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Ética como marca distintiva

No documento O privado em público (páginas 102-107)

PARTE I LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIGNIDADE HUMANA

Capítulo 3 Novo contexto comunicacional

3.5 Ética como marca distintiva

Perante o novo contexto comunicacional, cujas caraterísticas procurámos esboçar, emerge uma interrogação: reclama a reformulação das normas inseridas em instrumentos deontológicos? Pese embora as profundas mudanças que a Web está a introduzir nas práticas jornalísticas, os profissionais ligados ao meio mantêm a perceção de que devem ser conservados os padrões éticos tradicionais. Foi essa a conclusão de um inquérito realizado em 2010 a ciberjornalistas portugueses: 96,9% dos 67 respondentes afirmaram-no (Bastos: 2010: 18-20). A convicção de que o património ético adquirido deve permanecer como orientação não impede, porém, o reconhecimento de que se deparam com novos dilemas, à cabeça dos quais é identificada (por 72,7% dos inquiridos) a indefinição legal relacionada com a Internet. De salientar que a criação de conteúdos pelas audiências só preocupa 36,4% dos ciberjornalistas envolvidos no estudo.

Os desafios multiplicam-se, como assinalou o provedor (public editor) do “The Washington Post”, Andrew Alexander, em 200923: “Quais são os padrões éticos para edição de imagens

ou conteúdos áudio? Que regras devem orientar o tratamento das informações obtidas através do Twitter ou de sites de redes sociais como o Facebook? Quais as políticas para postar conteúdo gerado pelo utilizador, como fotos? Quais as diretrizes de verificação para linkar material não produzido pelo website do Post?”.

O efeito das transformações tecnológicas nas condutas éticas, objeto de vasta reflexão, levou a PCC a introduzir no seu código, em 2004, normas que visam a proteção de correspondência privada, incluindo comunicações digitais e mensagens via telefone. Ficou então consagrada a proibição de recolha de informações através de câmaras escondidas e de escutas clandestinas, bem como a interceção de comunicações telefónicas, correio eletrónico ou documentos ou fotos não autorizados. Disposições desta natureza, como veremos no Capítulo 3 da Parte II, foram entretanto absorvidas por diversos códigos deontológicos.

A agência de informação espanhola EFE publicou em setembro de 2011 um livro de estilo que apresenta como “primeiro manual jornalístico multimédia”. O documento fixa normas relativamente rígidas de tratamento de informação recolhida na Internet. Páginas oficiais de organismos devem ser encaradas como fontes autorizadas. Já às páginas pessoais é atribuído o valor de testemunho, equivalente a declarações obtidas num inquérito de rua.

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Não são suficientes para sustentar informações, nem devem ser usadas como referência para investigações. Por outro lado, informações e documentos disponibilizados nesse tipo de páginas só são reproduzíveis, citando claramente a origem, “quando têm alto valor informativo ou razoável autenticidade” (Agencia EFE, 2011: 46).

Estando em causa fora, redes sociais, chats, sítios de “Jornalismo Cidadão” e comunidades

wiki ou de contribuição aberta de conteúdos, o livro de estilo da EFE recomenda precaução.

Devem ser consideradas fontes desconhecidas e anónimas, porque embora possam ter valor testemunhal “não cumprem os padrões que exigimos às nossas fontes, nem sequer na identificação de quem as divulga” (idem, ibidem). Qualquer informação recolhida na Internet, determina o documento da EFE (idem, 47), deve ser contrastada e comprovada “como se se tratasse de um rumor”, seguindo procedimentos equivalentes aos adotados no caso de outras fontes. A obtenção de informações ou documentos através de acesso ilegal ou fraudulento, do recurso não autorizado a palavras-passe ou da dissimulação de identidade em chats ou em correio eletrónico é uma conduta tida como violadora da privacidade das fontes.

