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Direito à honra

No documento O privado em público (páginas 61-66)

PARTE I LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DIGNIDADE HUMANA

Capítulo 2 Proteção legal de direitos de personalidade

2.2 Direito à honra

Na definição clássica, formulada por Binding em 1902 (apud Andrade, M. C., 1996: 78), “honra é o valor que pertence a uma pessoa enquanto tal e na base da sua conduta, isto é, por força do cumprimento dos seus deveres éticos e jurídicos, portanto na medida da sua

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identidade ética e jurídica”. Trata-se da imagem que cada um tem de si próprio (honra subjetiva ou interior). “Significa tanto o valor moral íntimo do homem, como a estima dos outros ou a consideração pessoal, o bom nome ou a boa fama, como, enfim, o sentimento, ou consciência, da própria dignidade pessoal” (Specker, apud Cupis, 1961 [1959]: 111). Consideração, reputação e bom nome correspondem a juízos que os outros formulam, à representação que têm do valor de uma pessoa (honra objetiva ou exterior).

“A boa fama da pessoa constitui o pressuposto indispensável para que ela possa progredir no meio social e conquistar um lugar adequado; e, por sua vez, o sentimento, ou consciência, da própria dignidade pessoal representa uma fonte de elevada satisfação espiritual” (Cupis, 1961 [1959]: 112). O direito à honra traduz-se, assim, no “direito ao segredo da desonra” (idem, 139), porque o que é contrário à dignidade da pessoa deve permanecer em segredo.

A ofensa à honra resulta da imputação de factos, sendo irrelevante se falsos ou verdadeiros. Basta que “sejam suscetíveis de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que seja tida (prejuízo do bom nome)” (Carvalho

et al., 2003: 216).

Por injúria, entende-se a violação da honra perante a própria vítima, o que justifica pena mais leve. Já a difamação consiste na violação da honra através de terceiros, pela imputação de facto, a formulação de juízo ou a reprodução de imputação ou juízo. “Ninguém desconhece que as formas mais destruidoras da honra e da consideração de outrem não são as que exprimem, de modo direto, factos ou juízos atentatórios da honra e da consideração” (Costa, apud Dias, 1999: 612). Daí que a lesão deste direito não exija que se atinjam “pessoas individualizadas, pois poderá bastar uma certa caraterização da pessoa, suscetível de a identificar” (Sousa, in AA. VV. 1993: 30-31).

Crimes tradicionalmente designados como de “abuso de liberdade de Imprensa” são hoje, no direito penal português, “crimes cometidos através da Imprensa” (Lei da Imprensa), “por meio de televisão” (Lei da Televisão) ou “através da atividade de radiodifusão” (Lei da Rádio). O princípio geral, constante no Código Penal (CP), é de agravamento de pena, pelo facto de a ofensa se ampliar a uma audiência mais vasta. As penas aplicáveis aos crimes de difamação ou injúrias são elevadas de um terço nos limites mínimo e máximo, se a ofensa for “praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação” ou se

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confirme que o agente conhecia a falsidade da imputação. Cometido através de órgão de comunicação, o crime é punido com pena de prisão até dois anos ou pena de multa não inferior a 120 dias.

As penas são elevadas de metade nos limites mínimo e máximo, caso os queixosos sejam membros de órgãos de soberania e outros titulares de cargos políticos, funcionários públicos, agentes de forças de segurança, advogados, docentes e sacerdotes, entre outros. A ofensa à honra do presidente da República é ainda mais agravada: “Se a injúria ou a difamação forem feitas por meio de palavras proferidas publicamente, de publicação de escrito ou de desenho, ou por qualquer meio técnico de comunicação com o público, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias” (art.º 328.º, n.º 2 do CP). A norma foi invocada em 2011 para acionar judicialmente o diretor da revista “Sábado” (Cfr. Anexo 3).

