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Instrumentos de autorregulação transversais

No documento O privado em público (páginas 116-120)

PARTE II A ABORDAGEM DEONTOLÓGICA

Capítulo 1 Evolução do debate

1.2 Propósitos e instrumentos da autorregulação

1.2.1 Instrumentos de autorregulação transversais

1.2.1.1 Códigos deontológicos

Os códigos – deontológicos, de conduta ou de honra, entre outras designações – são o mecanismo de autorregulação mais comum. Um levantamento efetuado em 2002 pela Unesco sobre os europeus contabilizava a sua existência em 38 países. Extensos uns, minimalistas outros, são tão diversificados que condenaram ao fracasso as propostas de criação de um código internacional, lançadas pela CEE, em 1971, e pela Unesco, em 1983.

A tentativa de contemplar respostas ao máximo de situações fragiliza documentos muito detalhados. Num domínio em que a disparidade de situações impõe uma permanente reflexão, suscetível até de ultrapassar as normas, a rigidez é pouco recomendável. “Por muito longe que se vá na codificação de prescrições deontológicas, nunca o imperativo de uma exigência ética efetiva e preocupada com a singularidade dos casos concretos se esgotará naqueles” (Fidalgo, 2009: 169).

Por outro lado, aquela opção pode degenerar na uniformização da linguagem jornalística, efeito pressentido ao analisar o pormenorizado código da PCC ou as diretrizes éticas emitidas pela organização sindical do país. O código da National Union of Journalists (NUJ) comporta apenas 12 cláusulas, mas os textos complementares abrangem a cobertura

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jornalística de terrorismo, questões raciais, de asilo, emigração, deficiência, sida e suicídio, além da situação específica dos refugiados na Irlanda.

O respeito pela verdade e o rigor constituem traços comuns, mas é muito vasto o conjunto de preceitos reunidos em códigos, desde os que elencam apenas deveres aos que incluem direitos. Diversos estudos demonstram que predominam normas relativas a práticas ou a valores estritamente profissionais – liberdade de expressão, independência, sigilo profissional. Um estudo de Asenjo (cit. por Pina, 1997: 36), que abrangeu mais de 100 códigos nacionais ou supranacionais, de vários tipos de media, concluiu que entre os valores consagrados pela maioria figuram a rejeição da calúnia, acusação sem provas e difamação, bem como o respeito pela vida privada, o dever de retificação de informações incorretas e o direito de resposta.

A ausência de uniformidade – um elevado número de códigos, por vezes no mesmo país, tende a reduzir a sua eficácia, por estimularem práticas profissionais diferentes – tem sido apontada como uma das fragilidades. A outra consiste na inscrição de regras pela negativa, como sucede num artigo do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros – o jornalista “não pode”, o jornalista “deve abster-se de”. Sensível às omissões, Bertrand (2002 [1997]: 73) constata que “os códigos proscrevem muito e prescrevem pouco – sem dúvida, porque é mais fácil chegar a acordo quanto aos erros a evitar do que quanto às virtudes a praticar. Mas uma moral negativa não é suficiente”.

Iniciativa de entidades representativas de jornalistas, do universo empresarial do setor ou conjuntos, coexistem códigos de diversas origens. Quando emanam de organismos sindicais, debatem-se com défice de representatividade, que prejudica o seu reconhecimento. Os de associações empresariais traduzem, muitas vezes, intentos comerciais. Seja qual for a génese, subsiste a possibilidade de serem vistos pelo público como mecanismos de autoproteção ou satisfação de interesses comerciais e políticos (Jones, 1980: 16).

De acordo com Pina (1997: 29), o primeiro código deontológico foi adotado no estado norte- americano do Kansas em 1910, envolvendo editores e diretores. Em 1915, a primeira Conferência Internacional da Imprensa lançou a ideia de criar um código em cada país. O sindicato francês elaborou três anos depois a Carta dos Deveres Fundamentais dos Jornalistas. O Código de Ética da Associação Interamericana de Imprensa, primeiro de âmbito supranacional, data de 1926. A FIJ aprova o seu primeiro Código de Honra em 1939.

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Nos Estados Unidos, o aprofundamento das discussões deontológicas ocorreu no período entre os dois conflitos mundiais. Nem sempre, porém, o resultado correspondeu aos interesses dos profissionais, na perspetiva da sua credibilização perante a sociedade. A proliferação de códigos tendeu, aliás, a tornar mais complexa a sua aplicação. Muitos serviam propósitos comerciais, como Jones assinalou em relatório produzido para a Unesco, em 1980, ao aludir à existência de códigos adaptados às necessidades. Esta natureza “utilitária” dificilmente é compaginável com os objetivos de um código. “Quanto mais a deontologia se torna particular, como resposta a interesses específicos do público e às orientações dos estudos de mercado, maior é o risco de serem feitas concessões” (Cornu, 1999 [1994]: 44).

