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Interesse público e privacidade

No documento O privado em público (páginas 35-39)

PARTE I LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIGNIDADE HUMANA

Capítulo 1 Direito à informação e direitos de personalidade

1.3 Interesse público e privacidade

O interesse público, valor primacial do Jornalismo, é frequentemente invocado na prática profissional como justificação para intromissões na vida privada. Decorrente do direito-dever dos jornalistas a informar, para satisfação do direito do público a ser informado, é, porém, de difícil conceptualização: não é interesse nacional, não é interesse do público, não tem forçosamente a ver com a pertença dos envolvidos à esfera pública ou com a natureza pública do facto relatado. A questão pode ser enquadrada no dever de verdade a que os jornalistas estão vinculados. “A informação jornalística concerne uma verdade que interesse à sociedade civil e não à esfera privada. Liga-se a um aspeto específico da verdade, que é de interesse público. Significa isso que não se destina a perseguir todas as verdades. As que não são públicas não são da sua competência” (Cornu, 1999 [1994]: 403).

Perante o risco de conflito entre direito à informação e direitos de personalidade, a barreira a erguer convoca outro valor, que deve nortear a atividade do jornalista: o respeito pela dignidade humana. Admitindo que a expetativa do leitor, ouvinte ou espetador também é tomada em consideração, Wemans (1999: 64) traça justamente esse limite: “O que interessa ao público é publicável se não conflitua com outros direitos. Se entra em confronto com outro qualquer direito, o interesse público de uma informação só existe se sem ela a opinião pública formulasse juízos errados ou insuficientemente fundamentados sobre pessoa, instituição ou matérias do domínio público”. Todavia, adquirido que esteja o interesse público da notícia, não pode o jornalista ignorar que sacrifica o direito de alguém, quando conflitua com a sua privacidade.

Sara Pina (1997: 87-88) coloca o problema de forma ainda mais direta. Na sua ótica, nenhum interesse público justifica o desrespeito pela dignidade da pessoa humana, que “é, em si própria, um valor superior, limitativo do próprio poder constituinte”. A exceção do interesse público é, portanto, apenas invocável “se o trabalho jornalístico rigorosamente respeitar o exigível dever de cuidado com a proporcionalidade e adequação da ingerência ao estritamente necessário para a efetivação do interesse público”. Diferente perspetiva apresentam Whittle e Cooper, convictos de que um conceito é parte integrante do outro: “A perceção atual é de que há interesse público em preservar a privacidade pessoal” (Whittle et

al., 2009:49).

A ténue linha de separação entre os dois domínios obriga a uma apreciação casuística, seja em sede de autorregulação, seja na Justiça. Era essa a perceção, já em 1988, de Christopher Meyer, ex-presidente da Press Complaints Commission (PCC), a comissão

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britânica de queixas de Imprensa. “Nunca haverá uma decisão absolutamente definitiva, tomada por juízes ou pela PCC que trace uma linha de aplicação geral entre o espaço privado e o interesse público. É claro que os tribunais e a PCC tomam as suas decisões no âmbito da respetiva jurisprudência. Mas, no final, há uma apreciação caso a caso e um certo grau de subjetividade é inevitável. É por isso que casos de privacidade, sejam julgados por tribunais ou pela PCC, serão controversos até o fim dos tempos” (apud Whittle et al., 2009: 63).

A avaliação das justificações para a invocação do interesse público só é, em regra, feita a

posteriori. Miguel Sousa Tavares sustenta que “não é possível exigir que um jornalista no

ato de informar não tenha o direito de fazer um julgamento sobre o interesse público. Aquilo que é possível exigir é que alguém venha posteriormente fazer um julgamento sobre o julgamento que foi feito pelo jornalista” (in AA. VV., 1996: 137). A tese assenta na liberdade conferida ao jornalista de selecionar os factos a investigar e decidir sobre os métodos de pesquisa e a forma de transmitir a informação, bem como no respeito pelo princípio, central na ética profissional, de que deve agir, em todas as circunstâncias, em conformidade com a sua consciência. Levado à letra, este princípio confere enorme poder ao jornalista, individualmente considerado. Sendo certo que interpretações flexíveis do conceito de interesse público, por natureza difuso, tornam-se arriscadas, porque suscetíveis de ceder à arbitrariedade.

A redução da margem de discricionariedade só pode brotar da reflexão empreendida no seio de uma redação. O exercício jornalístico é muito mais coletivo do que individual, pelo que tomar decisões partilhadas é, se não exigível, pelo menos recomendável. No limite, pode culminar no reconhecimento de que prevalecem valores mais importantes. “O questionamento ético das decisões editoriais impõe o dever de suspender ou de não publicar informações, em casos de eventual conflito entre o direito a informar e o dever de proteger os direitos individuais” (Mesquita, 1998: 70).

Como assinalam Whittle e Cooper (2009: 5), a partir da análise do caso Max Mosley (Cfr. Anexo 3), duas questões centrais devem ser debatidas: qual a natureza da vida privada e que comportamento justifica a sua intrusão pelos media; qual a natureza do interesse público e como deve ser hoje definido. Num estudo baseado em entrevistas a jornalistas, académicos, juristas e bloguistas, aqueles autores empreendem um esforço de sistematização das razões mais frequentemente apresentadas como justificativas da invasão da privacidade de figuras públicas, com fundamento no interesse público.

