• Nenhum resultado encontrado

Risco de dupla punição

No documento O privado em público (páginas 160-164)

PARTE II A ABORDAGEM DEONTOLÓGICA

Capítulo 2 Fixação do modelo deontológico em Portugal

2.8 Risco de dupla punição

A detenção de competências disciplinares pela CCPJ é demasiado recente para autorizar uma avaliação séria da experiência. Ainda assim, já ocorreram situações de divergência entre decisões tomadas nesta sede e em outras instâncias. Exemplo disso foi a queixa da jornalista Fernanda Câncio contra colegas de três órgãos de comunicação, por ter sido apresentada em notícias como namorada do primeiro-ministro (Cfr. Anexo 3). Estavam em causa os limites da intrusão na vida privada, mas enquanto a CCPJ tomou como justificáveis as referências ao relacionamento da queixosa com o então chefe do Governo, para o CD é “uma violência exigir-se que a esfera privada dos cidadãos seja reduzida a atos íntimos e secretos” (Parecer 15/2009). Os jornalistas, sustentou, devem proceder à “necessária ponderação da qualidade dos acontecimentos (oficial, público, em público, privado, etc.) em que estão envolvidos os cidadãos suscetíveis de serem objeto de notícia, bem como do interesse público inerente à sua divulgação” (idem).

A lei comete à ERC, entre os objetivos de regulação, a proteção de públicos mais sensíveis, como menores, face a conteúdos suscetíveis de prejudicar o seu desenvolvimento, e, genericamente, a proteção de direitos de personalidade. Um levantamento das participações enquadráveis nesta categoria apresentadas ao organismo entre 2009 e 2011, efetuado no âmbito da presente investigação, revela que das 271 deliberações sobre conteúdos (não incluindo direito de resposta) tomadas ao longo dos três anos, 76 (28%) dizem respeito a direitos de personalidade – 26 em 2009, 32 em 2010 e 18 em 2011. Contudo, o número rondaria, anualmente, 20 queixas, se não tivesse ocorrido a concentração de um elevado número nos mesmos casos – 12 na abordagem de assuntos relacionados com o primeiro- ministro José Sócrates no “Jornal Nacional” da TVI, em 2009, e 9 em fotografias publicadas

156

pela “Visão” e pelo JN (Cfr. Anexo 3) das inundações na Madeira, em 2010. De salientar que as participações raramente foram da autoria de pessoas diretamente visadas e que apenas dez partiram de figuras públicas.

Embora a ERC atue sobre órgãos de comunicação (e não diretamente sobre jornalistas, como compete à CCPJ), no plano da abordagem de casos concretos a fronteira não é fácil de traçar. Tanto mais que, estatutariamente, está incumbida de assegurar a observância de critérios de exigência e rigor jornalísticos. Entre as competências do Conselho Regulador, figura o de “fazer respeitar os princípios e limites legais aos conteúdos difundidos pelas entidades que prosseguem atividades de comunicação social, designadamente em matéria de rigor informativo e de proteção dos direitos, liberdades e garantias pessoais”.

A própria ERC admitiu, na Deliberação 15/2009, ao apreciar uma queixa que remeteria para a CCPJ, que “a questão de saber se houve ou não um comportamento digno de censura do jornalista é, com frequência, incontornável no item que conduz às devidas conclusões acerca da conduta do órgão de comunicação social”, salvaguardando, porém, que “quando tal apreciação é feita, visa apenas fixar uma premissa, não competindo à ERC responsabilizar o jornalista pelos seus atos ou omissões ilícitas”. Foi o que fez no caso “Sol”/Joaquim Oliveira (Cfr. Anexo 3): invocou o desrespeito pelo dever de ouvir as partes atendíveis (Cfr. Deliberação, 27/2010), que cabe à CCPJ analisar. Noutro caso, em que o queixoso dirigiu graves acusações a um jornalista da revista “Sábado”, autor de uma notícia sobre a alegada compra de votos de militantes do PSD em eleições internas, a ERC (Cfr. Deliberação 35/2010) pronunciou-se apenas sobre a alegada denegação de direito de resposta, não dando provimento ao recurso. A apreciação da conduta do jornalista foi remetida para a CCPJ.

A introdução de uma instância com competências disciplinares exterior às empresas pode abrir caminho à dupla punição de jornalistas. Das decisões da CCPJ, cabe recurso para os tribunais administrativos. Caso, contra a mesma pessoa e pelos mesmos factos, a entidade patronal acione um procedimento disciplinar, pode acontecer que o caso venha a ser também apreciado pelos tribunais do trabalho. Qual a decisão que prevalece, se tiverem desfechos diferentes ou incompatíveis, transitados em julgado? Mourão (2010: 92) admite que a resposta passe por “deferir esta competência a um tribunal de conflitos a nível de supremos tribunais (STJ e STA), de forma a obviar a uma decisão ainda passível de recurso”.

