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A experiência do Conselho de Imprensa

No documento O privado em público (páginas 142-146)

PARTE II A ABORDAGEM DEONTOLÓGICA

Capítulo 2 Fixação do modelo deontológico em Portugal

2.2 A experiência do Conselho de Imprensa

Inspirado no Press Council britânico, o CI português foi o único órgão deste tipo criado por lei na Europa. A sua composição diversificada constituía uma mais-valia, mas a representação da opinião pública manteve-se sempre escassa. Quando, em 1978, passou de 24 para 19 membros, deixou de incluir militares do MFA e representantes de partidos. No entanto, os quatro cidadãos de “reconhecido mérito”, aos quais se juntavam dois cooptados, eram eleitos pela Assembleia da República, à qual o conselho estava estruturalmente

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ligado. O elevado número de membros e a não exigência de exclusividade no exercício do cargo condicionaram o seu funcionamento.

O Conselho de Imprensa dispunha de poderes – mais amplos do que os de organizações similares estrangeiras – de intervenção formal e informal, quer na defesa da liberdade de Imprensa e do pluralismo, quer dos direitos dos cidadãos perante a Imprensa. Acabaria por privilegiar a defesa dos direitos dos jornalistas, mesmo quando conflituavam com outros. Também por isso, foi “quase sempre oposição” (Carvalho, 1986: 17), principal caraterística, pelo menos até 1985. O balanço deste autor é muito crítico: demonstrou “escasso grau de iniciativa”, pouca análise de questões deontológicas e “insuficiência de conceção doutrinária”, que foi sendo superada ao longo dos anos.

O facto de quase só emitir recomendações ou juízos de valor – decisões vinculativas, que o jornal visado era obrigado a publicar, constituíram exceção – e de chegar a deliberar sobre queixas anos após as ocorrências reduziu a sua eficácia na repressão de condutas violadoras de normas éticas. Em 1988, reconheceria que, dotado apenas de força moral, “a sua autoridade se esgota nos juízos que produz” (Rec. CI, 20/7/1988).

Quando colocado perante casos dirimidos pela Justiça, o CI não se pronunciava antes do trânsito em julgado. Um parecer de 1979 terá determinado a opção. Solicitado pelo provedor de Justiça, inspirou-se quase por completo numa informação da PGR, segundo a qual a violação de direitos, liberdades e garantias deveria ser apreciada pelos tribunais. Paradigmática das opções do conselho em questões relacionadas com direitos de personalidade foi a forma como abordou, em 1982, o caso de Manuel Pedro Dias, recluso a cumprir pena, a quem “A Capital” dedicou três reportagens (Cfr. Anexo 3), com alusões à ex-companheira e às filhas. O órgão nem sequer instruiu o processo, alegando que não recebera diretamente a queixa e que a intenção de Manuel Pedro Dias seria acionar judicialmente o vespertino.

Uma análise da atividade do CI realizada no âmbito da presente investigação, complementada com informações constantes da obra de Arons de Carvalho “Liberdade de Informação e o Conselho de Imprensa (1975-1985)”, permite concluir que, se neste período mais de metade das deliberações incidiu no exercício do direito de resposta, entre 1986 e 1990, data de extinção do órgão, a proporção foi menor, quedando-se em pouco mais de um quarto. Ao longo de 15 anos de existência, 40% das queixas abordaram a questão do direito de resposta (Comunicado CI 16/90).

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No primeiro período, embora tenha analisado várias queixas sobre questões relacionadas com direitos de personalidade – a primeira, no âmbito do chamado caso “Lopes da Neta” (Cfr. Anexo 3), apresentada em fevereiro de 1978 – só emitiu três recomendações (em 1981, 1982 e 1984) e dois pareceres, em 1979 e 1985, este sobre relações da Imprensa com polícias e tribunais, cuja abordagem justifica a inserção nesta categoria. Carvalho (1986: 197-198) considera “pobre” o trabalho desenvolvido pelo CI em matéria de queixas. “Limita-se casuisticamente a apreciá-las. Com raras exceções, deliberou sem formular qualquer reflexão doutrinária e poucas vezes cita um caso passado que para o Conselho de Imprensa tenha criado um precedente aplicável”.

Nas recomendações emitidas na primeira década de funcionamento, estavam em causa “crimes contra a honestidade”, designação genérica, à época, dos crimes de ultraje público ao pudor, atentado ao pudor, estupro voluntário, violação, adultério, lenocínio, difamação, calúnia e injúria. Em 1982, o conselho pronunciou-se sobre uma notícia do jornal “O Dia”, publicada dois anos antes (Cfr. Anexo 3), em que fora revelado o nome de uma vítima de violação. Um ano depois, condenou “O Crime”, por levantar suspeitas sobre a responsabilidade do cunhado de um jovem na sua morte, em resposta a uma queixa da mãe da vítima. Em 1984, abordou a identificação, pelo CM e pelo “Comércio do Porto”, de menores vítimas de crime.