Grevisse (apud Fidalgo, 2009: 472) está convicto de que a ética é insuficiente “para construir, por si só, uma resposta aos desafios jornalísticos contemporâneos”. Admite, porém, que pode fornecer um quadro pertinente para a reflexão, “na condição de que seja percebida no contexto de uma dinâmica social completa que leve em conta as condições reais de produção”.

Ameaçada a autonomia dos jornalistas, a Deontologia reforça o seu papel como instrumento de salvaguarda da identidade profissional, assegurando o cumprimento da sua função primacial: satisfazer o direito dos cidadãos à informação. O compromisso ético “está rapidamente a tornar-se a única coisa que distingue o jornalista de outros fornecedores de informação que são independentes mas não responsáveis, como os bloggers, ou são responsáveis mas não independentes, como os spin doctors de todos os géneros” (Singer,

apud Fidalgo, 2009: 299).

Nesta perspetiva, a ética deve ser assumida como “elemento constitutivo e diferenciador da profissão de jornalista, por relação com outros ofícios da comunicação mediática” (Fidalgo, 2008: 5). Este autor afirma-se favorável a um back to basics, que entende como back to

ethics. Trata-se de instaurar um “mínimo ético comum”, que “diferencie o Jornalismo de

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e consigo próprio” (Fidalgo, 2009: 479). Suscetível de ser partilhado por todos os jornalistas e tomado como referência, independentemente das opções e práticas.

Reúne a Deontologia virtualidades para assegurar a função de “separação de águas”? Não faltam autores muito pessimistas a este respeito – o título de um artigo de Mesquita (tornado público em 1995, assinale-se) é revelador: “Da (provável) inutilidade da deontologia em tempos de euforia mediática”. No entanto, Mesquita (2004: 227) continua a centrar as suas preocupações na revalorização da Ética: “O que se afigura pertinente discutir, no debate contemporâneo, é a eficácia da autorregulação dos jornalistas, através dos seus códigos deontológicos, a fim de responderem aos desafios de um universo mediático onde a informação surge progressivamente subordinada à lógica da comunicação e do espetáculo”.

Não há dúvida de que é hoje maior a responsabilidade social do jornalista. A sua missão de identificar a pertinência de temas de interesse público é ainda mais reclamada, embora porventura também se tenha tornado mais complexa. “Só o mito da sociedade da informação nos poderá levar a iludir as constantes necessidades de mediação da comunicação, nas sociedades contemporâneas”, observa Camponez (2011: 373). Fidalgo (2009: 119-120) esboça uma leitura da situação: “Num universo global cada vez mais multifacetado e de fronteiras ténues entre o que é ou não é informação socialmente relevante, onde a especificidade do jornalismo nem sempre consegue já ver onde se situar, será porventura cada vez mais importante ‘o que’ se faz, ‘onde’ e ‘quando’ se faz, e cada vez mais decisivo e diferenciador o ‘como’ se faz (a prevalência do processo sobre a crescente ditadura do produto), o ‘por que’ se faz (as motivações, a submissão voluntária de quaisquer interesses particulares a um interesse público) e o ‘para que’ se faz (a responsabilidade social, o compromisso com a dinamização do espaço público e com os cidadãos de uma sociedade livre e criticamente participativa)”.

Face a este cenário, que desencadeou no seio do Jornalismo uma verdadeira revolução – ainda em curso – justifica-se, no entender de Fidalgo, que aos quatro momentos históricos de construção da identidade dos jornalistas identificados por Ruellan, que abordaremos no Capítulo 1 da Parte II, se acrescente um quinto, caraterizado pela emergência de novos desafios. “Muitas das questões sobre a crise identitária dos jornalistas nos anos 90 [do século XX] encontram as suas origens, e talvez algumas das suas respostas, nos tempos, agora longínquos, em que a profissão se foi construindo” (Delporte, apud Fidalgo, 2008: 75). A análise deste autor, datada em 1999, faz ainda mais sentido na atualidade.

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3.6 Síntese conclusiva

As novas tecnologias estimulam a liberdade de expressão e a participação na vida cívica, mas podem, também, constituir canais disponíveis para a intromissão na vida privada. Ao proporcionarem autonomia, domínio e rapidez, transformaram profundamente o modelo comunicacional e, bem assim, o próprio exercício do Jornalismo.

