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Responsabilização pelos crimes

No documento O privado em público (páginas 85-88)

PARTE I LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIGNIDADE HUMANA

Capítulo 2 Proteção legal de direitos de personalidade

2.9 Responsabilização pelos crimes

Até à entrada em vigor da Lei da Imprensa de 1999, vigorou em Portugal o sistema de responsabilidade sucessiva ou “em cascata”, comum à maior parte das legislações, que estabelece uma ordem de responsáveis, em regra apontando o diretor como cúmplice da publicação de um texto (alguns quadros legais chegam a envolver editor, impressores e até distribuidores). O modelo, ao permitir a punição de apenas um dos possíveis autores do crime, tornava mais simples a repressão e menor o risco de impunidade, sendo mais favorável à liberdade de Imprensa (Carvalho et al.: 2003: 209).

Em 1999, foi adotada, segundo Carvalho, uma solução inédita: a autoria é atribuída a quem tiver produzido o texto ou a imagem ou a quem os tiver promovido, caso não tenham sido consentidos. O diretor, ou quem o substitua, incorre em pena de desobediência qualificada se, sendo notificado para revelar a identidade do autor, não o fizer. “Só responde a título de culpa pela omissão do dever de exercer o devido controlo sobre o conteúdo da publicação” (idem, 211) – não pela autoria, o que seria inconstitucional. Uma punição por facto praticado por outrem “representava um manifesto entorse ao princípio da responsabilidade pessoal que informa o direito penal”. É assim afastada a possibilidade de responsabilização objetiva, mas Carvalho considera que aumenta o risco de impunidade.

Para artigos de opinião e declarações corretamente atribuídas – que só responsabilizam os seus autores, a menos que esteja em causa a instigação à prática de um crime – mantém- se o regime especial. De sublinhar que nas leis da Televisão e da Rádio está prevista a criminalização dos responsáveis que, podendo, não se oponham à prática dos crimes, sendo punidos com a pena aplicável ao tipo de crime, reduzida de um terço nos seus limites.

2.10 Síntese conclusiva

A consolidação dos direitos de personalidade como valor social conduziu à introdução em ordenamentos constitucionais e legais de princípios como o direito à vida e integridade pessoal, honra, bom nome e reputação, imagem, palavra e intimidade da vida privada. Em Portugal, só na década de 90 do século passado começou a ser fixada jurisprudência.

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O direito à informação e os direitos de personalidade mantêm uma tensão dialética que torna difícil a compatibilização. De igual valor constitucional, não são hierarquizáveis, pelo que restringir um deles não pode implicar o seu sacrifício. Em situações de colisão, aplicam- se os princípios da concordância prática ou da proporcionalidade. Reconhece-se, todavia, que impera neste domínio o caso concreto, suscetível de dar origem a sentenças contraditórias.

A imputação de factos que afetam o crédito e o bom nome de um indivíduo é legalmente tipificada como ofensa à honra. Injúria é a violação da honra perante a própria vítima, enquanto a difamação se exerce através de terceiros, pela imputação de facto, formulação de juízo ou reprodução de imputação ou juízo. Se cometidos via Comunicação Social, as penas são agravadas para estes dois crimes. A lei prevê a exclusão de ilicitude, caso a imputação de factos seja concretizada para realizar “interesses legítimos”, conceito que pode aplicar-se a peças jornalísticas, se se trata do exercício da função social dos media. A prova da verdade da imputação ou a demonstração de que o agente tem “fundamento sério para, em boa-fé, a reputar como verdadeira” também afastam a ilicitude, exceto estando em causa a intimidade da vida privada e familiar. No caso dos jornalistas, o conceito de boa-fé está associado ao cumprimento do “dever de informação”, que pressupõe a realização de todos os esforços destinados a garantir que os factos revelados são verdadeiros.

A teoria alemã das três esferas é seguida pela doutrina e jurisprudência portuguesas em matéria de proteção da vida privada. As fronteiras são traçadas a partir das esferas pública, de publicidade total; privada, dependente do estatuto da pessoa, e íntima. Esta última, de caráter inviolável, abrange vida familiar, afetiva ou sexual e questões de saúde. Não admite a alegação de interesses legítimos, nem a prova de verdade dos factos.

Em Portugal, o direito à palavra tem dignidade constitucional, gozando de proteção superior ao direito à imagem, por sua vez autónomo face ao direito à privacidade. Tal como está configurado na legislação, o direito à imagem proporciona aos repórteres-fotográficos ampla liberdade. Sem prejuízo das regras a respeitar, sobretudo nos casos de pessoas em situação de fragilidade, de mortos ou de suspeitos de crimes.

À face da lei, só é legítimo o recurso a meios ilícitos de recolha de informação em situações excecionais, com vista a apurar factos de incontestável interesse público e desde que tenham sido esgotadas todas as outras vias. É, porém, necessário avaliar a adequação e a proporcionalidade dos meios utilizados.

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O segredo de justiça, também inscrito na Constituição, visa essencialmente proteger a eficácia da investigação criminal, bem como queixosos e arguidos. A vinculação dos jornalistas a este instituto é contestada – os tribunais fazem, aliás, interpretações distintas da lei. O risco de prejudicar o direito à informação, ocultando casos de violação de direitos dos arguidos ou má administração da justiça, tem sido suscitado. A impossibilidade legal de retirar informação de processos judiciais não impede, contudo, o jornalista de revelar os mesmos factos, através de investigação autónoma. Mais controversa é a questão da divulgação de escutas telefónicas, situação em que estão também em causa os direitos à privacidade e à imagem.

A interposição de procedimentos cautelares está legalmente prevista. Tais instrumentos podem ser usados para evitar a consumação de uma ameaça a direitos de personalidade. Caso o risco seja considerado elevado, o juiz pode dar-lhe provimento sem prévia audição da parte contrária. Constitucionalistas como Machado exprimem dúvidas quanto à constitucionalidade das normas, admitindo que possam dar origem a atos de censura prévia.

A questão da via mais adequada à reparação de danos no domínio dos direitos de personalidade não é pacífica. Entidades como o CE têm vindo a apelar à remoção do crime de difamação das legislações nacionais, alegando que a perspetiva de serem alvo de penas de prisão inibe os jornalistas. Sucede que o recurso à via civil não está isento de perigos. Os elevados custos dos processos judiciais são suscetíveis de pôr em causa a sustentabilidade financeira dos media.

O modelo de responsabilização por crimes cometidos pela Comunicação Social vigente em Portugal desde 1999 não consagra a responsabilização objetiva, já que imputa o texto ou a imagem a quem os produziu (ou promoveu, se a divulgação não tiver sido autorizada). O diretor só pode ser acusado de não exercer o controlo sobre a publicação ou de desobediência qualificada, se não revelar a identidade do autor.

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No documento O privado em público (páginas 85-88)