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Segredo de justiça

No documento O privado em público (páginas 75-80)

PARTE I LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIGNIDADE HUMANA

Capítulo 2 Proteção legal de direitos de personalidade

2.6 Segredo de justiça

Em Portugal, a publicidade do processo penal é a regra, o que pressupõe a assistência pelo público a atos processuais. O juiz pode, no entanto, decidir em contrário, por despacho fundamentado no “grave dano” à dignidade das pessoas, à moral pública ou ao normal decurso do ato que a publicidade causaria, sendo a decisão revogada quando cessarem os motivos que lhe deram origem. Atos relativos a crimes de tráfico de pessoas ou contra a autodeterminação sexual decorrem, por norma, com exclusão de publicidade. Pessoas que o juiz reconheça terem “razões atendíveis”, nomeadamente de natureza profissional ou científica, podem, ainda assim, assistir.

O princípio da publicidade não inclui dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meio de prova. Cabe à autoridade judiciária especificar os elementos que se mantêm em segredo de justiça e, eventualmente, ordenar a sua destruição ou entrega a quem diga respeito. Aos media, estão vedados, sob pena de desobediência simples, diversos atos, como a reprodução de peças ou documentos incorporados no processo até sentença em 1ª instância, salvo exceções; a publicação da identidade de vítimas de crimes de tráfico de pessoas, contra a liberdade e autodeterminação sexual, honra ou reserva da vida privada, exceto se autorizarem ou se o crime tiver sido cometido através de órgãos de comunicação; a publicação de conversações ou comunicações intercetadas no âmbito de processo, salvo se não estiverem sob segredo de justiça e os intervenientes consentirem.

Quem manifestar “interesse legítimo”, pode solicitar a consulta de processos não abrangidos pelo segredo, cabendo à autoridade judiciária a autorização. A consulta e obtenção de cópia, extrato ou certidão não invalida a proibição de narração de atos processuais ou a reprodução dos seus termos pelos media.

O segredo de justiça, cujo objetivo é proteger a eficácia da investigação criminal, em determinada fase do processo, bem como as partes (queixosos e arguidos, neste caso para salvaguardar o princípio da presunção de inocência), também visa garantir a imparcialidade do poder judicial, para que não seja influenciado ou pressionado por julgamentos mediáticos. Regulado pelo CP e pelo CPP, usufrui de dignidade constitucional desde 1997 (sobre a evolução do quadro legal, Cfr. Araújo, 110-124).

A constitucionalização do segredo de justiça torna-o, no entender de diversos autores, um valor passível de ponderação, no cotejo com o direito à informação, perante o qual, antes, tinha de ceder. Marinho Pinto (in AA. VV., 1998: 144) discorda da opção, porque encara o

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segredo de justiça como “mero instrumento acessório da investigação criminal”. Convicto de que se criaram condições para punir jornalistas pela sua violação – o que até então dificilmente poderia acontecer, caso agissem de boa-fé e por motivos profissionais – não lhe é indiferente o facto de ter sido inscrito na Lei Fundamental num momento em que diversas figuras públicas eram alvo de processos muito mediatizados.

O parecer 121/80 da PGR reconhece tratar-se de um campo onde é notória a “tensão dialética” entre diversos interesses. Desde logo, o interesse do Estado na realização da Justiça. Mas também o interesse de obstar a que o arguido perturbe o processo, eventualmente subtraindo provas, o interesse do próprio arguido em não ver revelados publicamente factos que podem não vir a ser provados, mas prejudicam a sua reputação, e o interesse dos ofendidos.

Cabe ao juiz de instrução, a requerimento de qualquer das partes, determinar a aplicação de segredo na fase de inquérito, por despacho irrecorrível, se entender que a publicidade é prejudicial aos direitos de participantes. O MP está habilitado a tomar uma decisão nesse sentido, mas tem de ser validada pelo juiz. Pode ser incriminado, arriscando pena de prisão ou multa, quem der conhecimento ilegítimo, no todo ou em parte, do teor de um acto de processo penal sob segredo.

A questão da vinculação dos jornalistas é objeto de permanente controvérsia. Até à reforma legislativa de 2007, de acordo com Patrício e Geraldo (2009: 56), “era sempre necessário, constituindo requisito fundamental da punição da violação do segredo de justiça, que o agente tivesse efetivamente ‘contactado com o processo’”. Isto porque o n.º 4 do art.º 86.º do CPP determinava a incriminação de “todos os sujeitos e participantes processuais, bem como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo e conhecimento dos elementos a ele pertencentes”. Com a alteração operada nesse ano (inscrita no n.º 8), a conjunção “e” foi substituída, nesta última frase, por “ou”. Tal significa que de cumulativo o requisito passou a alternativo. Em simultâneo, foi introduzida no n.º 1 do art.º 371.º do CP a expressão “independentemente de ter tomado contacto com o processo”, o que leva Paulo Pinto de Albuquerque (cit. por Patrício et al., 2009: 60) a concluir que a reforma de 2007 visou, neste plano, incluir os jornalistas na vinculação ao segredo de justiça.