Após 1986, contabilizam-se quatro pareceres sobre condutas deontológicas (entre 52) e duas recomendações, o que revela a escassez de produção doutrinária. Das 133 queixas recebidas, só oito, em rigor, se integram na esfera dos direitos de personalidade – como reputação, boa fama, bom nome e imagem – embora mais três surjam classificadas como tal. Duas delas envolveram, em simultâneo, direito de resposta.

Numa conferência sobre conselhos de Imprensa na Europa, em 1988, o CI sustentou que na época, em Portugal, as ofensas no domínio da violação da privacidade não tinham atingido “dimensão preocupante”. Não deixou, ainda assim, de admitir que deveria estar atento à possibilidade de se agravar, com a crise económica da Imprensa, que tenderia a acentuar o sensacionalismo e a concorrência.

No ano seguinte, o conselho abordou pela primeira vez um caso de direito à imagem. Tratou-se da publicação, pelo T & Q, da foto de uma mulher seminua a ilustrar um texto

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sobre concursos de beleza (“É só misses…”), ao qual era completamente alheia (Cfr. Anexo 3), que considerou “indiscreta ofensa à esfera íntima” (Deliberação de 13/2/1989).

O órgão foi extinto em 1990, juntamente com o Conselho de Comunicação Social – criado em 1982, em resultado da fusão dos conselhos de informação da RTP, RDP, Anop e Imprensa estatizada – o qual, vocacionado para os media estatais, perdera razão de ser com a abertura da televisão e da rádio a privados e a criação de grupos de media. O facto de ter, durante anos, coexistido com o CI representava uma sobreposição de atribuições e competências e o risco de decisões distintas ou, até, contraditórias.

Os jornalistas que integraram o CI guardam a memória de uma experiência positiva. “Só existiu porque foi criado artificialmente, imposto por lei e não como emanação da sociedade. Só se manteve porque os jornalistas lhe deram muita força. As empresas nunca quiseram saber dele e sempre o consideraram incómodo”, afirmou Adelino Cardoso em 199130. “Era

uma espécie de tribunal moral que, com mais tempo, provavelmente se teria imposto pelo prestígio das suas decisões equilibradas e pelo desprestígio de quem fosse por ele admoestado”, observa Ribeiro Cardoso (cit. por Fidalgo, 2010a: 58).

O Sindicato dos Jornalistas tem vindo a bater-se pela reconstituição de um CI de composição tripartida. Não fechou, contudo, as portas à iniciativa tomada em 2008 pela API, assente num modelo de direito privado, que reúna jornalistas e representantes dos proprietários. Aceitou mesmo participar num “grupo de missão” criado pelas duas organizações para negociar a sua concretização. O processo, contudo, avança lentamente. Está por definir o modelo institucional e o financiamento e persistem divergências de âmbito e de competências do órgão. A API propõe que limite a sua intervenção à Imprensa e media digitais, enquanto o SJ defende a inclusão de todos os meios – podendo ser denominado Conselho de Comunicação Social – e não admite qualquer solução que conduza à extinção do CD. O presidente do sindicato, Alfredo Maia (cit. por Fidalgo, 2010a: 54), recusa a intervenção individual sobre profissionais no domínio deontológico, invocando o princípio de que a Deontologia é “esfera exclusiva dos jornalistas”.

Numa iniciativa designada de autorregulação, mas de âmbito empresarial, a Confederação Portuguesa de Meios de Comunicação Social lançou, em 2005, a Plataforma Comum dos Conteúdos Informativos nos Meios de Comunicação.

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Colóquio sobre Deontologia, Arquivo do SJ

Subscrita pela API, Associação Portuguesa de Radiodifusão, SIC, TVI e Rádio Comercial, assenta em dez “bases

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programáticas”. Assume o compromisso de observância do Código Deontológico, cujas normas desenvolve, mas diverge dele num ponto: ao admitir que o consentimento expresso pode permitir a divulgação da identidade de vítimas de crimes sexuais.

O documento sustenta que o tratamento jornalístico deve “salvaguardar o princípio da dignidade da pessoa humana”, o que implica prudência ao noticiar atos de violência, para não os incentivar ou “promover tipos psicológicos agressivos”, preservando a privacidade de vítimas e familiares. A investigação jornalística de raptos, insurreições ou atos terroristas deve ser efetuada de forma a “não fazer perigar a vida ou a integridade física das pessoas envolvidas e a não proporcionar qualquer informação vital ou apoio aos autores de tais atividades” (Plataforma, 17/3/2005).

A prudência é também recomendada em notícias sobre crianças e jovens, deficientes ou pessoas em situação de risco, “salvaguardando sempre a sua privacidade”. A divulgação de casos de suicídio é condicionada ao interesse público. Quanto à reprodução de imagens de pessoas mortas, a plataforma só admite a identificação se for “essencial à notícia” e desde que transmitida em respeito pela dignidade da pessoa humana.

No documento O privado em público (páginas 142-146)