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Deontologia e identidade profissional

No documento O privado em público (páginas 110-113)

PARTE II A ABORDAGEM DEONTOLÓGICA

Capítulo 1 Evolução do debate

1.1 Deontologia e identidade profissional

A Deontologia não serve apenas para assegurar “informação correta” – noção que, se desenvolvida, justificaria a convocação de outro debate, o da objetividade. É uma forma de legitimação e, em simultâneo, uma fonte de poder do jornalista. “Para salvaguardar o seu prestígio e a sua independência, os media têm necessidade de se envolver na sua responsabilidade primordial: servir dignamente a população” (Bertrand, 2002 [1997]: 14).

Há quem deposite na Deontologia esperanças de que funcione como trincheira de defesa da liberdade de informação ou “escudo” protetor da independência do jornalista face a ingerências governamentais. Neste campo se situa Asenjo, (apud Pina, 1997: 28), que imputa ao poder político um “intento perene” de controlar o chamado “Quarto Poder”. A

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noção de “Quarto Poder” – como a de “contrapoder” – tem vindo, no entanto, a ser questionada. Mesquita (2003: 72) contesta, inclusive, a própria invocação do Jornalismo como poder, capaz de conduzir a “resultados perversos do ponto de vista da afirmação da legitimidade da presença do jornalista no espaço público”. A ausência de representatividade e mandato é o argumento central.

A evolução do debate em torno da Ética e da Deontologia está ligada ao estabelecimento dos traços identitários da profissão. Com efeito, desempenhou historicamente um papel decisivo na autonomização dos jornalistas enquanto grupo profissional, a par da uniformização de práticas, assentes num conjunto de competências técnicas. Como assinalam diversos autores, quando a meados do século XIX a Imprensa empreendeu o lento e desigual processo de industrialização, os jornalistas sentiram necessidade de delimitar o seu território. Num contexto ainda muito marcado pelo Jornalismo panfletário, ao serviço do combate político, ou pelo Jornalismo de difusão cultural, tratava-se de proceder à tipificação de práticas tendentes a definir fronteiras face a outras atividades, que disputavam o mesmo espaço, desde o propagandismo partidário à criação literária, passando pela publicidade comercial.

Nesses tempos ainda apenas esboçada, a construção da identidade dos jornalistas não se desenvolveu, porém, apenas com o objetivo de determinar linhas separadoras no interior do universo da Imprensa. Aos olhos do público – mais: da sociedade – os jornalistas ainda não usufruíam de estatuto profissional próprio. Conquistar um lugar implicava obter reconhecimento e legitimação sociais, bem como criar condições de autonomização face ao Estado, cuja apetência pelo controlo da Imprensa era, como hoje é, diretamente proporcional à sua influência. Tais necessidades só podiam ser satisfeitas mediante a adoção de um “saber” e de um “saber fazer” específicos e claramente identificáveis. Dos quais, nesta fase, fazia parte integrante a Moral (pelo menos um conjunto de princípios morais consensualmente aceites), embora ainda não a Deontologia, como quadro de deveres profissionais.

Ruellan (cit. por Fidalgo, 2008: 75) divide em quatro fases o percurso histórico de afirmação da identidade dos jornalistas. A primeira desenvolve-se de meados do século XIX até à industrialização, que autonomiza. O período entre as duas guerras mundiais, em especial de 1918 a 1935, corresponde à terceira fase, na qual é determinado o quadro legal e institucional da profissão e se intensifica o debate deontológico. Do final da II Guerra Mundial até hoje, a profissão tem vindo a reforçar o seu papel social.

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Os quatro períodos identificados por Ruellan não são balizados por datas concretas pelo simples facto de as transformações terem ocorrido a ritmos diferentes de país para país, por efeito das condições específicas de exercício da profissão, frequentemente influenciadas pelos regimes políticos. Delporte (apud Fidalgo, 2008: 113) arrisca uma definição mais exata das fronteiras temporais, ao observar que, entre 1880 e o início da Grande Guerra, o Jornalismo “redefine as suas práticas, fixa o papel social do jornalista, aponta referências culturais e identitárias fundamentais”.

