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Os dilemas do Conselho Deontológico

No documento O privado em público (páginas 146-149)

PARTE II A ABORDAGEM DEONTOLÓGICA

Capítulo 2 Fixação do modelo deontológico em Portugal

2.3 Os dilemas do Conselho Deontológico

Após a Revolução de 1974, o SJ manteve a capacidade de emitir a carteira, a par da função de representação profissional – situação que na perspetiva de Camponez (2011: 235) ofereceu ao legislador pretexto para a “quase completa captura da autorregulação dos jornalistas” pela lei, na medida em que até a criação de um código deontológico foi imposta. Baseado no projeto elaborado na fase final do marcelismo, o código de 1976 incluía 22 deveres e um conjunto de sanções, da censura à expulsão. Este quadro, circunscrito ao âmbito associativo, não afetava o exercício profissional, porque o processo de atribuição de título era independente da condição de filiado – tacitamente até 1979, formalmente a partir dessa data, por via do Regulamento da Carteira Profissional. Uma eventual expulsão adquiriria, portanto, o valor de punição simbólica, já que o sócio atingido poderia, simplesmente, desvincular-se do sindicato.

Fortemente influenciado pelo período revolucionário, o código não conseguiu iludir as insuficiências da organização sindical. Na ótica de Pina (1997: 52), revelava “um maximalismo de todo em todo inapropriado aos poderes e competências, meramente associativas, de que os jornalistas dispunham para o fazer respeitar”. Ultrapassar essa

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limitação teria de passar por uma de duas alternativas: “pela assunção, por parte do dispositivo deontológico, de uma natureza meramente moral, mesmo que prevendo sanções de tipo associativo, ou pela alienação no legislador ordinário da autonomia dos jornalistas nesta matéria”.

No próprio ano de 1976, segundo Pina (1997: 49), já o SJ admitia a necessidade de rever o código, mas só no congresso de 1986, dedicado à Deontologia, seria apresentado um anteprojeto, de iniciativa sindical, com quatro capítulos (direitos, deveres, incompatibilidades e sanções). Na resolução final do conclave, defendia-se que o novo código fosse “discutido e aprovado, em igualdade de circunstâncias, por todos os detentores de título profissional” (AA. VV., 1986: 7), enunciando apenas deveres e prevendo sanções morais, a aplicar por um conselho deontológico eleito por todos os jornalistas, filiados ou não no SJ.

A natureza das sanções – com impacto profissional ou apenas morais – é tema recorrente dos debates entre os jornalistas portugueses. Voltaria a ser discutida no III Congresso, em 1998. Diana Andringa, então presidente do SJ, sustentou que “aplicar sanções aos jornalistas, sem aplicá-las aos patrões, é reforçar a tendência já latente para ver os jornalistas como culpados, em vez daqueles que os incitam a proceder ao arrepio das regras éticas” (AA. VV., 1998: 35).

A ausência de condições para assegurar o respeito pelo código é um dilema com o qual o sindicato se debate desde 1976. O primeiro Estatuto do Jornalista, aprovado três anos depois, determinava que o Código Deontológico incluísse “garantias do respetivo cumprimento” e responsabilizava diretamente a organização sindical pela aplicação de sanções. O SJ apressou-se a criar o CTD, para dar satisfação às disposições. Mas o problema persistia. E não seria superado com a aprovação de um novo código.

O texto de 1993, cujas caraterísticas analisaremos mais adiante, traduziu, em grande medida, a intenção de retirar a carga ideológica ao código então vigente. Condensado em dez normas, não deixou, ainda assim, de o acolher como fonte direta, a par de um anteprojeto da autoria de Oliveira Figueiredo, presidente da Assembleia Geral do SJ, e de vários códigos de âmbito nacional e supranacional.

Uma alteração aos estatutos do SJ operada em 1990 substituíra o CTD pelo CD, eleito por método de Hondt, em lista separada dos restantes corpos gerentes. Tratou-se de mais um passo no sentido de assegurar a autonomia do órgão, mas não foi aproveitado – até hoje, só

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numa ocasião se apresentou a sufrágio uma lista alternativa, exclusivamente para o conselho.

A Direção do SJ liderada por João Mesquita defendeu, em 1993, que qualquer jornalista, independentemente da condição de sindicalizado, dispusesse de capacidade eleitoral ativa na escolha dos membros do CD. O Conselho Geral tomou, mais tarde, posição no mesmo sentido. A estratégia, que esbarrou nos limites da intervenção sindical, teria a vantagem de conferir representatividade e legitimidade ao órgão, mas comportava o risco de subordinar sócios à vontade de não-sócios.

De acordo com o levantamento realizado por Camponez (Cfr. 2011: 327-354), que abrange o período entre 1974 e 2007, até 1990 a ação do CD foi essencialmente “autocentrada: de jornalistas, por jornalistas e para jornalistas” (idem, 333), o que se deverá ao facto de predominantemente se ocupar da emissão e revalidação de carteiras e do escrutínio de incompatibilidades.

Entre 1991 e 1996, durante os mandatos de Daniel Reis, o conselho assumiu-se como de autorregulação “de jornalistas e para jornalistas”. Em regra, as queixas de cidadãos eram arquivadas, porque entendia não dispor de competências para as apreciar. Estratégia oposta foi adotada sob a presidência de Óscar Mascarenhas (1996-2000). A possibilidade de o CD se pronunciar sobre participações do público, que aumentaram no mandato 1998- 2000, ficaria mesmo inscrita nos novos estatutos do SJ, aprovados em 2009.

O estudo de Camponez revela quão escasso é o número de queixas relacionadas com direitos dos cidadãos – respeito pela imagem, dor e vida privada, condições de serenidade no contacto com protagonistas de notícias, discriminação ou identificação de menores e de vítimas de violência –, sendo todas apresentadas após 1988. A maior parte das queixas foi canalizada para a AACS, no período em que funcionou. Nos últimos três anos, poucas mudanças se registaram: com este tipo de conteúdo, o CD recebeu 3 queixas (uma das quais também remetida à CCPJ) em 2009 e outras tantas no ano seguinte (duas apresentadas igualmente à ERC). Não há registo de qualquer participação em 2011.

Influenciada pela interpretação que os membros do órgão fazem das suas funções – mais restritiva nos mandatos de Reis, mais aberta nos de Mascarenhas, ao longo da década analisada – a atuação do conselho sai prejudicada. “Não se pode dizer que estejamos

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perante um órgão que se impôs quer pelo caráter sistemático quer pela coerência de procedimentos, ou ainda pela jurisprudência produzida” (Camponez, 2011: 348).

A ausência de publicidade, que compromete a eficácia da autorregulação, manteve-se como prática institucionalizada, contrastando com a publicação obrigatória de deliberações, caraterística do antigo CI. De facto, só recentemente passaram a ser publicadas no sítio eletrónico do SJ e de forma irregular.

Carvalho (2002: 102) sustenta que “o órgão deontológico dos jornalistas está limitado pelo instinto corporativo da classe”. Reconhece, porém, atento aos constrangimentos do exercício profissional, que a apreciação de infrações deontológicas não deve envolver só os jornalistas, “dado que isso escamotearia o contexto empresarial que tantas vezes as explica”. Daí a conclusão: “o problema deontológico só poderá ser resolvido no âmbito das empresas e nunca entre os jornalistas”.

No documento O privado em público (páginas 146-149)