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Privacidade de figuras públicas

No documento O privado em público (páginas 39-43)

PARTE I LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIGNIDADE HUMANA

Capítulo 1 Direito à informação e direitos de personalidade

1.4 Privacidade de figuras públicas

É consensualmente aceite que o núcleo de matérias privadas de reserva absoluta integra sexualidade, vida familiar, saúde, correspondência pessoal e finanças. Trata-se de um domínio de natureza íntima, que o jornalista deve abster-se de abordar, independentemente do estatuto da pessoa visada. As exceções, por manifesto interesse público, exigem sólida fundamentação.

O caso do ministro britânico John Profumo (Cfr. Anexo 3), que em plena Guerra Fria se envolveu com uma prostituta, simultaneamente amante de um diplomata soviético, é clássico. Como contendeu com o interesse público, deixou de usufruir de proteção. A intrusão na vida privada justificou-se nesse momento, mas a controvérsia instalou-se quando, anos volvidos, o episódio voltou a ser noticiado. Profumo abandonara a ribalta, pelo que o Press Council condenou o jornal que revelou as memórias da prostituta, por entender que a informação não se revestia de interesse público.

Pelas suas caraterísticas, esta decisão inscreve-se no chamado “direito ao esquecimento”, contemplado na legislação de alguns países. A Noruega dispõe de regras específicas sobre o tratamento jornalístico de crimes cometidos no passado ou cujo autor já cumpriu a pena. O britânico The Rehabilitation of Offenders Act adota a mesma perspetiva, de reabilitação social. O Tribunal Constitucional alemão considerou, em 1973, ilícita a transmissão de um documentário televisivo sobre o caso do assassínio dos militares de Lebach (Cfr. Anexo 3), por violação não apenas do direito à imagem (um dos envolvidos estava prestes a cumprir a pena), mas também do direito à ressocialização.

O escrutínio da vida financeira de políticos (não nos referimos à denúncia de enriquecimento ilícito, noticiável por ser crime) é muito comum. A decisão de publicar, porém, deve ser sempre ponderada, para obstar a uma atitude “justiceira”, de efeitos perniciosos. Pacheco Pereira, habitualmente crítico da conduta dos media, só considera justificável a invasão da privacidade de políticos, em nome do interesse público, se existirem suspeitas de ilegalidades: “Não admito uma suspeição genérica, que considera os políticos, por o serem, putativos ladrões e transforma a comunicação social numa variante moderna da polícia, do júri e dos juízes – tudo numa só página” (Pereira, 1995).

A intrusão no núcleo mais restrito da privacidade suscita mais dúvidas do que de certezas. É legítimo revelar a doença fatal de que sofre um candidato a cargo público, se existir a expetativa de que não cumprirá o mandato por inteiro? A reserva da sua intimidade

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recomenda que tal facto não seja divulgado, mas proporcionar ao público a informação suficiente para tomar decisões em matéria eleitoral é uma obrigação do jornalista. E no caso de um desportista, acometido por uma doença suscetível de afetar a sua performance? O questionamento ético é de idêntica natureza.

Na década de 70, o congressista norte-americano Wilbur Mills só assumiu que o alcoolismo prejudicava o seu desempenho quando os media revelaram que foi intercetado pela polícia a conduzir, embriagado, a alta velocidade. A doença era conhecida de alguns jornalistas, que até ocorrer esse episódio se abstiveram de a divulgar. Em 1992, o tenista Arthur Ashe, que fora n.º 1 do mundo nos anos 70, foi impelido a tornar público que estava infetado com o vírus da Sida, na sequência de uma transfusão sanguínea, na iminência da revelação do caso nas páginas do “USA Today”. A antecipação inibiu a Imprensa de especular sobre o assunto.

