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Conselhos de Imprensa

No documento O privado em público (páginas 126-132)

PARTE II A ABORDAGEM DEONTOLÓGICA

Capítulo 1 Evolução do debate

1.2 Propósitos e instrumentos da autorregulação

1.2.4 Outras modalidades

1.2.4.1 Conselhos de Imprensa

As mais remotas experiências de conselhos de Imprensa são nórdicas. Foram lançadas na Noruega, em 1912, e na Suécia, sob a designação de Tribunal de Honra, em 1916. Em 1947, a Comissão Hutchins recomendou a criação, nos Estados Unidos, de uma organização independente (dos media e do poder político), financiada através de doações, com a missão de avaliar a Imprensa. No mesmo sentido se pronunciou, em 1949, a

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Comissão Real britânica sobre a Imprensa. O modelo foi replicado, com âmbitos nacionais ou regionais, estando hoje também presente fora da Europa, em países como Índia, Chile e Canadá. Em Portugal, funcionou, como veremos no capítulo seguinte, de 1975 a 1990.

Os conselhos de Imprensa não são exatamente instrumentos de autorregulação, na mais estrita aceção do termo, uma vez que podem envolver profissionais, empresas e público. Fórmulas de associação apenas entre jornalistas e patronato, menos comuns, encerram a regulação nas fronteiras do setor. “A experiência demonstra que toda a cooperação privilegia a defesa dos interesses próprios e negligencia a autocrítica” (Bertrand, 2002 [1997]: 97).

A representação múltipla constitui uma mais-valia, como assinala a resolução 1003/93 do CE sobre ética jornalística. O documento defende o envolvimento de jornalistas, editores, associações de utentes dos media e académicos em organismos encarregados de produzir resoluções sobre ética, que os media assumam o compromisso de publicar, e pesquisas periódicas sobre a veracidade das informações divulgadas, que ao avaliar o respeito por padrões éticos funcionem como barómetro de credibilidade.

A intervenção dos CI, cujas decisões incidem sobre órgãos de comunicação e não sobre jornalistas individualmente considerados, assenta sobretudo na apreciação de queixas de cidadãos. Reúnem condições para o debate de questões deontológicas, com a vantagem de envolverem não jornalistas, assim habilitados a julgar os casos com maior conhecimento das práticas e dos constrangimentos profissionais e a partilharem a responsabilidade pelas decisões. A atividade de mediação, por esta via enriquecida, é suscetível de levar os media a corrigirem voluntariamente erros, evitando intervenções judiciais, ou mesmo a alterarem condutas. A possibilidade de através dos conselhos se defenderem de acusações infundadas também deve ser levada em conta.

A presença de personalidades exteriores ao meio jornalístico é tida como indispensável para inviabilizar tentações corporativas. No entanto, estes órgãos não lhes são imunes. O CI português, colocado em 1979 perante a queixa do diretor do vespertino “A Capital” contra um jornalista do “Diário”, relativa a um artigo considerado difamatório, nunca tomou uma decisão, acabando por arquivar o processo. O facto de os envolvidos serem ambos membros do órgão terá contribuído para o desfecho.

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Também a PCC revelou falta de independência no caso das escutas telefónicas ilegais efetuadas pelo jornal “News of the World” (Cfr. Anexo 3), que viria a converter-se em cumplicidade, por omissão, com atos criminosos cometidos por um associado. Não encontrou, em 2007, vestígios de tais práticas e persistiu na atitude de negação em 2011, quando já não era possível esconder as evidências.

O organismo é frequentemente acusado de intervenção tardia. Um relatório de uma comissão da Câmara dos Comuns sobre a situação da Imprensa no Reino Unido no biénio 2009/2010 suscitou essa questão. Os parlamentares concluíram que o comportamento da Imprensa no caso “Maddie” (Cfr. Anexo 3), ao publicar centenas de notícias falsas, ficou a dever-se a fatores concorrenciais, que não podem justificar a diminuição dos padrões éticos. A abordagem da PCC foi apresentada como exemplo negativo: o caso constituiu “um teste importante para a capacidade de a indústria se autorregular”, mas o órgão falhou. “Por não tomar medidas firmes, deixou escapar uma oportunidade de impedir, ou pelo menos atenuar, alguns dos aspetos mais graves deste episódio”.

