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1 ·A linhagem estrutural psicótica

B) A ESTRUTURA PARANÓICA

Dentre as estruturas autenticamente psicóticas, a estrutura paranóica ocu- pa a posição menos regressiva no plano da evolução libidinal, embora não se saiba ao certo se ocupa um lugar mais progressivo que a estrutura melancólica no plano dos desenvolvimentos do ego.

Pode-se dizer que, se a estrutura esquizofrênica encontrava-se marcada por fixações pré-genitais de dominância oral, a estrutura paranóica, por seu tur- no, corresponde especificamente a uma organização psicótica do ego fixada a uma economia pré- genital de preponderância anal, tocando mais particular - mente o primeiro subestágio anal (cf. fig. 2) .

Se a estruturação esquizofrênica representava uma operação de salva - mento destinada a manter com vida um ego bloqueado bem no início de sua emancipação do não-eu, o modo de estruturação paranóico, ao contrário, cons - titui uma posição de retraimento diante de um fracasso na integração dos apor - tes do segundo subestágio anal, o qual situa-se justamente do outro lado da "divided line" descrita por Robert FLIESS (1950). Quando se descreve luxurian- temente os heróicos esforços do sujeito de estrutura paranóica para defender -se contra a penetração anai, é ocasião, certamente, de referir -se aos movimentos de projeção e do duplo retorno da pulsão e do objeto, mecanismos de defesa específicos da economia paranóica, mas convém igualmente ter em conta os in- vestimentos fixados ao primeiro subestágio anal (ou seja, aquele em que o fe - chamento e o domínio do esfíncter ainda não estão totalmente assegurados), antes de nos voltarmos com demasiada rapidez para interpretações homosse- xuais comumente imprecisas e por vezes imaginadas segundo um modo rela- ciona! genitalizado demais para o potenciallibidinal de que dispõe tal sujeito.

Ficamos espantados, ao percorrer a literatura psiquiátrica "clássica" acerca

dos mecanismos paranóicos, em constatar que antes da exposição do caso Schreber por FRE UD (1911 c), o interesse dos autores quase não incidia sobre os aspectos patogênicos e econômicos dos sujeitos de estrutura paranóica. lme-

diatamente após este magistral trabalho, porém, proliferaram os estudos meta- psicológicos acerca dos diversos aspectos levantados na autobiografia do magis - trado que tornou-se também, ao mesmo tempo, enfim célebre..., o que havia sempre esperado, embora talvez não pelas mesmas razões.

Os pacientes "paranóicos" sempre constituíram, para os psiquiatras, um

grupo de doentes apaixonantes, porém temíveis; apaixonantes, por buscarem atrair a atenção e a convicção com poderosos meios afetivos; temíveis, por recu- sarem-se i"ervorosamente a dobrar -se

à

vontade curadora do terapeuta, mais ou menos claramente impregnado de um desejo de onipotência. A etimologia da paranóia, "para-naus", enuncia que se trata daquele que tem "o espírito voltado contra". Efetivamente, são indivíduos pouco fáceis de suportar.

A abordagem psicanalítica, contudo, fez progredir sensivelmente o diálo - go. W . G. NIEDERLAND (1951), M. KATAN (1952), F. BAUMEYER (1956), R. FAIRBAIRN (1956), M. FAIN e P. MARTY (1959), Ida MACALPINE e R. A. HUN- TER (1963), R. W HITE (1963), P. C. RACAMIER (1966),

J.

CHASSEGUET-SMIR-

GEL (1966),

J.

MALLET (1966) trouxeram-nos numerosos esclarecimentos re- ferentes a esta estrutura.

S. FREUD descreve em três etapas sucessivas a forma pela qual o meca- nismo fundamentalmente paranóico trata a pulsão libidinal para chegar ao sen- timento de perseguição: a primeira etapa, mediante uma negação do afeto e uma reversão da pulsão, transforma o "é a ele que amo" em "não, eu não o amo, eu o odeio", passando a agir então a projeção, conjuntamente a um retor- no do objeto; esta segunda etapa transforma o "eu o odeio" em "ele é que me odeia"; na terceira etapa, finalmente, o sentimento assim disposto torna-se consciente e é tratado como uma percepção externa que motiva a posição afeti- va definitiva: "uma vez que ele me odeia, eu o odeio".

