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Via civil ou via criminal?

No documento O privado em público (páginas 81-85)

PARTE I LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIGNIDADE HUMANA

Capítulo 2 Proteção legal de direitos de personalidade

2.8 Via civil ou via criminal?

O recurso às vias civil ou criminal para a reparação de danos na esfera dos direitos de personalidade é uma matéria sensível. A perspetiva de incorrerem numa pena de prisão pode causar fenómenos de autocensura ou, pelo menos, retrair os jornalistas, como reconhecem diversas instituições internacionais. Todavia, a assunção de elevados custos, em advocacia e indemnizações, asfixia financeiramente os media, comprometendo a sua sobrevivência.

Para Francisco Teixeira da Mota, advogado do jornal “Público” (cit. por Araújo, 2010: 205), certas ações são movidas “para intimidar e criar dificuldades económicas”, constituindo, muitas vezes, uma retaliação. “Não tenho hoje em dia dúvida nenhuma de que há informação na comunicação social que não sai em virtude dos riscos de processo judicial”, afirma. O simples anúncio do acionamento de um processo pode influenciar negativamente a captação de publicidade pelo órgão de comunicação e desencadear mecanismos de pressão da empresa sobre o jornalista.

Convicto de que o direito penal não é o mais adequado para a aplicação do princípio da concordância prática na resolução de conflitos – porque a definição de fronteiras entre os valores em jogo nem sempre pode ser traçada de forma nítida e, portanto, indiscutível – Vieira de Andrade (in AA. VV., 1996: 95) defende que a punibilidade dos crimes de difamação, injúrias ou devassa da vida privada através dos media “deveria ser limitada aos casos mais graves, onde pudesse afirmar-se sem dúvida a prevalência dos direitos dos destinatários sobre a liberdade de Imprensa e o direito de informar”.

Abertamente favorável à interposição de ações cíveis para defesa de direitos de personalidade, Noronha do Nascimento preconiza a apresentação de pedidos de

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indemnização “com efeitos reparadores na esfera jurídica do violador que os sente patrimonialmente na pele”9. O presidente do STJ reconhece que os “novos conceitos

indemnizatórios dos tribunais são o cabo das tormentas para jornais nos limites do equilibrismo orçamental”, mas entende que a demanda criminal produz “efeitos inócuos em termos de afetação patrimonial”. Na sua ótica, foi a tendência para “indemnizações punitivas” que nos Estados Unidos levou à contenção por parte dos media.

“A interpretação dos direitos de personalidade deve emancipar-se das suas raízes pré- modernas e adaptar-se aos imperativos da coexistência entre indivíduos livres e iguais, numa democracia comunicativa”, aduz Machado (2002: 761). Na ausência de danos patrimoniais, “a preocupação fundamental do processo penal deve consistir numa adequada satisfação moral do lesado, mais do que na punição do autor ou na restrição da liberdade de expressão” (idem, 776). Em certo sentido, o desfecho do caso CBS/Westmorerland (Cfr. Anexo 3) corresponde a esta visão.

Diversas instituições internacionais têm vindo a preconizar a descriminalização da difamação. Trata-se de uma velha reivindicação da Federação Internacional de Jornalistas (FIJ), sensível ao facto de uma legislação excessivamente restritiva inibir o jornalismo de investigação. A posição de organizações não governamentais como a Human Rights Watch ou a Repórteres sem Fronteiras é coincidente. A ONU expressou, em 1999, preocupação quanto à imposição de penas de prisão a jornalistas pela prática deste crime. No ano seguinte, em declaração conjunta sobre mecanismos para a promoção da liberdade de expressão, ONU, OSCE e Organização dos Estados Americanos afirmaram-se favoráveis à revogação de leis que criminalizam a difamação, substituídas por leis civis, capazes de refletir “a importância do debate aberto sobre matérias de interesse público e o princípio de que as figuras públicas são obrigadas a aceitar um maior grau de crítica”10. A declaração

defende, ainda, que, sob pena de a liberdade de expressão ser afetada, a legislação não deve prever sanções pecuniárias excessivas.

O Conselho da Europa tem vindo a manifestar-se contra a aplicação de penas de prisão a jornalistas. Em 2006, o Comité dos Media da organização admitiu que mesmo penas suspensas podem afetar o exercício profissional. O TEDH, que nunca confirmou condenações a penas de prisão por difamação, reconheceu – sobretudo em casos de natureza política, como Jersild contra Dinamarca, de 1994, e Scharsach e News

9 Intervenção em colóquio sobre “Direito penal e processo penal”, 3/6/2009.

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Verlagsgesellschaft contra Áustria, de 2003 – o efeito pernicioso das sanções criminais sobre o trabalho dos jornalistas e o estigma que o registo criminal representa no futuro. Por outro lado, ao apreciar, em 1995, um caso cível do Reino Unido, considerou desproporcionada a indemnização de 1,5 milhões de libras.