Os casos apresentados envolveram figuras públicas, conceito que abrange um universo vasto – não apenas quem detém cargos eletivos ou influência social, mas também pessoas genericamente designadas como celebridades. “A exigência da opinião pública em querer saber quem e como são as figuras públicas que atravessam o espaço da notoriedade é democraticamente compreensível. Em momentos cruciais, todos suspeitamos que ninguém decide em função apenas daquilo que pensa, mas em função daquilo que realmente é como pessoa” (Wemans, 1999: 64). Porém, “as exigências do público detêm-se perante a esfera íntima da vida privada” (Cupis, 1961 [1959]: 146).

A avaliação do interesse público ergue-se, assim, a um patamar de exigência mais elevado. É necessário demonstrar que o ato ou a conduta revelados têm conexão ou produzem efeitos na atividade da figura pública visada. A mera satisfação da curiosidade pública não corresponde à função social dos media. Foi esse o argumento usado pela ERC no caso Dina Félix da Costa (Cfr. Anexo 3).

“É legítimo divulgar factos da privada quando o próprio nisso consentir, quando tais factos sejam notórios e por isso percam o seu caráter íntimo ou, ainda, quando haja um interesse legítimo do público no seu conhecimento”, sustentava o Conselho de Imprensa português, em deliberação de 29/2/1988, ao pronunciar-se sobre uma queixa contra o “Tal & Qual” (T & Q). O órgão admitia que o interesse legítimo poderia incidir sobre alguém que “acidentalmente” participa na “história contemporânea”, fazendo por isso parte de um facto da atualidade. Mas, ressalvava, “o interesse público não legitima que se noticiem todos e

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quaisquer factos da vida íntima dessas pessoas ‘públicas’”, porque é necessário ponderar direitos em confronto. Há factos “absolutamente inacessíveis”, cuja revelação significaria que a liberdade de Imprensa “esmagaria totalmente” o direito à intimidade.

Nestas condições, notava o CI, a revelação de factos da vida privada deve ter uma “relação útil”, do ponto de vista do direito à informação, com os cargos e atividades públicas que o indivíduo em causa desempenha. É lícito fazer referência a eventos da vida íntima de “candidatos a lugar elegível” que “devam ser ponderados pelo eleitor ou devam influenciar a sua escolha”, mas não noticiar factos que não tenham relação ou não sejam pertinentes à escolha.

Em 1989, analisando a relação entre o poder político e a Imprensa, o órgão (Cfr. Parecer CI, 27/4/1989) reconhecia que os políticos estão “mais sujeitos à legítima indiscrição do que o cidadão comum”, porque deve ser levado em linha de conta o direito de saber se “usam o prestígio e influência dos cargos que exercem, ou informações que por via deles obtêm, para proveito pessoal, do seu partido ou de amigos”, concluindo que é dever da Imprensa divulgar casos de aproveitamento ilícito do exercício da autoridade. O cumprimento desse dever pode pôr em causa o bom nome dos visados, mas no entender do CI só se exige ao jornalista, uma investigação “séria” e “elevado grau de segurança da veracidade da notícia”.

A deliberação do conselho sobre o caso Taveira (Cfr. Anexo 3), também de 1989, aborda de novo as questões da privacidade, procurando clarificar os contornos do direito em causa: “Sejam quais forem as dificuldades que surjam na delimitação do conjunto dos acontecimentos que preencham o conteúdo do direito à privacidade, sempre neles se hão de incluir pelo menos os relativos à vida afetiva e familiar” (Parecer CI, 27/11/89).

Em situações deste tipo, estão em causa tentativas de traçar os limites de intervenção do jornalista. De diferente natureza é o caso de alguém que usa a Comunicação Social para se promover, exibindo a sua privacidade. Ao abrir as portas, perde argumentos para a proteger. Nesse sentido aponta a Resolução 428/70 do CE: “Aqueles que, pelos seus próprios atos, incentivaram revelações indiscretas em relação às quais se queixam mais tarde, não podem invocar o direito à privacidade”.