Forçada a adaptar-se às circunstâncias, a Imprensa tradicional entrou em crise, agravada pelo facto de o modelo de negócio na Internet estar por definir. Sob ameaça, tem procurado responder aos novos desafios empreendendo estratégias de concentração empresarial, que aumentam a influência dos grupos de comunicação sobre a opinião pública. A autonomia e a independência dos jornalistas são postas em causa pela precarização das relações laborais, acentuando-se a tendência para a desregulação.

O impacto da tecnologia na esfera deontológica é hoje evidente. Na diluição de fronteiras entre as diversas atividades do campo da comunicação, que afeta o núcleo essencial das funções do jornalista, como na espetacularização da informação. Incentivada com o argumento de satisfazer os interesses do consumidor – objetivo cuja concretização é favorecida pela Internet, ao proporcionar a segmentação de públicos e a personalização da oferta – é, contudo, suscetível de conduzir a situações de invasão da privacidade.

A interatividade assegura uma maior proximidade entre jornalistas e público. As novas tecnologias criam condições para uma relação mais transparente e aberta à crítica, como já compreenderam alguns órgãos de comunicação. Ferramentas como as “caixas de comentários” promovem o debate, mas prestam-se à violação de direitos de personalidade, o que obriga a reforçar a vigilância.

O público, habilitado a participar na produção noticiosa – diretamente ou em parceria com os jornalistas – disseminou canais de difusão de informação. Este fenómeno incontornável, que deu origem ao desenvolvimento de modelos como o “Jornalismo do Cidadão”, torna mais exigente a avaliação da fiabilidade dos conteúdos e a indicação da sua proveniência, em particular quando se concretiza através de sítios eletrónicos de órgãos de comunicação.

A regulamentação do ciberespaço, tecnicamente difícil de concretizar, não é desejável, já que se trata, por excelência, de um espaço de liberdade. A alternativa tem consistido no estímulo à autodefesa dos utilizadores, aumentando a informação acerca de conteúdos

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ilegais e efeitos perniciosos. Até porque cresce a consciência de que a Internet está a redefinir as fronteiras da privacidade, reflexão que também se impõe aos jornalistas.

O perfil do jornalista tem vindo, progressivamente, a ser alterado. A multifuncionalidade cria um novo paradigma e exige polivalência. Como já não detém o monopólio de recolha, tratamento e difusão da informação, o jornalista passa de gatekepeer a sense-keeper, incumbido de assegurar a fiabilidade da informação que difunde, num contexto comunicacional marcado pela sobreinformação. Sob mais apertado escrutínio, não pode deixar de cultivar uma relação aberta com o público – que passa, por exemplo, pelo mais rápido exercício do direito de resposta.

A blogosfera e as redes sociais constituem atualmente instrumentos de pesquisa fundamentais para o jornalista, sendo certo que não dispensam a confirmação das informações recolhidas, em especial quando atingem a honra e a reputação de cidadãos. Por outro lado, a participação nesse universo de jornalistas ligados aos media tradicionais tornou-se uma preocupação, dado o risco de confusão de papéis. Alguns órgãos de comunicação inscreveram nos seus códigos de ética normas de conduta a observar em tais circunstâncias, mas o debate acerca da eventual necessidade de reformular instrumentos deontológicos em função do novo contexto está longe de esgotado.

A ética pode oferecer um quadro de reflexão ajustado às atuais condições de produção de informação e consolidar-se como marca identitária dos jornalistas, capaz de os distinguir dos outros profissionais de comunicação, porque alicerçada no compromisso de satisfazer o direito do público à informação. Trata-se de estabelecer um “mínimo ético comum”, tomado como referência pelo conjunto da classe, cuja responsabilidade social é cada vez maior.

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PARTE II A ABORDAGEM DEONTOLÓGICA

No documento O privado em público (páginas 102-107)