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A primeira é a contradição entre o comportamento privado e o discurso público. Presente em diversos normativos de Deontologia jornalística, a denúncia de condutas deste jaez não está isenta de riscos. Por um lado, porque pressupõe a avaliação dos efeitos da hipocrisia na esfera pública – alguns media norte-americanos trataram o caso Clinton-Lewinsky na ótica do adultério, como se o comportamento sexual influenciasse a aptidão de Bill Clinton para o cargo de presidente. Por outro lado, porque se presta a abordagens moralistas, arrogando- se o jornalista o direito de agir como “polícia” de costumes – a Imprensa inglesa não se inibiu de revelar os tratamentos a que a modelo Naomi Campbell se submeteu (Cfr. Anexo 3), com o argumento de que não assumira a sua toxicodependência. Finalmente, porque é passível de causar controvérsia em torno da legitimidade da invocação do interesse público – no caso Jim West (Cfr. Anexo 3), o editor da revista sentiu necessidade de explicar publicamente as opções tomadas.

A segunda razão identificada por Whittle e Cooper é a prestação de contas, por parte das figuras públicas. Não apenas políticos, uma vez que o exemplo que estes autores apresentam é o de um homem de negócios que usa dinheiro da empresa para alimentar uma relação secreta (Whittle et al., 2009: 15).

Um terceiro argumento, que pode designar-se como privacidade “pactuada”, consiste na ideia de que se alguém recorre aos media para se promover, exibindo uma parcela da sua vida privada, não pode impedir que outras partes sejam expostas. O quarto – quem adquire o estatuto de figura pública, sacrifica o seu direito à privacidade – também não pode ser invocado em quaisquer circunstâncias. A autorização implícita para abordar assuntos da esfera privada, que derivaria do estatuto, abre um campo tão vasto quanto perigoso. A mesma crítica pode ser feita em relação a outra razão, invocada sobretudo pela chamada Imprensa “cor-de-rosa” em relação a celebridades: enquanto modelos sociais, a sua vida privada está sujeita a mais apertado escrutínio.

Whittle e Cooper (2009: 97) concluem que qualquer justificação de interesse público, na esfera jornalística, deve incluir diversos aspetos. A saber: a exposição ou deteção de crimes ou de comportamento antissocial; a possibilidade de evitar que as pessoas sejam enganadas por uma declaração ou ação de um indivíduo ou organização; a divulgação de informações que permitam tomar uma decisão informada sobre assuntos de interesse público ou revelem incompetência que afete o público; a promoção de um debate informado sobre questões-chave; a promoção de prestação de contas e transparência das decisões e

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despesas públicas; o combate à fraude e à corrupção; a promoção da concorrência; o contributo para que as pessoas entendam e possam contestar decisões que as atingem.

A dificuldade de definir com clareza o que se entende por interesse público, enquanto fonte de legitimidade do Jornalismo, explicará o facto de poucos códigos deontológicos ou de ética sistematizarem as situações em que é suscetível de ser invocado. O Código de Práticas Editoriais da PCC atribui interesse público à liberdade de expressão, em si própria e admite que pode cobrir diversas situações, como exceção. Todavia, embora esclarecendo que não se limita a elas, toma o interesse público como incontestável em quatro, devidamente tipificadas: descoberta ou revelação de crime ou grave delito; descoberta ou revelação de comportamento antissocial grave; defesa da saúde e segurança pública e prevenção do público, quando subsiste o perigo de ser ludibriado por uma declaração ou ação, seja de indivíduo ou de organização.

A avaliação, casuística, do interesse público é, na Grã-Bretanha, confiada aos responsáveis editoriais – cabe-lhes demonstrar “convicção razoável” de que pode ser invocado. Quando determinada questão já é do domínio público ou vai ser, a PCC avalia se pode ser objeto de notícia. Em 1998, o código passou a determinar que casos envolvendo menores de 16 anos exigem demonstração de “excecional interesse público”.

Neste domínio, os códigos do regulador de radiodifusão (Ofcom) e da BBC inspiram-se no da PCC. O primeiro acolhe-o genericamente e inclui a denúncia de “alegações enganosas”, acrescentando a divulgação de incompetência capaz de afetar o público. O segundo, reconhecendo que não existe uma única definição, identifica como matérias de interesse público a exposição e deteção de crime ou comportamento significativamente antissocial; a exposição de corrupção e injustiça; a divulgação de incompetência ou negligência; a proteção da saúde e segurança das pessoas; a prevenção do público quando há perigo de ser enganado por uma declaração ou por uma ação (formulação, neste particular, muito semelhante à da PCC) e a divulgação de informações que permitam ao público tomar decisões mais informadas sobre assuntos de importância pública.

Fora do universo mediático britânico, referência apenas para o código de ética austríaco, que além de incluir crimes graves, proteção de segurança pública ou saúde e prevenção do público para enganos, proclama expressamente que a publicação de fotos em violação da esfera íntima apenas para satisfazer propósitos “voyeuristas” não corresponde ao interesse público.

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No documento O privado em público (páginas 35-39)