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Novo perfil do jornalista

No documento O privado em público (páginas 98-102)

PARTE I LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIGNIDADE HUMANA

Capítulo 3 Novo contexto comunicacional

3.4 Novo perfil do jornalista

Se, reconhecidamente, aumentou a rapidez de execução, a evolução tecnológica fê-lo à custa da concentração no jornalista de um conjunto de tarefas antes desempenhadas por outros profissionais. Tarefas que se situam, digamos assim, a jusante da produção de informação. O processo está ainda em curso, agora a ocupar crescentemente o núcleo central da atividade jornalística, a recolha de informação.

Os meios tecnológicos propiciam a multifuncionalidade – o Webjornalismo associa texto, fotografia, áudio, vídeo e infografia animada. Mais do que uma nova linguagem, cria um novo paradigma, a que o jornalista tem de corresponder. Combinada com a necessidade de difusão imediata, a exigência do domínio técnico de uma panóplia de ferramentas, de uso simultâneo por parte do mesmo profissional, tende a prejudicar a recolha de informação e a capacidade de interpretação das diversas dimensões de um acontecimento. A polivalência é, portanto, suscetível de criar constrangimentos que se repercutem na qualidade da informação.

A mudança de perfil do jornalista não deriva apenas da reconfiguração de práticas profissionais; inscreve-se na tendência para a democratização do acesso aos media. “Os jornalistas já não têm acesso especial aos mecanismos de produção e distribuição alargada de informação. Não têm acesso especial à própria informação ou às fontes de onde ela emana” (Fidalgo, 2009: 295). Isto é: perderam o monopólio de difusão, mas também de recolha e tratamento de informação. O público dispõe, hoje em dia, de iguais condições para aceder a fontes primárias, dispensando a intermediação dos meios de comunicação, e para intervir ativamente na transmissão de factos noticiosos, “usando os mecanismos, os procedimentos e, nalguns casos, os próprios objetivos tradicionalmente reservados aos jornalistas profissionais integrados em empresas de media” (Fidalgo, 2008: 169-170). Tal

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significa que o jornalista já não detém o papel de gatekeeper21? A resposta à questão não é

linear, mas deve ser analisada mais na perspetiva do direito do cidadão a ser informado do que pela estrita ótica das práticas profissionais.

O novo contexto comunicacional é suscetível de afetar o direito à informação em dois planos. Primeiro, paradoxalmente, porque ela abunda – a sobreinformação não garante um maior esclarecimento; pelo contrário. “Demasiada informação mata a informação”, afirma Wolton (2006 [2005]: 74), na medida em que lhe retira fiabilidade. “Como se oculta hoje a informação? Através de um aumento de informações: a informação é dissimulada ou truncada, porque há demasiada para consumir. E não chegamos mesmo a aperceber-nos da que falta” (Ramonet, 1999: 48).

A sobreinformação, potenciada pela Internet, não reclama a eliminação das funções de

gatekeeper, antes o seu fortalecimento. Ou, como sugere Singer (cit. por Fidalgo, 2009:

296), uma reformulação: os jornalistas já não são gatekepeers, mas sense-keepers, encarregados da missão de dar sentido a informações dispersas, de as interpretar, enquadrar e contextualizar, de assegurar a sua fidedignidade. Enfim, de lhes apor um “selo de qualidade”, a medida da sua responsabilidade social.

“A revisão das considerações sobre quem simplesmente é ou não é jornalista tem de incluir hoje, como sua caraterística distintiva, a noção de assunção de uma responsabilidade pessoal pela salvaguarda da confiança do público”, sustenta Fidalgo (idem, ibidem), enquanto Wolton (2006 [2005]: 36) reivindica para os jornalistas a manutenção de um espaço simbólico, de forma a que “lancem informações de última hora, procurem as chaves para a compreensão dos acontecimentos, isto é, reencontrem a espessura da história por detrás dos acontecimentos”.

Uma atitude de abertura à crítica e de lealdade perante o público é condição para preservar a credibilidade. Tanto mais exigível quanto é certo que o jornalista está sujeito a maior escrutínio, efeito encarado como aspeto positivo das novas modalidades jornalísticas. O

online permite a correção instantânea de informações contestadas e o acolhimento de

pontos de vista distintos. “Descentraliza” o processo de correção de erros, que já não é apenas efetuado pelo jornalista. E pode tornar mais célere o exercício do direito de resposta. Isso mesmo constatou o CE, que em 2004 definiu um conjunto de princípios mínimos para o

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Função atribuída por David Manning White no artigo “The ‘Gate-keeper’: a Case Study in the Selection of News”, publicado em 1950 no jornal “Journalism Quarterly”, inspirando-se no conceito criado por Kurt Lewin, em 1947.

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satisfazer: acesso a qualquer pessoa; rapidez; visibilidade; gratuitidade; salvaguarda de efetivo exercício, mediante a identificação da pessoa encarregada de lhe dar satisfação; e possibilidade de recurso para tribunal, ou outra instância, em caso de recusa (Cfr. Rec. CE 16/2004).

