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Exercício da profissão em contexto empresarial

No documento O privado em público (páginas 132-139)

PARTE II A ABORDAGEM DEONTOLÓGICA

Capítulo 1 Evolução do debate

1.3 Exercício da profissão em contexto empresarial

Os jornalistas detêm direitos que representam uma “compressão ou limitação maior ou menor do direito de orientação dos titulares dos órgãos de comunicação que desse modo e nessa medida deixam de ser sujeitos ativos da liberdade de imprensa para passarem a ser seus destinatários” (Canotilho et al., 2009: 582). Por outro lado, para alguns autores – a doutrina e a jurisprudência seguem essa linha – o artigo 41.º da Constituição, relativo à inviolabilidade da liberdade de consciência, religião e culto, deve ser interpretado como protetor da consciência em si e não apenas das convicções religiosas. Machado (2002: 585)

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defende que, na dimensão negativa da objeção de consciência, aquele artigo pode constituir um instrumento de defesa do jornalista perante a empresa, o diretor ou mesmo o CR.

A garantia de independência dos jornalistas, introduzida pela primeira vez na lei de Imprensa de 1972, figura na Constituição e comporta direitos inscritos em legislação ordinária. De acordo com o EJ, “não podem ser constrangidos a exprimir ou subscrever opiniões nem a abster-se de o fazer, ou a desempenhar tarefas profissionais contrárias à sua consciência, nem podem ser alvo de medida disciplinar em virtude de tais factos” e podem recusar ordens ou instruções de serviço com incidência editorial emanadas de pessoas estranhas à área da informação. O EJ confere ainda ao jornalista o direito de se opor à publicação de textos da sua autoria em órgão de comunicação diferente daquele em cuja redação exerce funções, ainda que pertencente à empresa ou grupo económico a que se encontra vinculado. Neste caso, terá de invocar, de forma fundamentada, desacordo com a orientação editorial.

A alteração profunda da orientação editorial ou da natureza do órgão de comunicação podem justificar a cessação da relação de trabalho, com justa causa e direito a indemnização, conforme dispõe o EJ. A chamada “cláusula de consciência”, que também figura na lei de Imprensa, desde 1975, faz parte da legislação de diversos países, como o Código do Trabalho francês, de 1935. A Hungria foi, neste plano, precursora, em 1914.

Em Portugal, a situação de precariedade laboral esvazia de eficácia a “cláusula de consciência”, que só em dois casos foi aceite como fundamento para a rescisão de contratos. No extinto “República”, em 1975, a legitimidade da saída de 21 jornalistas foi reconhecida pelo CI, que confirmou a alteração da linha editorial. No caso da revista “Focus”, em 2001, a AACS deliberou favoravelmente a dois jornalistas (Cf. Carvalho et al., 2003: 119).

“A liberdade de expressão dos jornalistas não deve ser apenas assegurada perante os poderes públicos, mas igualmente face aos proprietários e à estrutura hierárquica por estes estabelecida” (idem, 123). Assim enunciado, o princípio proporciona ao jornalista um espaço próprio de decisão e formação de opinião, dentro das linhas de orientação genéricas fixadas pela empresa. Porém, os direitos conferidos pela lei não põem em causa – nem poderiam pôr – a subordinação à hierarquia. Nestas condições, “a margem de decisão dos jornalistas está limitada, não só, a montante, pela lei, mas também, a jusante, pela orientação, pelas

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regras e pelas estratégias definida pela respectiva empresa jornalística” (Mesquita, 2003: 240).

A Resolução 428/70 do CE sustenta que a organização interna dos meios de comunicação deve garantir a liberdade de expressão dos editores responsáveis e preservar a sua independência, mas nem sempre é possível compatibilizar a liberdade dos jornalistas, assalariados, com a liberdade interna aos media. Cria-se uma situação de “dupla dependência” ou de “dupla lealdade” – das normas específicas do exercício da profissão e das determinações da empresa, emanação do direito de propriedade – que pode ser conflitual e criar constrangimentos aos jornalistas.