O argumento da PCC, que decidiu não intervir por estarem em causas matérias a dirimir em tribunal, mereceu fortes críticas. O relatório defendia uma ação mais proativa, anterior às denúncias, mesmo que só veiculada através de avisos públicos. Por outro lado, recomendava ao organismo que impusesse sanções pecuniárias em casos graves de violação do código deontológico e inscrevesse entre os seus poderes o de suspender a impressão de uma publicação.

No Reino Unido, a história da autorregulação está indelevelmente marcada por pressões do poder político, que impulsionaram sucessivas reformas do modelo, nunca logrando travar os excessos da Imprensa tabloide. Na génese do antecessor da PCC – o Press Council, criado em 1953 por sete organizações do setor – esteve precisamente o receio da intervenção estatal. A Comissão Calcutt, nomeada pelo Governo, preconizou a tipificação dos crimes de colocação de aparelhos de vigilância em propriedade privada, captação de imagens a partir de teleobjetivas e gravação de voz sem autorização. A comissão instou os proprietários dos media a criarem um CI, advertindo que, se não tomassem a iniciativa, ela própria se instituiria, por lei, como organismo dotado de poderes para assegurar o respeito pela privacidade e o exercício do direito de resposta.

O Press Council, inicialmente composto por proprietários e jornalistas, alargou-se em 1963 a representantes do público, mas perderia o concurso dos profissionais em 1980, com a saída

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da NUJ, cofundadora do organismo, por não aceitar que a maior parte das propostas das comissões reais fosse ignorada. A extinção, em 1991, do Press Council e o nascimento da PCC “foram causados por uma doença tipicamente inglesa, que é a do público obcecado pela sua privacidade e, ao mesmo tempo, devorador de artigos que relatam a vida privada de outras pessoas”, afirmou em 1991 Kenneth Morgan, ex-membro de ambos os órgãos, no já citado colóquio do SJ sobre deontologia.

Constituída hoje maioritariamente por representantes do público, sendo o presidente designado pelos proprietários de jornais, a PCC adotou em 1991 um código deontológico, curiosamente da autoria de Patsy Chapman, diretora do tabloide “News of the World” (NotW). Dois anos depois, um novo relatório de uma comissão oficial admitiu substituir o órgão por um tribunal, com poder para impedir a circulação de jornais e aplicar multas. As recomendações não foram seguidas, mas impeliram a PCC a empreender novas reformas.

“O mérito da PCC, se é que o tem, baseia-se em dois fatores: o compromisso e o medo. O compromisso é a dedicação dos editores e donos dos jornais. O medo é a ameaça do Governo e do Parlamento à Imprensa. Como se fosse a última oportunidade. Como que uma espada de Dâmocles pendente sobre a Imprensa”, sintetizou Morgan. Instituição frágil desde o início, a PCC “não desencorajou nenhuma das veleidades políticas de controlar a imprensa de forma mais apertada” (Cornu, 1999 [1994]: 46), acabando por tornar-se mais um mecanismo de autorregulação da indústria da Imprensa do que da atividade dos jornalistas (Aznar, 2005: 232).

Em França, onde a tutela deontológica cabe ao sindicato e à Comissão da Carteira de Identidade dos Jornalistas Profissionais, na qual participa, foi lançada em 2006 pela Associação de Prefiguração de um Conselho de Imprensa (APCP) uma tentativa de instituir uma nova entidade. A ideia “nasceu da constatação da existência de um fosso entre os cidadãos, descontentes com o conteúdo e a qualidade dos media, e a escassa atenção concedida pela profissão a estes protestos” (APCP, cit. por Fidalgo, 2010a: 65-66).

Os promotores da iniciativa preconizam um órgão tripartido, com igual número de representantes do público, proprietários de órgãos de comunicação e jornalistas, que aplique sanções de caráter moral e aja exclusivamente sobre a Imprensa. A possibilidade de, sendo criado por lei, funcionar sob a égide da comissão da carteira, com garantias de independência, em vez de assumir o estatuto de associação privada, como defendem os membros da APCP, é a mais provável.

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Entretanto, o sindicato propôs, em congresso, um conselho de deontologia tutelado pela comissão da carteira, semelhante ao criado na Bélgica em 2009 para as comunidades francófona e de língua alemã, com a missão de “investigar a origem das derivas deontológicas nas práticas e no funcionamento do conjunto da cadeia redatorial” (Boletim da APCP, n.º 1) e não apenas o jornalista “situado em primeira linha”. O modelo prevê a publicitação das investigações como única sanção, a representação do público, em posição minoritária relativamente a jornalistas e a editores, e a não aceitação de recurso à justiça enquanto o conselho se ocupa do caso.

