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Lei inspirada no código

No documento O privado em público (páginas 156-160)

PARTE II A ABORDAGEM DEONTOLÓGICA

Capítulo 2 Fixação do modelo deontológico em Portugal

2.7 Lei inspirada no código

O legislador inspirou-se no Código Deontológico, mas não efetuou uma transposição direta das suas normas para o Estatuto do Jornalista. Nuns casos, introduziu conceitos em relação aos quais o “decálogo” profissional é omisso. Noutros, operou uma junção de preceitos constantes em pontos distintos. Na descrição dos deveres, a lei é mais específica em certas situações e mais restritiva noutras. A amálgama nem sempre proporciona maior clareza na enunciação dos deveres, mas demonstra que o quadro legal não coincide exatamente com o estabelecido no instrumento autorregulatório.

No domínio dos deveres cuja infração não é disciplinarmente sancionada (art.º 14.º, n.º 1), o EJ substitui a expressão informar com “rigor e exatidão” por “rigor e isenção”, mantendo a rejeição do sensacionalismo e a distinção entre factos e opinião. O repúdio da censura e a obrigação de denunciar condutas que atentem contra a liberdade de expressão e o direito de informar são absorvidos. Contudo, a lei não inclui nos deveres a luta contra restrições no acesso às fontes.

É reproduzida quase integralmente parte do ponto 10 do código, relativa à recusa pelo jornalista de funções ou tarefas “suscetíveis de comprometer a sua independência e integridade profissional”. De fora, ficou a norma segundo a qual “não deve valer-se da sua condição profissional para noticiar assuntos em que tenha interesse”, questão suscitada,

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curiosamente, no primeiro processo apreciado pela CCPJ, que conduziria ao arquivamento de uma queixa contra o jornal “O Mirante”, por ausência de suporte legal para sancionar.

Em matéria de fontes de informação, o EJ usa a mesma expressão do código – audição de “partes com interesses atendíveis” – e acolhe as regras da identificação e da atribuição de opiniões. É, contudo, diferente a redação relativa à proteção da confidencialidade das fontes, dever cuja violação é passível de sanção disciplinar. Enquanto o código a toma como absoluta, “mesmo em juízo”, o estatuto recorre à expressão “na medida do exigível em cada situação”, remetendo para o art.º 11.º, que regulamenta as condições de quebra de sigilo, a que já aludimos no Capítulo 1 da Parte I.

Trata-se de uma questão controversa, como ficou patente no caso “escutas de Belém” (Cfr. Anexo 3). A CCPJ sancionou a conduta da Direção do DN, argumentando que a confidencialidade das fontes “representa um dever dos jornalistas, coletivamente considerados, perante todas as fontes, suas ou de outros jornalistas” (Decisão do Plenário, 13/10/2010), não sacrificável em nome do interesse público, que o EJ, neste particular, não admite como exceção, ao contrário do que ocorre em relação ao incumprimento de outros deveres.

O Estatuto confere âmbito mais alargado à norma que previne a instrumentalização do jornalista. À admissibilidade de quebra do sigilo em caso de tentativa de o usar para veicular informações falsas, junta outra situação: “para obter benefícios ilegítimos”. A exceção, acolhida no código português em 1993, só encontra semelhanças no aprovado poucos meses depois pela espanhola FAPE, segundo o qual o dever de preservar o anonimato da fonte cede caso se demonstre “com segurança que a fonte falseou de maneira consciente a informação ou quando revelar a fonte seja o único meio para evitar um dano grave e iminente para as pessoas”.

A norma não é pacífica na classe jornalística, mas só por duas vezes foi invocada como fundamento para revelar a identidade de fontes de informação. Na origem da sua introdução no código estiveram dois casos em que o CTD desobrigou os jornalistas envolvidos de manterem o sigilo. No primeiro, um deputado forneceu informações sobre um membro do Governo e, após a notícia, denunciou no Parlamento uma alegada campanha contra o governante. No segundo, um polícia “leu” passagens de um suposto documento oficial sobre uma investigação que o jornalista tinha em curso, mas, uma vez publicada a notícia, este constatou que a intenção fora, através de um documento apócrifo, sabotar a investigação.

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Mais dois jornalistas solicitaram parecer ao órgão deontológico do SJ. Em 1987, Celestino Amaral, do “Expresso”, noticiou, no âmbito do “caso D. Branca”, a suspeita de suborno de um agente do Ministério Público, que o processou judicialmente. A fonte, que poderia vir a ser testemunha, faltou a sucessivos encontros, mas o jornalista, reconhecendo ter-lhe sido passada informação falsa, afirmava não saber se o fez de má-fé ou com intenção de usar o jornal para atingir alguém (Cfr. Parecer CTD, 20/5/1987). Em 1993, Helena Sanches Osório (“O Independente”) apresentou o pedido de apreciação no decurso do julgamento de Carlos Melancia (Cfr. Parecer CD, 26/4/1993). Em ambas as situações a decisão foi deixada ao critério dos jornalistas.