O poder coercivo da empresa, que pode condicionar a evolução na carreira, recusar aumentos salariais ou mesmo despedir, é passível de quebrar a fidelidade do jornalista ao seu compromisso ético. A concentração empresarial, ao reduzir alternativas de emprego, também pesa na atitude do jornalista. Não é de todo seguro que a diminuição do pluralismo causada por aquele fenómeno seja compensada pela pluralidade interna em cada órgão de comunicação, ao contrário do que desejam Carvalho, Cardoso e Figueiredo (2003: 124).

Combater este cenário, em que as pressões tendem a multiplicar-se, passa pela valorização da componente coletiva da atividade. Um jovem estagiário, especialmente em contexto de precariedade laboral, é mais vulnerável do que um veterano. Mas nenhum deles está isolado. O jornalista “nunca se encontra totalmente só perante as suas opções. Faz parte de uma equipa redatorial” (Cornu, 1999 [1994]: 264-265). A responsabilidade solidária não reduz a autonomia individual; pelo contrário, reforça-a, ao criar no seio das redações um clima de diálogo “capaz de realizar as condições de uma ética da informação baseada na intersubjetividade e de fundamentar exigências de legitimação junto dos responsáveis hierárquicos”.

Pragmático, Mathien (apud Mesquita, 2004: 241) constata a necessidade de um “compromisso permanente” entre o dever do jornalista de satisfazer o direito do público à informação e o propósito da empresa/direção de satisfazer as expectativas dos clientes, para rentabilizar o negócio – isto é, entre as visões de informação como produto, que tem de ser vendido, e informação como serviço aos cidadãos. Porém, reconhece que passar à prática esse compromisso pressupõe que as empresas “integrem nas suas estratégias, a par das noções de mercado, de vendas e de audiência, o conceito de credibilidade – credibilidade junto do destinatário, do recetor, dos públicos”.

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Imputar às empresas todas as culpas pelas violações ético-deontológicas seria, porém, ocultar as responsabilidades dos jornalistas. “Por muito socialmente responsáveis que alguns jornalistas se tornem, sempre haverá aqueles que para fins comerciais ou de promoção profissional estarão preparados para abusar da sua liberdade”, observam Bulmer e Bell (1985: 20). Sobretudo por efeito de pressões cruzadas sobre o profissional: “são os editores a empurrarem-no para ser o primeiro com a história ou ter a melhor imagem; é a competição com os colegas sob igual pressão dos seus próprios editores; é o orgulho profissional e a esperança de progressão na carreira; e é o poderoso ‘mito’ jornalístico do repórter ‘durão’, que tem a história e não se importa nada com as consequências”.

Perante o público, o jornalista assume o que assina, mas inserido numa redação essa responsabilidade dilui-se, já que não controla todo o processo produtivo. Em Portugal, a própria lei o reconhece, através do EJ, ao autorizar a intervenção hierárquica, sob determinadas condições. O uso da prerrogativa circunscreve-se à forma ou à necessidade de redimensionamento do artigo, muito frequente na Imprensa; não pode servir de pretexto à sua adulteração. Note-se que, neste plano, vigoram sistemas diferentes. Segundo Bertrand (2002 [1997]: 57), na Grã-Bretanha os editores respondem pelos atos da sua equipa, enquanto em França os jornalistas não podem remeter responsabilidades para um superior.

Bertrand (idem, 116-177) considera indispensável que os jornalistas “mandem blindar os seus códigos: conseguindo a participação na gestão editorial da sua publicação, fazendo incluir o código nos contratos coletivos de trabalho ou, ainda, conseguindo a legalização das cláusulas do código num estatuto profissional”. O reforço da autonomia, para o qual aponta esta proposta, pode ser alcançado através de diversas vias. Como vimos, em Portugal a participação na orientação editorial goza de proteção legal. Por outro lado, na mais recente revisão, o Estatuto inspirou-se no CD, tornando a violação de deveres passível de procedimento disciplinar – questão que abordaremos no capítulo seguinte.

