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Direito à palavra e à imagem

No documento O privado em público (páginas 69-74)

PARTE I LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIGNIDADE HUMANA

Capítulo 2 Proteção legal de direitos de personalidade

2.4 Direito à palavra e à imagem

Constitucionalizado em 1989, o direito à palavra usufrui de maior proteção do que o direito à imagem, uma vez que a gravação é, por si só, ilícita, enquanto a captação de imagens só é

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crime, como veremos mais adiante, se realizada contra a vontade da pessoa. Não se trata de preservar algo sob segredo, mas de acautelar a eventual manipulação, mesmo quando a reprodução é autorizada. O direito desdobra-se em três princípios: à voz – registo e divulgação só com consentimento; às “palavras ditas” – autenticidade e rigor de reprodução; ao auditório – decisão sobre a quem se transmitem as palavras (Canotilho et al., 2007:467). A reprodução de conversas privadas, mesmo em lugares públicos, discutida em 1999 a propósito do caso “O Independente”/Sousa Franco (Cfr. Anexo 3), é ilegal.

"A necessidade de proteger a pessoa contra a arbitrária difusão da sua imagem deriva de uma exigência individualista, segundo a qual a pessoa deve ser árbitro de consentir ou não na reprodução das suas próprias feições: o sentido cioso da própria individualidade cria uma exigência de circunspeção, de reserva" (Cupis, 1961 [1959]: 130). O CP criminaliza a captação de imagens de pessoas contra a sua vontade, mesmo em eventos em que “legitimamente” tenham participado, e a utilização de fotografias ou filmes, tenham ou não sido licitamente obtidas. Já segundo o CC um retrato não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem consentimento do próprio (ou de familiares, após a morte). Esta proibição aplica-se “se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada”.

A lei dispensa o consentimento em função da notoriedade, cargo, exigências de polícia ou justiça, finalidades científicas, didáticas ou culturais ou “quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam ocorrido publicamente”. A conjugação das exceções previstas nesta norma com as do CPP torna, de acordo com doutrina, a incriminação mais estreita, cingindo-se, tendencialmente, à fotografia íntima, neste caso em nome da proteção do direito à intimidade e não do direito à imagem.

O direito à imagem é, à luz do CC, autónomo em relação ao direito à privacidade. O modelo, que não encontra paralelo noutras ordens jurídicas, permite ao jornalista, segundo Costa Andrade6, “fotografar tudo o que diz respeito ao público". A ampla liberdade de ação

concedida pela lei aos repórteres-fotográficos não dispensa, contudo, especiais cuidados, a ponderar na esfera da autorregulação. A possibilidade de captar e divulgar imagens não é uma porta aberta à invasão da privacidade. Nesta sede, o juízo ético-deontológico deve ser convocado, especialmente em situações que podem afetar a dignidade humana.

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Intervenção, como deputado, nos trabalhos preparatórios da reforma do CP de 1995 (cit. in parecer PGR 95/2003).

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Como provedor do jornal “Público”, Jorge Wemans preocupou-se com questão das fotografias – de menores; de desconhecidos, antes de serem arguidos ou acusados em processos judiciais; de figuras públicas em ambientes privados, sem autorização; de indivíduos identificáveis, para ilustrar textos a que são alheios (Wemans, 1999: 32). Ainda que involuntariamente, os media formatam, por esta via, a imagem pública dos cidadãos. “Escolhem-se as fotos e as imagens que ‘mais dizem’ aquilo que o personagem é. E quem define o seu ser, aquilo que o personagem é, são os jornalistas. Violento poder. Será que, pelo menos, dele se tem consciência?” (idem, 142).

A exibição de imagens de pessoas em momentos de fragilidade será, porventura, a que mais apertado escrutínio exige, atentos os danos que pode causar. Em 11/7/2001, a AACS emitiu uma diretiva especificamente sobre a autorização de utilização da imagem, em televisão, de pessoas em situação de “manifesta fragilidade psicológica”. O regulador defendeu que o consentimento não pode limitar-se a uma “pergunta feita em cima da hora”, antes exigindo um conjunto de diligências prévias: recurso, sempre que possível, à intervenção de familiares ou representantes legais; esclarecimento junto do visado das caraterísticas da reportagem, para que decida “em perfeita consciência”; consideração de eventuais conflitos de direito (a informar e à identidade pessoal). Em casos de especial gravidade, a AACS determinava suporte jurídico e autorização escrita, para defesa de quem a concede e do próprio jornalista.

Nesse mesmo ano, a entidade reprovou (Deliberação AACS 7/11/2001) a cobertura noticiosa de um incêndio num lar de idosos de Viana do Castelo, que causou a morte de três pessoas. A generalidade da Imprensa exibiu nas primeiras páginas fotografias de doentes acamados, em situação de fragilidade física e psíquica, sem salvaguarda da identidade. Algumas estações de televisão emitiram imagens com as mesmas caraterísticas, não editadas, recebidas de cidadãos. A abordagem, comum a sete jornais e quatro canais, representou para a AACS uma violação do direito à imagem, para mais tratando-se de cidadãos anónimos.

Em determinadas situações, a divulgação de imagens de pessoas mortas pode revestir interesse público. Depende do caso e do estatuto da pessoa envolvida. É no entanto necessário, mesmo quando se justifica, compatibilizar o tratamento jornalístico com o respeito pelos direitos de personalidade – que perduram para além da morte, como determina o art.º 71.º do CC –, mas também com duas outras dimensões: os direitos dos familiares e os do público, sobretudo o mais vulnerável, como as crianças.