Degenhart, que analisa o fenómeno sob o prisma jurídico, é ainda mais radical na apreciação das consequências de tal conduta: “Quem espelha a sua vida privada na publicidade e procura a notoriedade através dos media terá por sua vez de contar com que

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a publicidade se ocupe dele. Ele renuncia, nessa medida, à proteção global da sua esfera privada. Por princípio, isto só valerá para a área da vida privada que o próprio indivíduo divulga. Quem, porém, puser no mercado dos media toda a sua personalidade para fins comerciais ou políticos, terá já de contar com o interesse global da comunidade pela sua pessoa” (Degenhart, apud Andrade, 1996: 191).

O tratamento jornalístico de assuntos íntimos é, naturalmente, influenciado pelas culturais mediáticas. Abundam casos de carreiras de políticos norte-americanos arruinadas na sequência da denúncia de condutas dessa esfera que na Europa, provavelmente, não seriam reveladas pela Comunicação Social, ainda que os jornalistas delas tivessem conhecimento. A relação amorosa entre Sá Carneiro e Snu Abecasis (Cfr. Anexo 3), por exemplo, não foi explorada pela Imprensa. No panorama jornalístico português, aliás, a manchete do T & Q dedicada aos amores de Torres Couto (Cfr. Anexo 3) e a revelação do relatório de um exame ginecológico da ministra Leonor Beleza pelo “Diário Popular”, em 1987, entraram nos anais por constituírem exceções, no que a políticos diz respeito.

Em França, uma reportagem sobre a filha ilegítima de François Miterrand (Cfr. Anexo 3) quebrou uma tradição de contenção dos media em relação à vida privada de políticos, desencadeando um debate assente em duas posições opostas. De um lado, os críticos, para quem houve violação da privacidade não apenas do presidente da República, mas também da filha e não foram avaliados os efeitos da revelação pública na dignidade da esposa. Do outro, os que sustentaram que o facto de Miterrand ter usado a residência do Estado para instalar a amante e a filha ilegítima lhe retirou o direito de invocar a reserva da sua intimidade. Ficaria para sempre a suspeita de que foi o próprio chefe de Estado a determinar o momento em que a situação se tornou notícia.

Mais recentemente, a propósito do caso Strauss-Kahn (Cfr. Anexo 3) voltaram a ser confrontadas diferentes culturas mediáticas, a pretexto das imagens televisivas da sua saída do tribunal, algemado. Em França, não teriam sequer sido captadas, porque a lei proíbe a publicação de imagens passíveis de incriminar cidadãos ainda não condenados. No entanto, a Imprensa acolheu-as. Ao contrário dos norte-americanos, alguns órgãos de comunicação gauleses identificaram mesmo a alegada vítima de violação, bem como a sua filha menor.

O conceito de interesse público assumiu papel central no debate, surgindo alegações sobre a suposta contemporização dos jornalistas franceses com o comportamento sexual dos políticos. “Em França, consideramos que a tarefa do jornalista termina à porta do quarto.

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Não há razão para explicar quem dorme com quem”, declarou Stéphane Jourdain, correspondente da France Press em Nova Iorque, ao “Público”1. Enquanto os media norte-

americanos estão atentos a certos aspetos da vida privada dos políticos, porque o caráter é um critério de escolha eleitoral, porventura decisivo, em França a questão nem se coloca.

O princípio segundo o qual familiares e amigos de figuras públicas mantêm intacto o direito à privacidade nem sempre é respeitado. A violação da lei serviu de argumento para que o caso de Noelle Bush, sobrinha do ex-presidente dos Estados Unidos, fosse mediatizado. A irmã da princesa de Espanha, Telma Ortiz, tentou impedir pela via judicial a publicação de reportagens. O caso da mulher de Jesualdo Ferreira, ex-treinador do Benfica, mereceu críticas da AACS aos jornais envolvidos (Cfr. Anexo 3, sobre todos estes casos).

No documento O privado em público (páginas 39-43)