justamente, no registro neu- rótico; muitas vezes simplesmente buscam lutar desesperadamente contra a in- vasão do seu ego por fantasmas de fragmentação psicótica, pois sua verdadeira estrutura profunda situa-se incontestavelmente no registro da psicose1.

Por outro lado, conhecemos estruturas autenticamente neuróticas que uti- lizam abundantemente a projeção ou a identificação projetiva, em virtude do fra- casso parcial do recalcamento e diante do retorno de fragmentos demasiado im· portantes ou inquietantes de antigos elementos recalcados, cujos efeitos ansio- gênicos devem ser apagados, de modo certamente mais arcaico e mais custoso, porém igualmente mais eficaz.

Da mesma forma, podemos encontrar angústias de despersonalização ou,

mais simplesmente, de desrealização em uma desestruturação mínima (aguda e passageira), de origem traumática (ou mesmo, eventualmente, terapêutica), sem que tais fenômenos constituam o apanágio de qualquer estruturação específica. As bem conhecidas síndromes ansiosas do pós-parto ou do pós-aborto, por exemplo, podem manifestar-se em qualquer estrutura, e mesmo que, por vezes, se possa distinguir aí um sinal de precário equilíbrio subj acente, estes acidentes de percurso ocorrem mais comumente fora de qualquer comprometimento psi· co patológico.

Em uma descrição clínica seria, pois, interessante não falar, por prudência, senão de defesa de modalidade "neurótica" ou "psicótica", sem fazer inúteis pre- visões acerca da autenticidade da estrutura subjacente dos sujeitos que, de outra forma, estariam correndo o risco de se verem mui leviana e demasiado sistema- ticamente inventariados, por vezes de um modo muito pessimista e sem apela- ção.

Cl SIGNIFICAÇÃO HISTÓRICA DO EPISÓDIO

Sem muitas vezes nos darmos conta, tendemos a qualificar apressada- mente como "neurótico" ou "psicótico" um episódio passado, acerca do qual

1 Cabe, aliás, evitar comprometer o sucesso de tais defesas mediante um ataque intem- pestivo ao seu sistema de proteção sob o pretexto

terapêutico de reduzir sua "neurose"'.

ainda não estamos suficientemente informado s, num momento da história do suj eito que não pode ser compreendido no sentido estrutural senão em referên- cia a todo um contexto pessoal mais antigo e latente.

Por sabê-lo, havê-lo verificado, ou simplesmente lido ou ouvido falar que tais sistemas conjugados de def esa, ou tais estados regressivos do ego ou da li- bido são considerados habitualmente de acordo com tal arranjo estrutural durávef, neurótico ou psicótico, se ntimo-nos inclina dos a falar muito apressadamente de "neurose" ou "psicose", quando encontramo-nos simplesmente na presença de um estado momenttlneo da evolução (ou revolução) de uma personalidade ainda bem inconsistente e incerta quanto ao seu futuro estrutural.

Com efeito,em um grande número destes episódios passageiros, concer- nentes principalmente ao registro depressivo (com seus freqüentes corolários hipomanfacos), o ego ainda não concluiu sua maturação, não conseguiu estabe- lecer, definitiva e completamente, os seus limites (no sentido em que o concebe FEDERN, 1926); não operou uma nítida escolha entre os mecanismos de defesa que pretende utilizar de forma específica e seletiva; também ainda não definiu o modo de relação de objeto pelo qual pretenderá regular suas relações com as realidades internas e externas.

Ao empurrar voluntariamente as coisas ao extremo, corremos o risco de

designar pelo termo errôneo "estrutura" uma regressiva indiferenciação soma- to-psíqui ca mais ou menos parcial e mal superada. Esta atitude constitui, no mí- nimo, uma antecipação, por vezes mesmo uma falta no diagnóstico ou prognós - tico.

