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Maior proximidade com o público

No documento O privado em público (páginas 92-96)

PARTE I LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIGNIDADE HUMANA

Capítulo 3 Novo contexto comunicacional

3.2 Maior proximidade com o público

A interatividade, que a Internet proporciona, alterou profundamente a relação entre o público e os media, hoje muito mais próxima. O ambiente digital, ao instaurar uma “sociedade em rede”, na conceção de Castells (2004 [2001]), estimula a partilha de informação. Já não se trata apenas de ampliar o espaço de participação cívica, através da expressão de pontos de vista em fora abertos, mas de levar o público a passar a fronteira, tornando-se parceiro do jornalista ou, mesmo, tomando o seu lugar.

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Os sistemas de informação “parecem um pouco os supermercados, são o ‘grande festim’ da informação e da comunicação. A abundância é oferecida a todos, sem hierarquia nem competências exclusivas, com a ideia de que se trata de um espaço transparente” (Wolton, 2000 [1999]: 77-78). Embora comporte riscos, esta tendência não é, em si, perniciosa. Pelo contrário: beneficia a livre circulação de informação e a discussão de ideias e pode ajudar os media a consolidarem uma relação mais aberta com o público – logo, mais disponível para acolher a crítica.

As chamadas “caixas de comentários” constituem o canal mais acessível para o fomento do debate, mas também para a violação dos mais elementares direitos de personalidade. Isto porque se prestam a veicular afirmações difamatórias ou de caráter discriminatório, acusações sem fundamento e até incitações ao ódio e à violência, frequentemente a coberto do anonimato ou com recurso a identificações fictícias. A este respeito, é revelador o estudo de Castanheira (2004: 73 e ss.) sobre os comentários inseridos no website do “Expresso” aos 32 artigos que publicou no semanário, ao longo do ano 2000, tendo com tema a Fundação Jorge Álvares. Dos 730 comentários recolhidos, 601 (82,3%) eram anónimos, grande parte dos quais difamatórios, chegando mesmo ao insulto. Apenas em 46 (6,3%) os autores eram identificados com nome e endereço eletrónico.

Tal como outros órgãos de comunicação, o “Expresso” instalou, entretanto, um mecanismo de restrição de comentários. Generalizou-se o recurso a filtros, ferramentas técnicas que, a partir de palavras-chave, removem automaticamente conteúdos impróprios, para evitar a responsabilização. Vários media permitem ao utilizador a denúncia de mensagens desse tipo. Porém, a vigilância permanente das “caixas” obriga a mobilizar meios humanos e coloca problemas operativos. A velocidade de inserção – e eventual replicação noutras plataformas – torna muitas vezes inviável eliminar comentários em tempo útil.

O Código de Conduta da BBC determina a remoção de “conteúdo abusivo ou material inadequado” por uma de três vias – através de pré e pós-moderação, pelo moderador, e da “moderação reativa”, pelo utilizador, que alerta o moderador, especificando que esta última modalidade não é apropriada em websites suscetíveis de atrair crianças. O site www.huffingtonpost.com atribui a uma equipa a missão de “moderar” comentários e elimina ataques ad hominem, discursos de ódio, violência, racismo, homofobia, antissemitismo, etc.

Outra alternativa consiste no registo prévio de utilizadores, solicitando um conjunto de elementos. Desde março de 2011, o jornal “Público” valida previamente os comentários. Tal

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como o “i”, exige que o utilizador forneça uma conta de email, através da qual recebe um endereço eletrónico, a que deve aceder para ativar o seu registo. Assim pode ser identificada a proveniência, embora persista a possibilidade de uso de nomes fictícios.

As estratégias adotadas por estes órgãos revelam a tomada de consciência de que os espaços de comentário não podem ser inteiramente livres. O condicionamento do acesso suscita críticas, mas não é atentatório da liberdade de expressão. Pelo contrário, favorece-a, desde que entendida como implicando responsabilidade. A Deliberação 2/2011 da ERC sobre comentários em edições eletrónicas de quatro jornais, a propósito de notícias relativas ao caso do homicídio do cronista social Carlos Castro (Cfr. Anexo 3), aponta precisamente no sentido da introdução de barreiras. A ERC defende, desde 2009, que a Lei de Imprensa, que atribui ao diretor a responsabilidade editorial por todos os conteúdos, deve ser aplicada às edições eletrónicas, com as devidas adaptações.