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A morte – e as emoções que a rodeiam – é terreno propício à exploração gratuita da dor, morbidez ou crueldade. Daí a controvérsia causada, em 2004, pela cobertura dos casos dos futebolistas Feher e Bruno Baião ou, em 2010, das cheias na Madeira. Imagens desta natureza, sustentara a AACS em 2002, só devem ser apresentadas como “elementos de facto estruturantes da informação, essenciais à matéria noticiosa, ou pela notoriedade dos falecidos ou pela relevância da situação que os vitimou” (Diretiva, 26/6/2002). Nenhum destes pressupostos foi preenchido na divulgação pelo CM e pela TVI, em 2011, de imagens de um homicídio, que a ERC reprovou (Deliberações 9/2011 e 16/2011). No caso da morte do artista Angélico Vieira, a reguladora instou o JN a recusar o sensacionalismo e a respeitar a dor de familiares e pessoas próximas do falecido (Cfr. Anexo 3, sobre todos estes casos).

A avaliação do valor-notícia inclui, como componente essencial, o respeito pela dignidade da pessoa humana, que “não permite que o corpo humano, depois do falecimento, possa ser transformado num objeto e exposto ao público sem qualquer recato”, como observou a ERC na deliberação 7/2008, sobre fotografias de cadáveres de militares timorenses abatidos, no âmbito do caso “Sol”/Reinado (Cfr. Anexo 3).

Não raro, as reportagens acerca de casos criminais suscitam dúvidas quanto à ocultação ou identificação, pela imagem, de agentes policiais que participam em detenções, juízes ou magistrados do Ministério Público (MP). Em 2003, os magistrados que dirigiram o inquérito ao “caso Casa Pia” queixaram-se da presença de jornalistas junto às instalações onde desenvolviam a sua atividade. O Conselho Consultivo da PGR pronunciou-se (Parecer 95/2003), sobre os procedimentos a adotar pelas forças de segurança: só poderiam restringir o direito à informação para garantir a livre entrada e saída de pessoas e viaturas no tribunal e salvaguardar a vida, integridade física, liberdade e segurança de intervenientes processuais, respeitando o princípio da proporcionalidade. Não estavam, assim, autorizadas a impedir a captação e o registo de imagens pelos jornalistas.

Mais complexa é a divulgação de imagens de suspeitos de crimes, sem ocultação de rosto – protegida com ecrã, na Imprensa, ou através de distorção de imagem, em televisão. Regra geral, a identificação não representa um valor acrescentado do ponto de vista noticioso, pelo que além da violação do direito à imagem, reputação e bom nome, é posto em causa o princípio da presunção de inocência. Neste domínio, o caso porventura mais grave foi o do

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homicídio do agente da PSP Felisberto Silva, em 2002 (Cfr. Anexo 3). Até porque viria a concluir-se que os dois presumíveis implicados nada tinham a ver com o crime.

Alguns dos órgãos de comunicação visados apresentaram argumentos que merecem um exame crítico. A TVI, por exemplo, inscreveu a sua conduta no cumprimento de “exigências de polícia ou de justiça”, legalmente previsto, alegando que contribuiria para a captura dos criminosos. A ideia de que faz parte da missão dos media a colaboração com a polícia é tanto mais perigosa quanto mais efeitos produzir na sua atividade – desde logo, na perda de independência face aos poderes públicos. Pode ocorrer cruzamento entre a investigação jornalística e a criminal, mas os jornalistas devem evitar tornar-se instrumento das polícias, sob pena de hipotecarem a sua autonomia e alienarem condições para averiguarem a legalidade da atuação policial e formularem um juízo crítico das linhas de investigação seguidas.

A questão da publicação intencional de imagens de presumíveis criminosos foi suscitada em 1984, quando o “Diário Popular” publicou fotos de seis suspeitos das FP-25 de Abril, cujo paradeiro era desconhecido, fornecidas pela Polícia Judiciária (PJ). O CI defendeu que não deve ser obrigatória, porque, “por mais cuidadosa que seja, pode trazer graves prejuízos morais, sociais e outros aos próprios” (Parecer, 1/4/1985). O órgão valorizava a presunção de inocência, que o jornalista deve observar, independentemente da necessidade da polícia de localizar um suspeito. E concluía: “Em caso de conflito, o princípio da liberdade de Imprensa prevalece sobre o dever de cooperação com as autoridades policiais, que deve ser ponderado casuisticamente, de acordo com os princípios deontológicos do jornalismo e com a informação disponível, pelos responsáveis dos órgãos de comunicação social”.

Práticas profissionais consolidadas nem sempre levam em linha de conta o direito à imagem. Em Portugal, a perseguição de figuras públicas por paparazzi não é prática corrente – o caso “VIP”/Manuel Maria Carrilho (Cfr. Anexo 3), embora tenha motivado a discussão em torno das fronteiras da invasão da privacidade, não se enquadra nessa categoria. Já o recurso a imagens de arquivo tem sido objeto de queixas. Quando atinge cidadãos completamente alheios à notícia, os efeitos podem atingir dimensões graves. Os

graffiters que em 2001 foram associados involuntariamente a um gangue pelo “24 Horas”

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No documento O privado em público (páginas 69-74)