A incorporação de normas deontológicas em contratos de trabalho – o “Daily Express” aceitou incluir nos seus o código da PCC (Cfr. Câmara dos Comuns, 2009/2010) – é uma via possível, já que também vincula proprietários dos media. Em sede de contratação coletiva, as questões deontológicas estão, em Portugal, salvaguardadas. A convenção em vigor, assinada pelo SJ e pela Associação Portuguesa de Imprensa (API) em 2010, inscreve entre as garantias a impossibilidade de o empregador exigir “qualquer conduta que colida

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com os deveres emergentes do Código Deontológico ou com os direitos e deveres previstos no Estatuto do Jornalista”, bem como o direito de “recusar o cumprimento de ordens a que não deva obediência”, nos termos legais.

Alternativa válida é a valorização do papel dos CR, mediante a atribuição de competências como o parecer vinculativo na elaboração do estatuto editorial e de códigos de conduta, defendida pelo SJ27. Assim poderiam ser eliminados – ou pelo menos atenuados – os efeitos

perversos do fenómeno que Balle (apud Cornu, 1999 [1994]: 71) designa como de “dupla filiação” – a partilha de regras profissionais com os pares e a subordinação e lealdade à hierarquia e à empresa, que considera suscetível de se converter em “dupla infidelidade”.

1.4 Síntese conclusiva

A Deontologia, enquanto quadro de deveres profissionais, inspira-se na Moral, mas problematiza-a permanentemente, por impulso de interrogações éticas a que a prática quotidiana dos jornalistas conduz. Ao codificar normas, aproxima-se do Direito. E, como pressupõe uma abordagem crítica, adquire um dinamismo a que não é indiferente o juízo ético da sociedade sobre o exercício profissional. Entendida como instrumento de aferição da responsabilidade social dos jornalistas, corresponde ao reconhecimento dos efeitos do que transmite. Materializa, assim, um contrato com o público, habilitado a escrutinar condutas em função dos deveres assumidos.

Historicamente, a Ética e da Deontologia foram decisivas para consolidar a identidade profissional, ao contribuírem para que o Jornalismo se distinguisse de atividades conexas e adquirisse legitimação social e autonomia perante o Estado. A introdução da doutrina da responsabilidade social, em 1947, através do “Relatório Hutchins”, constitui um momento importante. Viria a ser acolhida na Declaração da Unesco Sobre os Media, que em 1983 consagrou a informação como bem social e instaurou o princípio de que o jornalista deve nortear-se pela sua consciência ética.

Autores como Christians e Nordenstreng entendem que o paradigma do “Relatório Hutchins” já não reúne condições para garantir a responsabilidade social dos media. De forma a eliminar os riscos de fechamento da autorregulação, preconizam uma ética do cidadão, fundada em princípios como o da dignidade humana. Trata-se da constatação de que o

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respeito pela ética também depende da capacidade dos profissionais de combaterem tendências corporativas.

A autorregulação, assente na perspetiva de que o jornalista só aceita, em matéria profissional, a jurisdição dos seus pares, detendo em primeira instância uma responsabilidade perante o público, materializa-se através de um conjunto de instrumentos. É consensual a ideia de que, se efetivamente exercida, inibe os poderes públicos de intervirem, o que favorece a independência dos media. O reforço da confiança dos cidadãos é outra das vantagens identificadas. Mas o facto de não ter força de lei e de estar exposta aos interesses da indústria dos media e dos próprios jornalistas fragiliza a autorregulação.