No entanto, a primeira condenação, em democracia, de um jornalista por violação do segredo de justiça (Cfr. Anexo 3, RDP-Guarda/João Raimundo) ocorreu ainda na vigência

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do anterior regime legal. Casos como este e o da detenção de uma jornalista na redação (Cfr. Anexo 3, Rádio Altitude/Abílio Curto) revelam diferentes interpretações da lei por parte dos tribunais.

A tese de que a obrigação de guardar segredo não respeita apenas a quem tem contacto direto com o processo, fundamento da condenação no caso Rádio Altitude/PJ (Cfr. Anexo 3) tem vindo a ser abertamente contestada pelos jornalistas. Marinho Pinto (in AA. VV., 1998: 145) sustenta que deve vincular “apenas quem, por força da sua profissão, toma contacto com o processo e não o jornalista que, por imperativo legal e profissional, noticia factos de interesse público contidos nesse processo”.

Em que medida o segredo de justiça afeta o direito à informação? A questão é há anos debatida, muitas vezes a pretexto da mediatização de casos e tomando-os como referência, o que retira serenidade à argumentação. A publicidade total dos processos comprometeria a eficácia da investigação criminal e, pelo menos potencialmente, a imagem pública dos arguidos. Mas o segredo pode ocultar situações de violação dos direitos dos arguidos, má administração da justiça ou irregularidades processuais. Passível de impedir a análise crítica de decisões de acusação ou arquivamento, pode “dar cobertura a motivações menos claras das autoridades policiais ou judiciárias, ciosas de apresentar resultados rápidos do seu trabalho ou, eventualmente, receosas de atingirem sujeitos particularmente poderosos ou influentes ou de contenderem com interesses instalados” (Machado, 2002: 563).

A questão reside, para Machado, no equilíbrio ou na harmonização entre valores. O segredo de justiça não constitui um fim em si mesmo, pelo que quando restringe a liberdade de informação deve limitar-se ao necessário para assegurar a realização e a eficácia do inquérito – pelo menos nos casos a que estão associados titulares de cargos políticos ou figuras públicas e “tratando-se de crimes realizados no exercício das suas funções ou outros crimes considerados graves” (idem, 564). Este autor defende a remoção do segredo em caso de suspeita de abusos e desvios de poder por parte das autoridades policiais e judiciárias.

O segredo de justiça não impede a prestação de esclarecimentos públicos pela autoridade judiciária, quando necessários ao restabelecimento da verdade e desde que não prejudiquem a investigação, a pedido de cidadãos postos em causa ou para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública. O já citado parecer 121/80 da PGR fixa as condições em que é admissível o levantamento do segredo. Só pode ocorrer se

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estritamente exigido “pelo interesse da averiguação dos factos criminais ou da responsabilidade dos seus agentes”, não violando o princípio da presunção de inocência ou causando dano injustificado ao interesse da proteção da vida privada dos envolvidos. A PJ está inibida de fornecer informações que permitam a identificação das partes pelo público. Não pode emitir juízos opinativos sobre a eventual responsabilidade dos infratores e a conduta das vítimas e deve “evitar que tais informações possam suscitar estados de opinião suscetíveis de influenciar a apreciação dos factos pelos órgãos jurisdicionais competentes”.

A ausência de mecanismos eficazes de esclarecimento público acentua a opacidade do sistema e torna mais complexa a recolha e confirmação de informações. Não podendo reproduzir uma acusação, documento fidedigno que asseguraria o rigor noticioso, o jornalista pode ser impelido a atribuir maior valor aos elementos carreados pelos investigadores. Em prejuízo da defesa, na medida em que o acusado também está vinculado ao segredo de justiça.

Foi para a falta de transparência que um conjunto de órgãos de comunicação, alertou, em 2003. Os signatários de uma declaração patrocinada pela AACS exprimiam o desejo de que o segredo de justiça não cause “desnecessárias opacidades, objetivamente comprometendo os direitos de informar, de se informar, de ser informado e contribuindo para a imprecisão, a suposição, a especulação, a falta de rigor” (Declaração, 27/11/2003).