157

2.9 Síntese conclusiva

Só com a instauração da democracia, foram criadas em Portugal efetivas condições para construir um modelo de regulação ético-deontológica do Jornalismo, embora entre os profissionais já na década de 60 do século passado tivessem emergido preocupações nesse campo – data de 1966, por exemplo, a inédita incorporação de questões deontológicas no contrato de trabalho. Todavia, a vigência da censura prévia levou a que a aprovação de um código fosse rejeitada pelos jornalistas.

As novas condições políticas criadas após o 25 de Abril de 1974 propiciaram profundas alterações na Comunicação Social. Desde logo a nível do enquadramento legal da profissão de jornalista. Em especial através da lei de Imprensa, que em nome da liberdade de expressão consagrou os direitos dos jornalistas, abriu a possibilidade de constituição de conselhos de redação e criou o conselho de Imprensa.

Os CR, que até 1990 manteriam voto vinculativo na designação de equipas de direção e chefia de redação, só funcionam atualmente em cerca de duas dezenas de órgãos de comunicação. E poucos foram os que criaram instrumentos alternativos de autorregulação, como códigos de conduta próprios ou provedores do leitor.

O Conselho de Imprensa, único criado por lei na Europa, funcionou até 1990. Concentrou-se essencialmente na defesa dos direitos dos jornalistas e na análise de queixas relativas ao direito de resposta, embora fosse portador de competências muito mais vastas. Produziu escassa reflexão doutrinária em torno de questões deontológicas e o facto de demorar muito tempo a deliberar sobre condutas antiéticas prejudicou o efeito repressivo que era suposto ter. No plano dos direitos de personalidade, foi reduzida a sua intervenção, o que em parte se explica pela assumida opção de não analisar casos que se encontrassem em apreciação pela Justiça ou pudessem vir a ser por ela dirimidos.

O Sindicato dos Jornalistas, que sempre defendeu a existência de um CI e, atualmente continua a pugnar pela sua reconstituição, correspondeu, logo em 1976, à determinação legal de criação de um código deontológico. Muito influenciado pelo ambiente revolucionário, o primeiro código viria a ser substituído, em 1993, por uma versão reduzida a dez pontos – e sem sanções previstas – que se encontra em vigor.

O modelo de acreditação profissional herdado do corporativismo não foi posto em causa com a democratização do país. A organização sindical continuou a controlar o acesso à

158

profissão, mas o CD nunca obteve condições para garantir o efetivo cumprimento do Código Deontológico. Porque, apesar das alterações estatutárias tendentes a proporcionar-lhe autonomia, se manteve confinado ao âmbito associativo e privado de quadro sancionatório, questão por diversas vezes discutida em congressos de jornalistas.

Como assinala Camponez, a atuação do CD foi sempre marcada pela maneira como os membros do órgão encaram as suas funções – centrada nos jornalistas ou aberta à apreciação de queixas de cidadãos, possibilidade prevista nos estatutos do SJ desde 2009. Assim perdeu coerência de procedimentos e capacidade de produzir jurisprudência. Por outro lado, optou durante muito tempo por não publicitar as deliberações, assim reduzindo a sua eficácia dissuasora.

Com a criação da AACS, em 1990, foi imposto um sistema de heterorregulação. O novo organismo, cuja composição governamentalizada mereceu fortes críticas dos jornalistas, produziu relevantes deliberações no domínio da compatibilização entre direito à informação e direitos de personalidade. No SJ, a mudança teve como efeito o reforço da tese de que o papel de defesa dos associados na esfera laboral, dadas as especificidades da profissão de jornalista, não pode dissociar-se da intervenção no domínio ético-deontológico. Esta visão seria posta em causa pelos defensores de um modelo de ordem, que os jornalistas rejeitaram em referendo, em 1992.

Um ano depois, a declaração de inconstitucionalidade de normas do EJ e do Regulamento da Carteira Profissional, por violação da liberdade sindical, retirou ao SJ a competência de emissão, revalidação e cassação de títulos profissionais, abrindo caminho à instituição de um novo sistema de acreditação, envolvendo representantes dos jornalistas e dos operadores do setor.

A CCPJ, em funcionamento desde 1996, adquiriu competências disciplinares na sequência da revisão do EJ, em 2007. Passou a poder apreciar a eventual violação de deveres inscritos na lei e a aplicar sanções com efeito direto no exercício profissional. Alguns dos deveres foram transpostos do Código Deontológico, de forma direta, enquanto outros não correspondem exatamente aos previstos nesse instrumento. Os novos poderes detidos pela CCPJ podem abrir caminho à dupla punição de jornalistas, caso seja acionado pela entidade patronal um procedimento disciplinar incidindo nos mesmos factos.

159

Capítulo 3 Direitos de personalidade em códigos deontológicos e

No documento O privado em público (páginas 160-164)