No caso DN/Fernando Negrão (Cfr. Anexo 3), o CD sustentou que a invocação da exceção prevista no código pode ser inútil – se a fonte é confidencial, como prova o jornalista que o tentou instrumentalizar? Chamando a atenção para o efeito danoso da quebra do sigilo no coletivo profissional, o órgão sublinhava que tomar essa atitude exige que não persista a mais pequena dúvida sobre a premeditação de quem presta informações falsas. “Havendo uma fonte confidencial é o jornalista que se interpõe entre a fonte e a responsabilidade” (Comunicado CD, 8/7/1999), pelo que a fonte deve merecer “confiança indestrutível” e apresentar provas das informações que fornece.

No segundo caso de denúncia de fonte confidencial – Rádio Renascença/Armando Vara (Cfr. Anexo 3) – o CD invocou o princípio da credibilidade dos media para contestar o comportamento da estação. Na perspetiva do órgão, deveria ter simplesmente reafirmado a notícia, apesar do desmentido do ministro.

A alínea do EJ sobre a retificação de incorreções ou imprecisões determina ao jornalista que o faça quando lhe sejam imputáveis, enquanto o código recomenda que “promova a pronta retificação das informações que se revelem inexatas ou falsas”. A diferente redação não é de somenos. A lei não tem em conta o facto de a retificação não depender apenas do autor de um texto. A expressa “promova” – junto de superiores hierárquicos, por exemplo – é mais consentânea com as práticas profissionais.

O estatuto reúne numa única alínea princípios inscritos em dois pontos distintos do código – respeito pela presunção de inocência e abstenção de formular acusações sem provas. A violação deste último é, no código, tomada como “grave falta profissional”, a par do plágio, conduta que a lei opta por descrever (“não utilizar ou apresentar como sua qualquer criação ou prestação alheia”).

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Ao dar parecer, em 2006, sobre a revisão da lei, o SJ propôs, sem sucesso, uma formulação diferente: é dever do jornalista “abster-se de formular acusações sem elementos de prova suficientes que permitam sustentar a convicção das imputações e respeitar a presunção da inocência”33. Embora a convicção não baste para fundamentar a veracidade de imputações,

esta redação aproxima-se mais da doutrina jurídica. O jornalista tem apenas de demonstrar a plausibilidade dos indícios que apresenta, desde que aja de boa-fé e cumpra rigorosamente a sua legis artis, uma vez que não está ao seu alcance a recolha de meios de prova que a lei permite às autoridades policiais.

O código postula que o jornalista “deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor” e “atender às condições de serenidade, liberdade e responsabilidade das pessoas envolvidas”. Também neste particular o estatuto se inspira em dois pontos diferentes daquele documento. A questão das condições de contacto com protagonistas de notícias – central quando estão em causa direitos individuais – é condensada numa só frase: “abster- se de recolher declarações ou imagens que atinjam a dignidade das pessoas através da exploração da sua vulnerabilidade psicológica, emocional ou física”.

Em matéria de não-discriminação, a lei é mais específica, alargando a conduta, que pode conduzir a sanção disciplinar, a situações que envolvam “ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.

Enquanto o código determina a utilização de “meios legais para obter informações, imagens ou documentos”, o EJ recorre a uma formulação pela negativa – proíbe o recurso a “meios não autorizados”, assim ampliando o âmbito da norma. No entanto, admite como exceções o “estado de necessidade para a segurança das pessoas envolvidas” e o interesse público.

A não identificação, direta ou indireta, de vítimas de crimes sexuais é comum ao estatuto e ao código, mas a lei estende o dever de ocultar a identidade a vítimas de crimes contra a honra ou a reserva da vida privada, “até à audiência de julgamento, e para além dela, se o ofendido for menor de 16 anos”. Quanto à não identificação de menores, o código usa a expressão genérica “delinquentes menores” e o estatuto, além da situação referida, especifica que se trata de “menores que tiverem sido objeto de medidas tutelares sancionatórias”.

33 Posição do Sindicato dos Jornalistas sobre a Proposta de Lei n.º 76/X/1, que altera o Estatuto do Jornalista

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O código recomenda respeito pela privacidade, exceto “quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende”. O EJ faz depender da “natureza do caso” e da “condição das pessoas” a observância do princípio. Por outro lado, contempla o conceito de reserva da intimidade, a preservar “salvo razões de incontestável interesse público”.

A expressão “manifesto interesse público” foi utilizada pelo legislador para caraterizar a exceção à regra da identificação como jornalista, consagrada no código. Os dois documentos condenam o abuso da boa-fé, mas o estatuto é mais específico: estabelece como dever do jornalista não encenar ou falsificar situações com esse objetivo.

No documento O privado em público (páginas 156-160)