S. FERENCZI (1916) insistiu na importância da estimulação da zona eróge- na anal no ponto de partida do mecanismo paranóico, e isto refere-se à primeira fase anal de destruição .

J.

CHASSEGUET-SMIRGEL (1966) falou da "introj eção dirigida" e dos fantasmas "da armadilha" e "da ilha", na necessidade de con- trolar o objeto introjetado, avatar da luta para evitar a penetração anal. Ela in- siste na diferença radical entre o fantasma fóbico, onde a pulsão hostil é voltada contra si, enquanto que a pulsão libidinal acha -se fantasmaticamente realfzada, e

o fantasma paranóico, puramente defensivo, que portanto não permite qualquer satisfação pulsional. Por seu turno, P. C. RACAMIER insiste no aspecto especificamente psicóti-

co da proj eção no mecanismo próprio da estrutura paranóica; trata-se, com efeito, de uma proj eção peculiar, precedida de uma negação da realidade e acompanhada de uma anulação retroativa (undoing dos autores anglo-saxões). Esta proj eção assegur a aquele que proj eta acerca daquilo que proj eta e, mais ainda, de sua própria existência. Com efeito, toda a realidade exterior torna- se constrangedora, desde que mostre uma independência do objeto em relação ao suj eito. O objeto não pode ser tolerado a não ser como instrumento

à

disposição do suj eito, e os obj etos desta estrutura são sempre seres animados vivos, de preferência tendo uma função socia l.

P. C. RACAMIER (1966) most rou que era, além disso, diflcil para tais su- jeitos apreender mais de um único objeto ou idéia de cada vez. O sentimento de perseguição, bem clássico nestas estruturas, corresponde a um arranjo mediano entre solidão e intimidade em relação ao objeto. A megalomania, também o lm- peto no sentido do confronto, são rapidamente temperados pelos limites ou fra - cassos que restabelecem a distância.

A relação e o pensamento também são rapidamente perversificados (no

sentido caracterial do termo) pela erotização, segundo um modo relaciona! anal do tipo sadomasoquista, que igualmente constitu i uma forma vantajosa de ne- gociar o fraca<>so.

O acaso , a surpresa e o imprevisto não são admitidos no universo estru-

tural paranóico q o e deseja repousar, acima de tudo, sobre a lógica e a lei. Um raciocínio que se pretende ativo e resoluto, lúcido e racional, tem a necessidade de operar interpretações ou sistematizações que, mui comumente, em um pri- meiro te mpo,sideram o objeto ou tiram - lhe a convicção . A dúvida vem quando este último apercebe-se de que todo o sistema proposto,por vezes muito lógico em sua textura , repousa de fato sobre uma base aberrante, como uma pirâmide construída a partir do topo, que repousa sobre o solo, a base voltada para cima.

Ora , a est rutura paranóica tem necessidade da adesão do seu objeto a seu

sistema, não podendo sentir-se completo senão a este preço. O obj eto constitui para ele um complemento vital em sua oposição mesma, enquanto funciona - mento mental radicalmente diferente. A este respeito, P. C. RACAMIER mostra judiciosamente o quanto a estrutura paranóica, ante a sua própria pobreza fan- tasmãtica, tem necessidade do outro para fantasiar em seu lugar .

A estrutura paranóica manifesta um sistema dito "linear" de pensamento. Opera, como com os objetos, mediante a utilização de uma só idéia de cada vez, mas apega -se a ela com firmeza e obstinação . Este é seu lado inabalável, carac- terístico e tão irritante para o interlocutor funcional ou terapêutico.

Entenda-se bem que tudo o que acabamos de ver no funcionamento

mental típico da estrutura paranóica acha -se inscrito ontologicamente na relação com ambos os pais, pois para o paranóico o pai desempenha um papel certo e evidente. Contudo ,os autores parecem divididos quanto

à

reciprocidade dos pa- péis: para alguns, o pai não atua tanto como representante masculino quanto como tela em face

à

mãe. Numerosos autores, contudo, defendem uma relação com uma autêntica image m paterna, temperada por vezes (MA LLET, 1966) por uma estaçã o mais fácil,ao nível do irmão mais velho.