O agravamento de pena, nestes casos, representa uma proteção excessiva, porque suscetível de comprometer o exercício de uma das mais importantes funções do Jornalismo, que consiste em ajudar os cidadãos a tomarem decisões informadas sobre quem elegem. Colide, aliás, com a orientação de instituições internacionais. Em declarações de 1997, 2000 e 2001, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) exortou os estados-membros a revogarem leis que prevejam sanções penais para a difamação de figuras públicas ou penalizem a difamação de órgãos ou funcionários públicos. Em 1999, a Comissão de Direitos Humanos da ONU tomou posição no mesmo sentido. O CE enunciou em 2004 o princípio de que políticos e detentores de cargos públicos não devem usufruir de especial proteção legal, numa declaração do Comité de Ministros, e reforçou-o três anos depois, com a Resolução 1577 da Assembleia Parlamentar.

A violação da honra pode justificar-se, se for considerada o meio necessário e proporcionado para consumar o fim desejado, como a realização do interesse público. Em crimes neste domínio, o CP admite a exclusão da ilicitude em duas situações: se a imputação for feita para “realizar interesses legítimos” e se o agente provar a verdade da imputação ou tiver “fundamento sério para, em boa-fé, a reputar como verdadeira”, exceção que não se aplica se estiver em causa um facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.

Antes da revisão operada em 1998, o CP previa a invocação de “interesse público legítimo ou qualquer outra justa causa”. Na atual formulação, Costa (apud Dias, 1999: 615)

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considera que “um simples interesse privado” preenche o requisito do interesse legítimo. Mas quando entra em jogo o direito penal da Imprensa é difícil traçar fronteiras, na medida em que o conceito de interesse legítimo pode não coincidir com o de interesse público. Para Costa, a instauração de um processo penal não é forçosamente noticiável, porque “não existe uma presunção absoluta do interesse público a justificar uma narração que lese a honra e consideração da pessoa visada” (idem, 619).

Os penalistas tendem a considerar que, em sociedades democráticas, o conceito de interesse legítimo deve ter uma interpretação ampla, sendo suscetível de aplicação a peças jornalísticas. Na ótica de Machado (2002: 813-814), pode verificar-se no caso de figuras públicas, quando as condutas na esfera íntima têm repercussões na sua atividade e nas instituições, são relevantes para avaliar o seu caráter, capacidade para exercerem cargos ou valor como figuras públicas ou, ainda, quando ajudam os cidadãos a formular um juízo mais completo dos políticos. Situações presentes na apreciação judicial de casos como os de Miguel Cadilhe e de José Luís Judas (Cfr. Anexo 3).

Costa (apud Dias, 1999: 616) recusa, no entanto, o “erróneo entendimento” das funções da Imprensa. “Nem toda a realização do direito de informar se pode considerar um exercício legítimo daquele direito, na medida em que precisamente não prossegue um interesse legítimo. Não há, por isso, qualquer coincidência, nem lógica, nem valorativa, nem, muito menos, sistemático-funcional entre o direito de informar e a prossecução de um interesse legítimo”. É consensual que a Imprensa que se concentra no entretenimento, cultiva o

voyeurismo e o sensacionalismo e privilegia a satisfação do interesse do público não pode

invocar exclusão de ilicitude, quando atenta contra direitos de personalidade, porque não cumpre a “função pública” da Imprensa.

A prova de verdade (exceptio veritatis) de uma imputação desonrosa só pode ser autorizada se for feita para realizar interesses legítimos. “Exigir para a publicação de uma notícia que o jornalista tivesse o grau de certeza equiparável, por exemplo, ao grau de certeza necessário para proferir uma condenação, seria inviabilizar de todo, mas de todo, o direito de informação” (Costa, apud Dias, 1999: 623). Atento ao respeito pela presunção de inocência, este penalista sublinha, ainda assim, que a invocação do interesse legítimo deve basear-se em fundamentos sólidos. “Se houver a mínima dúvida – e falamos de mínima dúvida não em sentido retórico – quanto ao caráter público e social da notícia desonrosa dever-se-á, sem exceção, considerar que a imputação de tal facto não prossegue a realização de interesses legítimos” (Costa, apud Dias, 1999: 626).

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Nas investigações que empreendem, os meios ao alcance dos jornalistas são limitados. “Estão simplesmente desprovidos de armas capazes de lhes trazer provas blindadas, irrefragáveis. Para arrancar essas provas, seriam necessários outros instrumentos que os de um jornalista de mãos vazias: escutas telefónicas, detenções, interrogatórios…” (Cornu, 1999 [1994]: 79). Daí que quando revelam indícios de um escândalo público – envolvendo, por exemplo, um político – não devam ter de “provar completamente a verdade dos factos, mas apenas a plausibilidade racional desses indícios” (Machado, 2002: 807) – a verdade ou falsidade dos factos deve ser apurada em juízo.