Após a II Guerra Mundial, assistiu-se a uma nova fase, impulsionada pela DUDH. Nela se insere a “Declaração de Bordéus”, que seria adotada na Holanda como código nacional. Decisivos na construção do edifício deontológico são, ainda, a “Declaração de Munique”, o Código de Imprensa alemão (Pressekodex), elaborado em 1973 pelo Conselho de Imprensa, em colaboração com organizações de editores e de jornalistas, e os “Princípios Internacionais da Ética Profissional dos Jornalistas”, que a Unesco tornou públicos em 1983. Fruto de discussão alargada a organizações representativas de 400 mil jornalistas de todo o mundo, este documento sistematizava princípios constantes dos códigos existentes. Foi o primeiro verdadeiramente internacional sobre Deontologia, embora os princípios que acolhia constituíssem apenas orientações.

Em regra, a apreciação do cumprimento dos preceitos contidos em códigos está a cargo de conselhos deontológicos ou de ética, cujos poderes se limitam, em caso de violação, à censura ou reprovação pública. Neste plano, a NUJ é uma das exceções. Aplica penas, entre multa e expulsão, a sócios que cometam infrações ao Código de Conduta Profissional, reconhecidas pelo Conselho de Ética (Cfr. “Livro de Regras”), de cujas decisões cabe recurso para um Tribunal de Apelo. O modelo do sindicato brasileiro é semelhante. Já a Comissão de Queixas e Deontologia da Federação de Associações de Jornalistas de Espanha (FAPE), em cuja composição atual os jornalistas são minoritários, privilegia a arbitragem de litígios, a partir de reclamações de cidadãos ou entidades. Não prevê sanções; apenas o envio das suas decisões a órgãos de comunicação, naturalmente sem garantia de divulgação.

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Este panorama leva autores como Bertrand (2002 [1997]: 116) a lançar a interrogação: “De que serve um código se este ‘não tem dentes’? Quando as associações corporativas ou os sindicatos preveem sanções (como a expulsão), raramente são aplicadas”. O estudo da ONU (Jones, 1980: 42) aponta essa insuficiência: nos Estados Unidos e na Austrália, a multiplicidade de códigos produziu um efeito escasso no combate a abusos – só eram respeitados quando previam penalizações económicas, em caso de infração.

1.2.1.2 Ordens

A ordem italiana, criada em 1925 pelo regime fascista e regulada por nova lei em 1963, é a mais conhecida das ordens de jornalistas. Entidade de direito público, de inscrição obrigatória, regula o acesso e impõe sanções a infratores à honra e dignidade da profissão – advertência, censura, suspensão (que pode ser superior a um ano) e proibição de exercício da atividade – admitindo recurso para os tribunais.

O modelo disseminou-se na América Latina a partir do Chile, que criou uma ordem em 1956. Está hoje implantado em países como Peru, Bolívia, Venezuela, Costa Rica, Honduras e República Dominicana. Apesar da componente comum – a exigência de diploma de nível universitário para aceder à profissão – não se trata de realidades semelhantes. O Colegio de Periodistas chileno integra assessores de Imprensa; o costa-riquenho publicitários, relações públicas e produtores audiovisuais (o próprio código de ética, de agosto de 2011, consagra deveres específicos para cada uma das categorias profissionais). Em Portugal, onde uma tentativa de criar uma ordem foi abortada em 1993 – questão que abordaremos no capítulo seguinte – o exercício daquelas atividades é incompatível com o Jornalismo.

Mais do que o facto de envolver o aval do poder político, a principal crítica ao modelo de ordem, cujo exame remete para as caraterísticas do Jornalismo, é a inscrição obrigatória. A maioria dos países conserva a natureza aberta da profissão. O acesso não pressupõe uma habilitação específica, muito menos um diploma de nível universitário – em Portugal, é exigido o 12.º ano. São valorizadas a diversidade de saberes, enriquecedora da qualidade da informação, e a aquisição de formação técnica em local de trabalho.

Por outro lado, o Jornalismo não preenche os requisitos de uma profissão liberal. Raros são os jornalistas que trabalham em regime independente; a maioria está vinculada contratualmente a uma empresa. Legalmente, o exercício profissional, que não carece de autorização, assenta essencialmente nessa componente: é jornalista quem tem emprego

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num órgão de informação. A condição laboral assume maior relevância do que a detenção de um conjunto de competências.

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