Pinto denuncia “cirúrgicas violações do segredo de justiça em fases processuais em que os arguidos e os seus defensores não podem aceder ao processo”8. Na ótica do bastonário da

Ordem dos Advogados, ex-jornalista, “grande parte da investigação criminal faz-se para a Comunicação Social, com o intuito óbvio de criar artificialmente o alarme social necessário à aplicação de medidas de coação mais severas e de condenações mais duras”. Os media demonstram a “culpa necessária à condenação”; “ao julgador não resta outra alternativa que não condenar os arguidos, senão acaba ele mesmo condenado a preceito por certos órgãos de informação”.

O mau uso do segredo de justiça deve-se, na ótica de Morgado e Vegar (2003: 133) à “conceção de sistema fechado”, sem ligação com a realidade, que o magistrado tem das suas funções. O segredo torna-se “uma forma de camuflar métodos de trabalho errados, de não prestação de contas sobre a morosidade, uma arma contra a transparência”. Invocando um estudo de direito comparado realizado pela Association de Recherches Pénales

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Europeénnes, estes autores defendem que seja aplicado em função do crime em causa, sendo que a criminalidade complexa jamais o deve dispensar.

O recurso a fontes anónimas insuficientemente testadas – para cujos efeitos o CD chamou a atenção, entre outros, no caso “Maddie” (Rec. CD 3/2007) –, o aproveitamento de fugas de informação com objetivos menos claros ou o desrespeito pelas mais elementares regras de verificação de informações – a situação limite terá sido o Sportugal no caso “Apito Dourado” (Cfr. Anexo 3) – contribuem para criar suspeitas de promiscuidade e adensam um clima de conflitualidade entre a Justiça e os media.

Só no decurso do “caso Casa Pia”, foram incriminados 57 jornalistas por violação do segredo de justiça (Cfr. Araújo, 2010: 122). Dois recursos apreciados pelo TEDH puseram em causa condenações em Portugal. No caso “Público”/Nuno Delerue, o facto de internamente ter sido reconhecido que a notícia não afetou a investigação levou o TEDH a considerar que o direito à informação deveria ter prevalecido. Também no caso “Notícias de Leiria”/autarca” o Estado português foi condenado (Cfr. Anexo 3 sobre ambos).

A Comunicação Social não está inibida de efetuar investigação própria sobre matérias abordadas em processos judiciais, ainda que sob segredo de justiça. “Não pode é recorrer a meios ilícitos ou fraudulentos para conseguir informações e, designadamente, obtê-las através da violação do sigilo por parte de quem estiver legalmente vinculado a respeitá-lo” (Pedro Marçal, cit. por Coelho, 2005: 196). A divulgação de factos que resultem de investigação jornalística não constitui violação do segredo de justiça, mesmo que constem do processo e que oficialmente se mantenham reservados, sustenta.

É este, com frequência, o cerne da questão, aliás colocado em termos análogos no caso “Expresso”/Verdasca Garcia (Cfr. Anexo 3). O tribunal reconheceu a legitimidade de divulgar factos apurados num processo ainda em fase secreta, desde que não tenham sido usados meios ilícitos na recolha da informação. Ou seja, o impedimento legal de retirar informação de processos não impede o jornalista de revelar os mesmos factos, autonomamente investigados. Diferente é a revelação de depoimentos recolhidos para fins processuais, numa fase em que o processo já não está coberto pelo segredo de justiça. Neste particular, estão em causa “imperativos deontológicos idênticos aos que impedem o jornalista de divulgar uma conversa de um médico com o seu doente ou de um advogado com o seu constituinte, sem prévio consentimento dos visados” (Marinho Pinto, in AA. VV., 1998: 145).

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A divulgação de escutas telefónicas, porventura a mais polémica das questões neste campo, regressa ciclicamente à ordem do dia, como aconteceu nos casos que envolveram Rui Pedro Soares e José Sócrates, ambos relacionados com o semanário “Sol” (Cfr. Anexo 3). Trata-se de uma problemática que excede, em larga medida, o respeito pelo segredo de justiça, porque é suscetível de afetar um conjunto de direitos fundamentais: à reserva da vida privada, à reputação e bom nome e à palavra.

A ERC defendeu em 2010, na sequência de queixa de Joaquim Oliveira contra o “Sol” (Cfr. Anexo 3), que “uma conversa privada, que decorreu com a convicção dos seus interlocutores de que a mesma não era escutada e de que não seria tornada pública, terá, necessariamente, que ser reconduzida à esfera da privacidade dos seus protagonistas, independentemente do seu estatuto e do teor da conversa” (Deliberação 27/2010). A reguladora admite situações excecionais, que nunca podem abranger a devassa da intimidade: “matérias de inequívoco interesse público e gravidade, em que o perigo e dano social que pode advir de não revelação de escuta se revelam manifestamente superiores”.

No documento O privado em público (páginas 75-80)