No início desse período, surgem as primeiras iniciativas no domínio da formação. Em 1893, a Universidade de Filadélfia, nos Estados Unidos, cria uma disciplina de Jornalismo. Dois anos depois, nasce o primeiro curso, na Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Em 1899, entra em funcionamento em França um centro de ensino de Jornalismo, na Escola Livre de Altos Estudos Sociais. Começava a ser posta em causa, embora ainda perdurasse por muitos anos, a perspetiva de que o exercício do Jornalismo deriva de talentos inatos e assenta na “tarimba”, dispensando a aquisição prévia de conhecimentos específicos. Dessas embrionárias experiências, já fazia parte a preocupação de dotar os futuros jornalistas de preceitos de natureza moral.

Momento marcante para a ética jornalística foi a publicação, em 1947, do chamado “Relatório Hutchins”, que introduziu a doutrina da responsabilidade social. Numa perspetiva de libertação dos media de pressões políticas e económicas, contrariando visões liberais, o relatório atribuía à Imprensa as funções de proporcionar ao público um relato verdadeiro; instituir-se como espaço de debate e crítica; apresentar um quadro representativo dos diferentes grupos sociais; ajudar a clarificar valores sociais e assegurar a inteligibilidade, o que pressupõe contextualização e interpretação de factos (Cfr. Commission on the Freedom of the Press, 1947).

A recusa da propriedade estatal dos media e a tese de que se trata de um setor com especificidades, não podendo visar apenas o lucro, provocaram reações e estimularam a reflexão. As recomendações do relatório, progressivamente absorvidas por grande parte da Comunicação Social norte-americana, acabaram por fazer caminho. As suas ideias-chave viriam a ser retomadas em 1983 pela Unesco na “Declaração sobre os Media”, que consagrava a informação como bem social e postulava, precisamente em nome da responsabilidade social, que o jornalista deve atuar, em todas as circunstâncias, de acordo com a sua própria consciência ética.

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O paradigma do “Relatório Hutchins”, ajuízam Christians e Nordenstreng, já não é suficiente para assegurar a responsabilidade social dos media. A autorregulação encerra o risco de fechar-se sobre si própria: “Quem guarda o guardião? (…) Canhões à solta no convés do navio do Estado são intoleráveis” (Christians et al., 2004: 14). Os códigos de ética estão demasiado marcados por contextos locais, regionais ou nacionais para poderem ambicionar a universalização de valores. Daí que aqueles autores proponham um conjunto básico de princípios éticos a respeitar – dignidade humana, verdade e não-violência – capazes de superar os constrangimentos do relativismo cultural. Uma perspetiva mais baseada na ética do cidadão do que na profissional.

Apesar dos avanços alcançados, a questão ética manteve-se “sempre incompleta, ora ficando-se pelo enunciado retórico de vontades sem efetiva tradução prática, ora perdendo- se no meio das dificuldades e contradições de um coletivo aqui e além prisioneiro de vícios corporativos e, por isso, incapaz de se disciplinar e de se autorregular de modo transparente e consequente” (Fidalgo, 2009: 457). A tais vicissitudes ficou a dever-se a tardia afirmação dos jornalistas no contexto profissional. Precisamente porque a ética desempenha um papel central na sua identidade.

“Se o saber profissional, tal como o defendemos, implica necessariamente uma exigência ética, deve salientar-se que também uma adequada postura ética implica necessariamente um saber adequado” (Fidalgo, 2009: 461). Ética e técnica não são, portanto, separáveis: “Fazer um jornalismo competente não se resume ao domínio instrumental de um conjunto de técnicas narrativas, ao manuseio adequado dos diferentes géneros, à boa capacidade de pesquisar e recolher informação, ao cultivo empenhado de fontes qualificadas, ao conhecimento dos critérios básicos de noticiabilidade, à lucidez na seleção e hierarquização de fatos e opiniões” (idem, 460).

No documento O privado em público (páginas 110-113)