As mutações em curso podem vir a aconselhar, se não a autonomização de um direito do ciberespaço, pelo menos a reconfiguração das disposições legais que regulam o setor da Comunicação Social. Porém, a regulamentação da Internet está longe de ser pacífica ou sequer exequível. Dada a sua desterritorialização, é tecnicamente muito complexa e, porventura, impossível, como demonstra o caso da difusão de telegramas diplomáticos confidenciais pelo WikiLeaks (Cfr. Anexo 3). Os modelos que têm sido aplicados, como os “polícias cibernéticos” que na Alemanha procuram vigiar sítios eletrónicos, ilustram essa enorme dificuldade.

Prévia à questão técnica, é a política, digamos assim, que prevalece. Tão intrinsecamente associado à liberdade de expressão, o ciberespaço é naturalmente resistente a tentativas de controlo. Em 1997, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos anulou, por ser contrária à Primeira Emenda, a Communication Decency Act, lei aprovada no ano anterior, que visava sobretudo contrariar a propagação de conteúdos pornográficos e obscenos na Internet.

“Num meio absolutamente aberto e de acentuado pendor libertário, é impossível a autorregulação. O que torna mais complexa a necessidade de regulamentação”, reconhece Castanheira (2004: 172-173), consciente das resistências que enfrentaria. “Esta peculiar experiência autogestionária é defendida com vigor, mas também com enorme desconfiança relativamente a quem a tente regulamentar, mesmo no plano técnico. Qualquer tentativa tende a ser encarada como potencialmente censória”, afirma aquele autor.

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Sendo improvável a eficácia (ou sequer a vontade) de autorregulação da indústria, em especial de fornecedores de conteúdos, tornou-se imperioso assegurar a autodefesa dos utilizadores, numa perspetiva transnacional. A União Europeia, que lançou, em 1996, o debate sobre esta matéria, através do “Livro Verde sobre a Proteção dos Menores e da Dignidade Humana nos Serviços Audiovisuais e de Informação”, criou a partir de 1999 (Cfr. Decisão 276, do Parlamento Europeu e do Conselho) programas de incentivo à utilização segura da Internet. Especialmente vocacionados para a proteção da juventude e da infância, identificam riscos e graus de exposição. A estratégia passa pelo incremento da informação acerca de conteúdos ilegais, como a pornografia, e consequências danosas, como o abuso sexual e o cyberbullying.

A preocupação com o impacto da Internet, que iniciativas desta natureza expressam, reside na constatação de que está a redefinir as fronteiras da privacidade. Emily Bell, diretora de conteúdo digital do Guardian News and Media (cit. por Whittle et al., 2009: 5), constata que “nunca foi tão fácil descobrir o paradeiro, negócios e comportamento de qualquer indivíduo (…) Metade da população parece feliz em compartilhar a sua vida com o público – fotos, detalhes, blogs – e onde você não tem que ser muito intrometido para se encontrar na posse de ‘muita informação’”. Informação em grande quantidade, mas de fiabilidade difícil de avaliar e que pode ser falsa ou difamatória, como sucedeu no caso Mathew Firsht (Cfr. Anexo 3).

Concentremo-nos nas redes sociais, onde a multiplicação de “amigos” convida à partilha de confidências e à revelação de assuntos da esfera íntima. São do domínio privado, semiprivado ou público? No que ao Jornalismo diz respeito, mesmo que a resposta a esta pergunta não seja cabal, é evidente que interpelam o exercício profissional.

Quaisquer informações difundidas por essa via devem ser objeto de escrutínio muito rigoroso. Tendo caráter pessoal, o jornalista deve abster-se de as usar, a menos que razões de imperioso interesse público o justifiquem. O facto de circularem na Web, muitas vezes por iniciativa de quem assim expõe, deliberadamente, a sua privacidade aos olhos de desconhecidos, não torna legítima a apropriação. Nesse sentido, a reprodução pelo semanário “Sol” de conversas mantidas no Facebook entre o cronista social Carlos Castro e Renato Seabra, presumível autor da sua morte (Cfr. Anexo 3), viola o direito de ambos à reserva da vida privada.

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No documento O privado em público (páginas 92-96)