Do ponto de vista da pesquisa de informação, a Internet abre um campo ilimitado de oportunidades, hoje ainda mais vasto graças à blogosfera e às redes sociais. Num inquérito a jornalistas realizado em dezembro de 2009 pela Universidade George Washington, 56% consideravam as redes sociais importantes/muito importantes como fonte; 89% usavam, para esse efeito, blogues, embora 84% admitissem que as redes sociais são menos fiáveis do que media tradicionais. Dois terços consultavam o Linkedin e o Facebook e cerca de metade o Twitter. Já para a difusão de informação 64% recorriam a blogues, enquanto 60% preferiam redes sociais.

O facto de a informação disponível ser abundante e diversa torna incontornável a questão da fiabilidade, impondo múltiplas ações de confirmação. “A especulação em excesso apresentada como informação; a proliferação de fontes imprecisas ou anónimas; informações não confirmadas e não verificadas e que são apresentadas como factos” constituem, de acordo com Castanheira (2004: 152) os riscos mais comuns, agravados pela dificuldade de responsabilizar, no universo da Web, os autores dos conteúdos – podem ocultar a identidade ou, inclusive, usurpar o nome de outra pessoa.

Não faltam casos de informação falsa acolhida como verdadeira por prestigiados órgãos de comunicação, em alguns casos pondo em causa a honorabilidade e a reputação de cidadãos. Em fevereiro de 2004, começou a circular na Internet uma fotografia supostamente de John Kerry, então candidato do Partido Democrático à Presidência dos Estados Unidos, ao lado da atriz Jane Fonda, num comício contra a guerra do Vietname, nos anos 70 do século passado. O NYT deu-lhe crédito, apondo-lhe mesmo a assinatura da Associated Press. Tratava-se de uma fotomontagem, pelo que teve de apresentar desculpas aos leitores. Em janeiro de 2010, Jason Calacanis, um reputado especialista em tecnologias, disseminou deliberadamente dados falsos sobre o novo iPAD da Apple, através do Twitter, para demonstrar a ligeireza com que os jornalistas dispensam a confirmação de informações.

Gillmor acredita que a circulação de notícias falsas num sistema de informação ininterrupto como o atual tem outras causas, que não apenas a velocidade de divulgação. Está em

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declínio, constata o especialista, a regra de ouro da verificação prévia de factos, o que reforça a necessidade de o utilizador procurar “mediadores de confiança” (Gillmor, 2010: 29). “O blogger que recusa identificar-se convida-me a procurar outro lugar”, observa (idem,

ibidem, 43).

A blogosfera e as redes sociais são, por natureza, espaços de construção coletiva, que levam à letra o conceito de comunicação “de-muitos-para-muitos”, a essência da Internet. Essa vocação de partilha traduz-se na troca de dados informativos sem restrições, assumindo a ausência de objetividade e neutralidade. A presença de jornalistas nestes domínios é hoje muito comum, o que pode levantar a questão do relacionamento com o órgão de comunicação ao qual estão vinculados.

O código de ética do NYT, que inclui normas específicas para o uso do Facebook em reportagem, estabelece que nada pode ser publicado sob o nome de empresa, ou de qualquer uma das suas unidades, sem um processo prévio de edição ou moderação. As páginas ou blogues de jornalistas têm de ser assumidas como pessoais e devem evitar a abordagem de temas que tratam profissionalmente, para evitar a confusão de papéis. O código aconselha moderação no tom, decência, gosto e respeito pela dignidade e privacidade, recusando a difamação, a humilhação e a intolerância. Já o Guia para Redes Sociais da BBC exorta os membros da redação a não esquecerem o seu estatuto. Mesmo que não se identifiquem como jornalistas da empresa, devem sempre deixar claro que as opiniões que emitem são pessoais e não comprometer a sua imparcialidade.

Em Portugal, José Alberto Carvalho, então diretor de informação da RTP, remeteu em 2009 à redação um email com regras de conduta a respeitar pelos jornalistas envolvidos na blogosfera e em redes sociais. A maior parte das recomendações são conselhos éticos básicos, válidos em qualquer plataforma, sintetizados numa frase, que valoriza a reputação da marca: “Nunca dizer nada online que não possa dizer numa peça da RTP”. Contudo, a iniciativa gerou controvérsia, levando o jornalista a defender que se tratava de uma questão de credibilidade e imparcialidade. “Um cidadão não jornalista pode dizer o que quiser online (embora se sujeite às consequências legais), porque não tem de manter boas relações com as fontes, de procurar informação idónea, de cruzar essa informação… Já um jornalista não pode dar seguimento a boatos e rumores, deve verificá-los, mesmo em artigos de opinião. Porque há uma responsabilidade social acrescida na nossa profissão”, afirmou22.

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