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Crimes contra a reserva da vida privada

No documento O privado em público (páginas 66-69)

PARTE I LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIGNIDADE HUMANA

Capítulo 2 Proteção legal de direitos de personalidade

2.3 Crimes contra a reserva da vida privada

A tutela jurídica da privacidade e da intimidade visa “emprestar consistência à linha de fronteira definida pelo indivíduo e através da qual ele se entrincheira com o universo das vivências, experiências e pessoas que quer preservar contra os ruídos e irritações do mundo

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ambiente. Isto é: contra a intromissão de todas as pessoas não expressamente autorizadas a participar ou a tomar conhecimento” (Andrade, 1996: 101).

A doutrina e jurisprudência portuguesas inspiram-se, no que diz respeito à proteção da vida privada, na teoria dos três graus ou das três esferas (dreistufentheorie), expendida pelo Tribunal Constitucional Federal alemão em 1973. A primeira esfera, de natureza pública, é de publicidade, sem quaisquer restrições. A segunda, privada, depende do estatuto da pessoa envolvida – “engloba os acontecimentos que cada indivíduo partilha com um número restrito de pessoas” (Cabral, 1988: 30). A terceira, íntima, é tutelada pelo direito à reserva sobre a intimidade da vida privada e “compreende os gestos e factos que em absoluto devem ser subtraídos ao conhecimento de outrem (concernentes não apenas ao estado do sujeito enquanto separado do grupo, mas também em certas relações sociais)” (idem,

ibidem). Isto é: a saúde e a vida familiar, afetiva ou sexual.

A esfera de intimidade, caraterizada pelo Tribunal Constitucional português como “a última e inviolável área da liberdade pessoal”, é tomada como domínio absolutamente vedado, num acórdão do seu congénere alemão (cit. por Dias in Andrade, 1996: 729): “nem sequer os interesses superiores da comunidade podem justificar uma agressão à área nuclear da conformação privada da vida, que goza de proteção absoluta. Uma ponderação segundo o critério da proporcionalidade está aqui fora de causa”. Não é admissível, nesta área, a alegação de interesses legítimos, nem a prova de verdade dos factos.

A extensão da reserva da intimidade da vida privada é definida, no art.º 80.º do CC, “conforme a natureza do caso e a condição das pessoas”. Segundo o parecer 121/80 da Procuradoria-Geral da República (PGR) “compreende aqueles atos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à curiosidade pública por naturais razões de resguardo e melindre” – sentimentos e afetos familiares, costumes, práticas quotidianas, “a vergonha da pobreza e as renúncias que ela impõe e até, por vezes, o amor da simplicidade, a parecer desconforme com a natureza dos cargos e a elevação das posições sociais”. Na intimidade, não se inclui, portanto, “a atividade profissional que, tendo relações estreitíssimas com a pessoa, constitui, simultaneamente, uma das mais importantes manifestações da sua atividade social e cívica” (Cabral, 1988: 30). Note-se que a limitação voluntária dos direitos de personalidade é nula, “se for contrária aos princípios da ordem pública”. Mesmo quando legal, é sempre revogável, ainda que com obrigação de indemnizar (art.º 81.º do CC).

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A privacidade, segunda esfera da doutrina alemã, justifica uma apertada tutela jurídico- constitucional, porque também adquire interesse público de relevo. Todavia, é suscetível de ponderação, a título de prossecução de interesses legítimos. É assim consensual, por exemplo, que factos como crime violento ou organizado, terrorismo, “colarinho branco”, corrupção ou utilização indevida de fundos públicos não são abrangidos pela reserva da vida privada. É legítima a investigação jornalística, não estando os profissionais inibidos de fazer prova (exceptio veritatis) das imputações feitas. Tal não significa que deixem de ser observados os requisitos de idoneidade, adequação, necessidade e proporcionalidade, como salienta Andrade (1996: 388).