Pese embora a consolidação da tendência para a descriminalização da difamação, há casos recentes de prisão de jornalistas – mesmo em países europeus, como Bélgica, Itália, Noruega, Suíça e Dinamarca –, e condenações em Malta e na Finlândia. Na Holanda, entre janeiro de 2002 e junho de 2004, mais de 100 pessoas foram presas por calúnia, difamação ou injúria11

. Segundo o levantamento efetuado pelo CE, até 2006 só Bósnia, Chipre, Estónia, Geórgia e Ucrânia tinham abolido o crime de difamação. Dos 56 estados da OSCE, apenas 11 tomaram, até 2011, essa decisão.

No Reino Unido, a difamação deixou de ser crime em 2009. De acordo com o relatório da Câmara dos Comuns sobre situação na Imprensa 2009/2010, o regime em vigor permitia a condenação, ainda que os réus provassem a veracidade de imputações. Argumentos centrais da mudança: desproporcionalidade da punição face ao valor a defender (reputação) e risco de autocensura dos jornalistas. O relatório exprime preocupações quanto aos elevados custos dos processos cível para a defesa, reconhecendo que são os mais elevados da Europa. Segundo a FIJ, o número de processos por difamação movidos na Grã-Bretanha por figuras públicas, em especial do mundo do espetáculo, duplicou entre 2005 e 2008 (White, 2008: 135). Em 2007 e 2008, as ações contra os media corresponderam, na Inglaterra e no País de Gales, a um terço do total.

Neste plano, são diferentes as opções de cada país. Na Alemanha, a lei fixa limites máximos de indemnização em casos de difamação. Em França, são reduzidas as custas legais a suportar pela parte vencida. Nos Estados Unidos, cada parte assume as suas despesas, mas o tribunal dispõe do poder discricionário de decidir noutro sentido.

A ausência de dados sistematizados em matéria de processos contra os media inviabiliza uma perceção exata da dimensão do fenómeno em Portugal. Através de uma investigação quantitativa empírica aos instaurados ao “Público”, complementada com entrevistas a advogados dos grupos Cofina e Global Notícias, Araújo procurou preencher essa lacuna. O estudo (Cfr. Araújo, 2010: 157-158) revela uma tendência para o crescimento do número de ações, exceto contra jornais de referência, sendo a maioria esmagadora criminais. A

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difamação é a principal causa, seguindo-se a devassa da vida privada, gravações e fotografias ilícitas. A grande maioria dos processos – quem os instaura raramente exerce o direito de resposta – não chega a julgamento e, entre os que chegam, só uma parte acaba em condenação. Os autores são políticos, que raramente pedem indemnizações, empresários e outras personalidades. O valor das indemnizações exigidas, que tem vindo a aumentar, varia entre 25 mil e 500 mil euros.

O elevado volume de processos justificaria, na opinião de André Fontinha Raposo, uma alteração legislativa que retire os crimes de Imprensa do elenco de crimes particulares. Para o advogado do grupo Global Notícias (cit. in Araújo, 2010: 192), esta solução permitiria que o MP exercesse um juízo crítico sobre os processos, impedindo que cheguem a julgamento “acusações estapafúrdias, sem qualquer viabilidade”.

Uma breve análise das práticas profissionais permite compreender algumas das causas dos processos que envolvem direitos de personalidade. Com frequência, resultam de títulos de notícias, nem sempre elaborados pelos autores dos textos. Em algumas publicações, há jornalistas que asseguram a tarefa, mas são frequentes manchetes ou chamadas de primeira página imprecisas ou até de sentido contrário ao das notícias a que correspondem.

Ainda que o rigor não seja posto em causa, os títulos podem ser tomados pelos tribunais como abusivos, como sucedeu no caso “O Independente”/Sousa Franco, de 1996, ou excessivos (“O Independente”/Fernando Nogueira e Luís Marques Mendes, de 1991). Noutro caso, também de “O Independente”, que não chegou a julgamento, o juiz considerou que o título “Aqui há Latas”, trocadilho em torno do nome do envolvido, representava “uma insinuação de que o que se passa a relatar são factos que traduzem uma situação obscura e pouco transparente” (cit. in Coelho, 2005: 348), embora se tratasse de factos verdadeiros. No caso "Diário de Notícias"/Alberto João Jardim, o tribunal entendeu que o título não podia ser analisado isoladamente. E no que envolveu o “Expresso” e o Governo da Madeira a imputação genérica de factos constante no título mereceu condenação em 1.ª instância, não confirmada pela seguinte (Cfr. Anexo 3, sobre todos estes casos).

Os títulos podem ser difamatórios por si só, caso se revistam de “intrínseca idoneidade ofensiva” (Costa, apud Dias, 1999: 621). Para o penalista, devem, no entanto, ser confrontados pelos tribunais com os textos, de forma a avaliar todos os elementos que integram um trabalho jornalístico. “Devido à sua particular força impressiva, os títulos

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possuem uma acrescida eficácia corrosiva – muitas vezes o que se retém da factualidade narrada cinge-se a essa síntese” (idem, 620).

No documento O privado em público (páginas 81-85)