Ora, sabemos que uma vez colocado, por exemplo, um rótulo de "psicose"

à

cabeceira de um leito ou sobre a capa de um prontuário, f ica bem difícil tirá-lo depois, e que também

é

muito diffcil escapar ao jogo induzido e recíproco no qual participa todo o sistema circundante em relação ao paciente, inclusive, aos poucos, o próprio paciente. Supondo, aliás, que o paciente se opusesse a esta manobra, ainda que o fizesse apenas não se conformando às previsões emitidas, seu protesto legitimo seria rapidamente inter pretado pelo conjunto do grupo de observadores (tornados atores) como uma agressividade de sua parte, muito mal suportada pelo grupo.

O aspecto funcional e não estrutural do episódio mórbido

é

particular-

mente nítido na criança e no adolescente, onde sinais manifestos e aparent es de aspecto psicótico não devem ser automaticamente retidos pelo psicopatologista como correspondentes a uma estrutura psicótica, longe disto.

Este igualmente

é

o caso, no adulto, dos estados passageiros, em mo-

mentos em que as antigas identificações são recolocadas em movimento por in- cidentes af etivos imprevistos. São observados, por vezes, em ocasiões de relati- vas e provisórias flutuações do sentido de identidade, conforme já descrevemos com respeito a um parto, um acidente corporal ou uma intervenção cirúrgica (a coração aberto, em particular: os cardiologistas conhecem bem este gênero de dificuldade).

Podemos assistir, assim, a ligeiras e transitórias modificações do esquema corporal, capazes de mobilizar importantes descargas pulsionais e ansiosas que,

entretanto, permanecem completamente fora de toda e qualquer estruturação psicótica. Mesmo o termo "pré-psicose" (comumente empregado em tais oca- siões) não se mostra conveniente, pois parece necessário reservá-lo a estados ainda pouco avançados na descompensação, mas que já fazem parte da linha- gem psicótica definitiva.

O) DOENÇA MENTAL

Nos casos de verdadeiros episódios mórbidos, os termos "neurótico;' e "psicótico" designam um estado de desadaptação visfvel em relação

à

estrutura própria e profunda.Trata-se de uma forma de comportamento mais ou menos durável, que emana realmente da estrutura profunda, conseqüente

à

impossibi- lidade de enfrentar circunstâncias novas, internas e externas, que ficaram mais poderosas do que as defesas habitualmente mobilizáveis no contexto dos dados estruturais, e unicamente neste contexto. Com efeito, uma doença pode eclodir somente na estrutura que lhe corresponde, e tal estrutura não pode dar origem a qualquer doença.

Existe, pois, uma interdependência funcional e fundamental entre estru-

tura e morbidade e, para definir um episódio mórbido, legitima-se a referência aos mesmos qualificativos usados para as estruturas homólogas:"neurótico" ou "psicótico", por exemplo.

E) ESTRUTURA DA PERSONALIDADE

Afora o caso das "doenças" declaradas, examinado no parágrafo anterior, existe, bem entendido, um outro modo judicioso de utilizar os qualificativos "neurótico" ou "psicótico". Esta oportunidade enco'ltra-se realizada quando, sem estar ainda descompensada, a personalidade contudo já está organizada de modo estável e irreverslvel, com mecanismos de defesa pouco variáveis, um modo seletivo de relação de objeto, um grau definido de evolução libidinal e egóica, uma atitude fixada de modo repetitivo diante da realidade e com um jo- go reciproco bastante invariado dos processos primário e secundário.

Trata-se então, verdadeiramente, de uma estrutura da personalidade, tal

como a definiremos posteriormente. Como no caso anterior, referente

à

doença declarada, também aqui torna-se possfvel falar judiciosamente da estrutura "psicótica" ou "neurótica", por exemplo.

2. O conceito de estrutura da personalidade

A) DEFINIÇÃO E SITUAÇÃO

Talvez seja interessante comparar as definições gerais do termo "estrutu- ra": LITTRÉ apresenta a estrutura como

"um

modo de organizaçS.o que pertence aos corpos organizados, graças ao qual sS.o compostos de partes elementares múlti- plas e

diversas por suanatureza".