Em duas posições se baseia a discussão em torno da fórmula mais eficaz de conferir eficácia à autorregulação. Quem preconiza sanções meramente morais, parte do princípio de que a denúncia pública de uma infração deontológica é suficiente, atendendo à exposição a que o jornalista está sujeito. Do lado oposto, argumenta-se que só a imposição de sanções efetivas pode travar abusos. O debate desta questão não pode, no entanto, ignorar a influência do contexto empresarial nas práticas jornalísticas.

Entre os instrumentos de autorregulação transversais, predominam os códigos. Diversos na dimensão, no conteúdo e na origem, não são uniformizáveis. Contemplam, ainda assim, princípios comuns, como o respeito pela verdade e o rigor. Salvo raras exceções, os conselhos deontológicos ou de ética, encarregados de zelar pelo cumprimento das normas constantes dos códigos, procedem apenas à reprovação pública de infrações. As ordens profissionais, que impõe inscrição obrigatória e regime disciplinar, apenas estão implantadas em Itália e em alguns países da América Latina. Os críticos deste modelo sustentam que não é compatível com a natureza aberta do acesso à profissão e sublinham o facto de a maioria dos jornalistas não exercer a atividade em regime liberal.

Instrumentos internos aos media, os códigos de conduta, livros de estilo e estatutos editoriais têm alcance diferente, no que concerne à eficácia. Os primeiros acolhem muitas vezes regras mais apertadas do que as previstas em documentos nacionais, enquanto a abordagem genérica dos estatutos lhes retira capacidade para produzirem efeitos.

O cargo de provedor, embora dependa em grande medida das caraterísticas de quem o exerce, apresenta a vantagem de se instituir como “ponte” entre a redação e o público, usufruindo também de condições para desenvolver um olhar crítico sobre o Jornalismo. A

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independência é condição de sucesso da sua intervenção, mas os provedores enfrentam muitas vezes a relutância dos profissionais quanto ao escrutínio do seu trabalho e correm o risco de serem instrumentalizados pela empresa.

As potencialidades dos CR, cuja ação incide predominantemente, em Portugal, na defesa dos direitos dos jornalistas, estão por explorar na sua plenitude. A possibilidade de tomarem posição sobre questões deontológicas não tem figurado entre as suas principais preocupações. No entanto, poderiam integrar entre as suas competências a receção de queixas do público sobre o desempenho dos jornalistas neste plano.

Mecanismo vocacionado para a proteção dos cidadãos perante os media, o direito de resposta, que se encontra contemplado na Constituição, obedece aos princípios da igualdade e da eficácia. Visa permitir a apresentação de uma visão dos factos – e não apenas a correção de informações – além de ser um meio de defesa contra ofensas. Nessa medida, pode levar os jornalistas ao autocontrolo.

A participação de personalidades exteriores ao setor dos media é encarada como a principal vantagem dos CI – inclusive na mediação, visto que lhes cabe apreciar reclamações. Contudo, não é facilmente compaginável com o princípio de que os jornalistas não aceitam ingerências estranhas em matéria deontológica. A proposta de Bertrand, que preconiza desenvolvimento de um conjunto de “meios de assegurar a responsabilidade social dos media”, aponta para a combinação de instrumentos.

O noticiário sobre práticas jornalísticas e empresas mediáticas, vulgarmente designado meta-jornalismo, também deve ser incluído entre os mecanismos de regulação. Quanto mais não seja por fomentarem o debate em torno da produção jornalística e permitirem a crítica interna, numa profissão que reclama legitimidade para a exercer sobre cidadãos e entidades.

As normais legais conferem direitos e salvaguardam a independência do jornalista. No plano ético-deontológico, está vinculado a um código, livremente assumido. Porém, enquadrado numa redação, deve obediência às determinações da hierarquia da empresa. Em caso de colisão, podem surgir pressões e até conflitos. Daí a necessidade de reforçar a sua autonomia, através da inclusão de cláusulas de incidência deontológica em contratos de trabalho e da atribuição de novas competências aos CR.

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