A Resolução 428/70 do CE, que entre as medidas destinadas a assegurar a responsabilidade dos media preconizava a disseminação de conselhos, propunha que fossem dotados de poder para investigar e censurar condutas não-profissionais. É essa a modalidade mais comum. Culmina na emissão de um juízo público acerca das queixas recolhidas, que o órgão visado tem obrigatoriamente de divulgar. Excecional é a aplicação de sanções efetivas: multas, como no sueco e no indiano, e penas de prisão, no dinamarquês26.

As fórmulas de designação de representantes da sociedade (Cfr. Boletim da APCP, n.º 1) são diversas: candidaturas, selecionadas por uma comissão (Reino Unido, Irlanda); nomeação por fundação da qual depende o CI (Holanda, Suíça); nomeação por membros do próprio órgão (o secretário-geral, na Noruega), por associações de utilidade pública (Dinamarca) ou pelo ombudsman (Suécia), cujo papel é apreciar queixas do público, decidindo se devem ser encaminhadas para o conselho, embora possa tomar a iniciativa de desencadear a realização de inquéritos.

A ausência de legitimidade comprometeu experiências como a do norte-americano National News Council (NNC), fundado em 1973 pela Twentieth Century Fund, uma instituição não- governamental. Os conselhos não têm tradição no país – nessa época, só funcionavam em Honolulu e no Minnesota, único que sobrevive. O NNC, segundo Jones (1980: 42), enfrentou forte resistência dos meios, que montaram uma campanha contra ele, por ter anunciado que limitaria a sua atividade à apreciação de denúncias contra jornais nacionais. Terá sido mesmo boicotado pelo NYT.

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Contudo, não terá sido essa a principal causa do insucesso. O NNC “nunca estabeleceu um lugar na consciência do público. Os seus membros e funcionários trabalharam em relativa obscuridade e a sua dissolução em 1984 recebeu apenas um lampejo de cobertura dos media” (Ugland, 2008: 3). Este autor não detetou evidências de que tenha sido hostil para com os reclamantes ou tratado de forma desfavorável os media, mas considera que não conseguiu ultrapassar “obstáculos estruturais e processuais” (idem, 19). Pouco recetivo a abordagens menos convencionais das normas, terá ficado demasiado preso a padrões jornalísticos tradicionais. Ofereceu assim argumentos para pôr em causa a sua legitimidade como mediador e enfraqueceu a autoridade moral em matéria de ética.

Um dos obstáculos à consolidação dos CI, que também determinou o fim do NNC, reside na autonomia financeira, indispensável à preservação da independência. Daí que diversos autores recomendem a diversificação de fontes de financiamento, para que se libertem da dependência do Estado ou dos meios empresariais. Bertrand (2002 [1997]: 108) defende o envolvimento de organizações internacionais, agências governamentais, fundações, sindicatos, universidades, etc.

Camponez (2011: 377) assume neste plano uma posição dissonante. Favorável à presença do Estado nos conselhos – é o modelo dinamarquês – sustenta que não impede a crítica ao poder político, tem a vantagem de assegurar o financiamento e permite influenciar debates políticos e legislativos respeitantes ao setor. “Afastar da autorregulação o poder político sem excluir o poder económico seria um contrassenso. Porém, rejeitar à partida ambos seria ainda mais errado”, argumenta, admitindo que os CI podem contribuir para o reforço da credibilidade do Jornalismo, desde que se tornem mais abertos aos diferentes interesses e não se circunscrevam à análise de queixas.

Uma estratégia em múltiplas frentes é a proposta de Bertrand. O conceito de MARS (meios de assegurar a responsabilidade social dos media), que formulou no início da década de 90 do século XX, remete para um conjunto de instrumentos não estatais, alguns dos quais já experimentados, suscetíveis de associar profissionais e público. Estão incluídos os que só têm impacto a prazo, como a educação do público e a formação dos utentes, e os que proporcionam uma ação imediata, como os provedores, além de códigos, conselhos de Imprensa, sistemas de monitorização, relatórios e obras críticas. “Os profissionais sabem bem como melhorar os media e têm boas razões para o desejar, mas são muito frágeis perante as forças políticas e sobretudo económicas. Têm necessidade do apoio das massas de utentes, eleitores e consumidores”, assinala Bertrand (2002 [1997]: 98).

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