A tutela penal da vida privada de figuras que adquirem relevo público é mais reduzida do que a do cidadão comum. Tanto mais quanto mais “jogar a sua vida privada na busca do reconhecimento e do carisma público e da legitimação que eles emprestam” (Andrade, 1996: 190). Contudo, as “pessoas da história do seu tempo”, conceito também originário do direito alemão, preservam o direito à reserva da vida íntima, “àquele sector da sua vida que se desenvolve entre as paredes domésticas e no âmbito da família; podem pedir um preço por esse consentimento e, por isso, a difusão abusiva da sua imagem determina um dano patrimonial indemnizável” (Cupis, 1961 [1959]: 142).

A definição do conceito de privacidade deve ter em conta “a referência civilizacional sob três aspetos: o respeito dos comportamentos, do anonimato e da vida em relação (Canotilho et

al., 2007: 468). Mas é controversa a questão do consentimento para a revelação de

assuntos da vida privada. No entender de Pinto (2001: 540), “a autorização não pode ser perpétua, tendo de ser limitada temporalmente”, nem ter natureza tácita. “A mera complacência com a revelação de factos privados, só por si, não significa necessariamente uma renúncia à privacidade futura” (Pinto, 1993: 571).

A regra geral deve ser de consentimento. O sujeito pode opor-se à divulgação de factos da sua vida privada ou impedir a investigação por terceiros. Se permitir, define termos, condições e contexto em que são divulgados. Não é lícito presumir a renúncia a esse direito. O facto de não se ter oposto, anteriormente, à revelação de factos não significa, em novas ocasiões, consentimento tácito, só admissível em situações muito específicas. Foi esse o sentido da deliberação da AACS no caso “VIP”/João Gil (Cfr. Anexo 3).

Privacidade, intimidade e honra são bens jurídicos distintos. O ataque à honra não tem necessariamente de se concretizar à custa do ataque à privacidade ou à intimidade. A

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devassa da intimidade pode resultar da revelação de factos, como uma doença, que não põem em causa a honra ou a consideração. Isto porque, constituindo um “delito de indiscrição”, não está em causa a verdade dos factos, mas a sua divulgação.

O Código Penal pune quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada, intercete, grave, registe, utilize, transmita ou divulgue conversas ou comunicações telefónicas; capte, fotografe, filme, registe ou divulgue imagens de pessoas, objetos ou espaços íntimos; observe ou escute de forma oculta quem está em lugar privado; divulgue factos da vida privada ou a doença grave de alguém. Esta última conduta não é punível se praticada “como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante”, que pode corresponder à função social da Imprensa. Os crimes de introdução em lugar vedado ao público, devassa por meio informático, violação de correspondência ou telecomunicações ou violação de segredo não comportam exceções.

Um parecer do CI de 1988 procurou fixar os limites do tratamento jornalístico da saúde de cidadãos. O documento sustentava que a identificação de pessoas e das lesões e tratamentos a que foram submetidas em casos de acidentes, crimes violentos ou, por exemplo, intervenção cirúrgica que representou um avanço na esperança de tratamento de doença mortal só é legítima quando “indispensável à verosimilhança da notícia ou o interesse público o exigir”. Não deve ser identificado quem se sujeitou a transplante ou sofreu mutilações de órgãos sexuais, mas a opção contrária é válida quanto a vítimas de acidentes, catástrofes ou repressão policial. Na dúvida, deve adotar-se a solução que cause menos danos à privacidade.

A invocação do direito à informação, assinalava o CI, só é admitida quanto a factos da vida íntima sobre os quais exista um interesse social legítimo no seu conhecimento. “Esse interesse depende, entre outros fatores, da função que na sociedade desempenhem as pessoas visadas”. Tratando-se de anónimos, a abordagem de doenças está vedada, por integrar a reserva da intimidade. No caso de figuras públicas, só é legítima se a doença está associada à atividade que lhes confere notoriedade, como a lesão que incapacite um desportista. Mesmo em relação a políticos, é necessário avaliar o alcance do cargo.

No documento O privado em público (páginas 66-69)