A estrutura paranóica,segundo P. C. RACAMIER ,defende-se acima de tu- do contra seus desej os passivos dirigidos

à

mãe e secundariamente ao pai. Sua agressiv 1dade, na medida em que é conscientemente expressa e controlada, se- ria utilizada como defesa contra o amor primário da mãe. Os pais de tais estru- turas fo rmariam comumente "casais invertidos", com uma aparência de domi- nação paterna que mascara a real autoridade da mãe, o que nos levaria, de fato, para bem perto da outra estrutura ontologicamente psicótica, a estrutura esqui- zofrênica, pela potência efetiva do domínio objetai materno em ambos os casos.

Na elaboração estrutural paranóica haveria, além disso, um pai colocado

à

fren -

te, o que contudo não quer dizer que este pai não desempenhe também um pa- pel específico ao nível just amente da erotização anal e do ímpeto tomado por esta estrutura mais elaborada rumo

à

genitalização entrevista inconscientemen - te, mas cuj os meios de negociação permanecem limitados, agressivos, passivos, possessivos, com todas as defesas secundárias acrescentadas a tais bases.

A homossexualidade, tão descrita na estrutura paranóica, não pode ser compreendida sem esta referênc ia a uma "trapaça

sobre a realidade psicológica" (RACAMIER, 1966), e A. C. CARR (1963) mostrou, no caso SCHREBER, o quanto o pai do paciente havia usurpado parte das funções maternais em benefício real e profundo da mãe e com a cumplicidade bem ativa desta, sem dúvida.

A fachada e a conquista social referem-se certamente ao narcisismo ma- terno.

Na criança, as identificações diante de tal potência feminina não podem deixar, ao mesmo tempo, de criar sérios distúrbios da identidade sexual de base, bem como de preparar a relação social em condições fundamentais particular - mente importantes para as manifestações homossexuais reativas constatadas a seguir.

Na linguagem da estrutura paranóica, encontramos o traço do falismo protetor contra os perigos dos desej os passivos. O núcleo fálico defensivo passa pelo plano verbal. A regressão do pensamento aos níveis oral e anal mistura- se a este falismo, na tentat iva de manter o obj eto perdido e temido junto a si em um início de diferenciação proximal. O estilo mostra-se grandiloqüente, altivo, reprobatório e demonstrativo, continuando bastante incoerente. Numerosos neologismos invadem o discurso.

Tem-se muitas vezes citado estados denominados "esquizo-paranóicos". Existe uma "estrutura" propriamente dita correspondente a tais estados?

Parece difícil admiti - lo. Embora não consideremos, absolutamente, ao

longo dos presentes desenvolvimentos, uma passagem possível entre estrutura psicótica e estrutura neurótica (fora dos raríssimos casos da adolescência), pare- ce bem lícito, ao contrário, supor que no interior da linhagem estrutural psicótica a barreira entre estrutura esquizofrênica muito regressiva e estrutura paranóica, muito menos regressiva, não sej a rigorosameRte estanque . Poder-se-ia assim muito bem considerar toda uma série de termos de passagem mais ou menos li-

gados

à

exclusividade das fixações orais, dirigindo-se mais ou menos para mo- dos de organização anais do tipo paranóico.

Não se trata aqui, pois, de defender uma estr ita rigidez estrutural, nem um modelo rigorosamente único de estrutura de um modelo ou de outro.

Entretanto, no que se refere às principais fixações ou regressões da evolu - ção libidinal, bem como ao grau de elaboração do ego, convém observar que em qualquer situação "mista" dÓ tipo esquizo-paranóico, pelo fato mesmo de existir um núcleo organizacional de modelo esquizofrênico, encontram-se também fi- xações e regressões muito arcaicas e um ego ainda muito mal fundado. Os ele- mentos paranóicos acrescentados certamente são de natureza a melhorar o fun- cionamento e o prognóstico, mas não a anular radicalmente os elementos es- truturais mais arcaicos. Da mesma forma que em álgebra menos vezes mais dá

menos, aqui será o lado mais regressivo que obrigatoriamente fará pender a balança econômica para o lado da primazia dos mecanismos esquizofrênicos e se, na clínica, acontecer realmente de se encontrar estados esquizo-paranóicos, parece necessário mais comumente dispor tais estados entre as estruturas fun- damentais do tipo esquizofrênico.