De forma a não desencorajar o jornalismo de investigação, Machado é favorável à doutrina adotada nos Estados Unidos a partir do caso “The New York Times”/Sullivan (Cfr. Anexo 3), que culminou numa sentença do Supremo Tribunal de Justiça, em que o juiz William Brennan escreveu uma frase histórica: “O debate sobre questões públicas deve ser desinibido, robusto e aberto e isso pode muito bem incluir ataques veementes, cáusticos e às vezes desagradavelmente duros contra titulares de cargos públicos”. Trata-se da orientação, também seguida em Portugal no caso “Açoriano Oriental”/Ricardo Rodrigues (Cfr. Anexo 3), segundo a qual imputações difamatórias dirigidas a detentores de cargos públicos só usufruem de proteção constitucional se proferidas com conhecimento da sua real ou provável falsidade ou com consideração ou desprezo “grosseiramente negligente” (Machado, 2002: 808) da sua veracidade.

A doutrina, expendida em cível, mas que influenciou o direito penal, sustenta que cabe ao lesado provar a falsidade da imputação ou a negligência grosseira do jornalista e não ao jornalista alegar exceptio veritatis e a existência de interesse legítimo das revelações feitas. “Pode questionar-se se a garantia de liberdade de Imprensa não deveria passar pelo estabelecimento de uma presunção de verdade dos factos noticiados, em matérias de relevante interesse público, remetendo-se para qualquer sujeito que interponha uma ação contra o órgão de comunicação social o ónus de provar a falsidade da mensagem que o ofendeu” (Machado, 2002: 809).

Como vimos, a boa-fé pode constituir causa de exclusão da ilicitude. O conceito não corresponde, simplesmente, à convicção subjetiva do jornalista sobre a veracidade das informações. É objetivo, porque depende do cumprimento do “dever de informação” previsto na lei, que consiste em realizar todos os esforços necessários para assegurar a verdade dos factos divulgados, tanto mais exigível quanto maior for a carga negativa da imputação.

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Trata-se, para os jornalistas, de cumprir as regras inerentes à sua atividade, a legis artis: cuidados na recolha de informação, seleção criteriosa e avaliação da idoneidade e da fiabilidade das fontes, confirmação de factos, audição dos visados. Deveres que, sendo de natureza técnica, são também deontológicos.

O sistema contempla, portanto, um “risco permitido” (Andrade, 1996), associado ao exercício profissional. “Presta-se, deste modo, uma forte homenagem à Imprensa, na medida em que o risco inerente ao desempenho dessa atividade pode justificar lesões à honra, levadas a cabo por imputações de factos falsos” (Costa, apud Dias, 1999: 623).

Num campo onde cada caso convoca reflexão, por se revestir de contornos específicos, as decisões judiciais podem ser díspares – embora, em regra, baste a negligência para a responsabilização civil por casos de violação de direitos de personalidade, enquanto no direito penal se exige prova de dolo.

A convicção da veracidade dos factos relatados foi reconhecida à jornalista do “Público” autora de uma notícia sobre o rebentamento de uma bomba numa viatura, uma vez que resultavam do “trabalho de campo” por ela desenvolvido (Cfr. Anexo 3). Já as queixas de Jardim Fernandes contra “O Jornal” e o “Expresso” (Cfr. Anexo 3) tiveram desfechos distintos, porque assentes em diferentes interpretações do cumprimento de deveres profissionais: no primeiro caso, o juiz entendeu que a jornalista teria de confirmar a veracidade de uma afirmação proferida numa conferência de Imprensa; no segundo, vingou a tese de que noticiar a intenção de mover uma ação judicial contra uma figura pública se insere no quadro daqueles deveres.

A fundamentação de notícias em documentos oficiais é por vezes admitida em tribunal como bastante para tornar legítima uma imputação, o que resulta do reconhecimento de que jornalista não é um investigador policial. Porém, como veremos, em certas fases do processo a divulgação de peças processuais pode dar origem a procedimento criminal, por violação do segredo de justiça.

No documento O privado em público (páginas 61-66)