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3 Educar para a vida espiritual e em valores

EDUCAÇÃO E VALORES Teorias e fundamentos

2. Éticas teleológicas

Englobamos nesta designação um conjunto de autores distantes no tempo cuja característica comum é o reconhecimento de que, não apenas a acção humana se desenvolve em vista de determinada finalidade, mas o próprio ser humano tem uma finalidade e um sentido inerentes ao seu ser. A ética pressupõe, assim, tanto a capacidade de escolha do ser humano quanto a capacidade de conformar essa escolha ao seu sentido ontológico. Em consequência, como veremos, a educação moral e espiritual visa criar condições para que o ser humano descubra esse seu sentido e o construa na sua vida diária.

2.1. Aristóteles

Em primeiro lugar, poderemos perguntar como nasceu a ética no pensamento ocidental e por que motivo nasceu. Poderá parecer surpreendente, mas, na verdade, ela parece ter nascido por motivos que nos são muito familiares nos dias em que vivemos. Na antiga Grécia os filósofos olhavam para a sociedade com preocupação e viam a necessidade urgente de restaurar a imagem do homem e resgatar o seu valor e dignidade moral. Este sentimento surgia, portanto, da análise feita ao contexto sociopolítico da época, que mostrava uma sociedade decadente e em risco de submergir298. No fundo, a corrupção estava instalada e, ao falarmos de corrupção, aceitamos a noção ampla de Adela Cortina, que a define como sendo a alteração da natureza de uma coisa, tornando- a má, privando-a da natureza que lhe é própria e pervertendo-a299.

A ética nasceu, portanto, da necessidade de encontrar o caminho do bem e da virtude. Estes dois conceitos não são, no entanto, pacíficos quanto ao seu significado, pois variam, de acordo com o contexto histórico e com a perspectiva dos autores.

Para os gregos a virtude significava «excelência» e ser excelente ou virtuoso implicava respeitar as leis e os costumes, mas ia muito além disso. O conceito de virtude

298 Alguns factos que contribuíam para a visão críticas dos filósofos:

Sócrates maduro e o jovem Platão lamentavam o declínio do esplendor de Atenas, as lutas políticas marcadas pelo exílio de Alcibíades, até a instauração do regime oligárquico dos “trinta tiranos” no ano 404 a.C.- Pegoraro, Olinto (2006): Ética dos Maiores Mestres através da História. Petrópolis: Editora Vozes, 19.

118 estava relacionando com as noções de função e acção. O virtuoso é aquele que desempenha a função excepcionalmente bem, destacando-se dos demais, sendo que o grau de excelência muda consoante a pessoa e a actividade que executa. Quer isto dizer que a excelência é alcançada de acordo com a forma como se cumpre a sua função:

Toda a excelência é capaz de desenvolver plenamente o potencial do ente que a detém, ao restituir-lhe assim a sua função específica de um modo correcto. Deste modo, por exemplo, é a excelência dos olhos que é capaz de fazer deles olhos excelentes. Ou seja é capaz de lhes restituir a sua função específica de modo correcto. Pela presença da excelência nos olhos vemos excelentemente. De modo semelhante, acontece com a excelência de um cavalo. É ela que faz do cavalo um cavalo excelente: ao galopar na pradaria e ao levar o cavaleiro até junto dos inimigos. Se assim se passa com todos os entes, haverá, então, também uma excelência do Humano. Tal será a disposição do carácter a partir do qual o Humano se tornará excelente. Isto é, a presença da excelência no Humano permitirá restituir-lhe a sua função de se tornar a si próprio excelente.300

Por conseguinte, se a virtude de uma pessoa se avalia pela forma como ela executa determinada função, será necessário conhecer a função do ser humano, para saber distinguir um homem bom de um homem mau. Se o que nos diferencia dos restantes animais é a nossa capacidade para pensar, então o exercício da razão será o meio que poderá conduzir-nos à excelência ou virtude:

Ou será que haverá certas funções e procedimentos práticos específicos para o carpinteiro e para o sapateiro e nenhuma função para o Humano enquanto humano, dando-se antes o caso de existir naturalmente inoperante? Ou não será que, tal como parece haver uma certa função própria dos olhos, das mãos e dos pés e, em geral, de cada uma das partes do corpo humano, terá também de se supor que há uma certa função do ser Humano para além de todas elas? Qual poderá ser ela então? É que o viver parece ser comum também aos vegetais e o que é procurado é o viver peculiar do Humano. Tem, pois, de se fazer abstracção da função vital de nutrição e de capacidade de crescimento. Segue-se uma certa função perceptiva, a qual parece ser comum ao cavalo, ao boi e a todo o ente vivo. Resta, então, uma certa forma de vida activa inerente na dimensão da alma que no humano é capacitante de razão. A possibilidade capacitante da razão do Humano manifesta- se de duas maneiras. Uma através da obediência ao sentido orientador, a outra, quando já o possui, através da activação do seu poder de compreensão […] Se, então, a função do Humano é uma actividade da alma de acordo com o sentido ou, pelo menos, não totalmente discordante dele; se demais a função que um determinado indivíduo particular exerce é genericamente a mesma que exerce o virtuoso nessa actividade (como acontece com a diferença verificada entre um simples tocador de cítara e o executante virtuoso desse instrumento, o mesmo se passando a respeito de outras actividades), se assim é, isto é,

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se admitimos que a função do Humano é uma certa forma de vida, se, por sua vez, essa forma de vida é uma actividade da alma e uma realização de acções conformadas pelo sentido; se, ainda, a função do homem sério é a de cumprir estas funções bem e nobremente, e se, finalmente, admitirmos que uma acção é bem realizada se for cumprida de acordo com a sua excelência específica – nessa altura, então, o bem humano é uma actividade da alma conformada por uma excelência, e se houver muitas excelências, será conformada pela melhor e mais completa.301

Aristóteles via o homem como uma entidade complexa, na qual convivem realidades distintas: a biológica, a sensitiva, a intelectiva e a divina. O homem virtuoso ou bom seria aquele que conseguisse dominar esta complexidade. Neste sentido, trata-se de uma ética racional, pois visa subjugar os impulsos biológicos, instintivos e sensitivos à razão, hierarquizando-os. As virtudes são energias e funções da alma distinguindo ele a vegetativa, a sensitiva e a intelectiva. As duas primeiras categorias são meramente biológicas e irracionais e são comuns a todos os animais. A terceira categoria é a que verdadeiramente faz a diferença e diz respeito ao intelecto:

Se, portanto, as operações da alma humana com as quais chegamos à verdade, as quais jamais nos deixam envolver em falsidade […] são o conhecimento científico, a sensatez e o poder de compreensão [intuitiva]; se, por outro lado, nenhum dos primeiros três é capaz de apreender os primeiros princípios (com os três primeiros quero dizer a sensatez, o conhecimento científico e a sabedoria), resta o poder de compreensão intuitiva como a operação da alma com a qual se desoculta os primeiros princípios de tudo.302

Todavia, a ética Aristotélica não é apenas racional. É sobretudo, finalista já que busca compreender a finalidade própria do ser humano. O homem procura sempre, em tudo o que faz, conseguir um bem. Porém, devemos estar conscientes de que alguns dos bens que o homem procura estão subordinados a um Bem maior. A esse Bem poderemos chamar Bem supremo ou simplesmente «felicidade» (eudaimonia):

Uma vez que parece haver uma multiplicidade de fins, escolhemos alguns deles em vista de um outro fim, tal como a riqueza, a flauta, e, em geral, os instrumentos. É evidente, então, que nem todos os fins atingem uma completude absoluta. Mas o fim supremo parece ter evidentemente que ser absolutamente completo. Assim, se houver apenas um único fim completo, será este o bem que é procurado; contudo, se houver uma multiplicidade de fins, será o que, de todos eles, for o mais completo.303

301 Idem, Ibidem, 29,30. 302 Idem, Ibidem, 139. 303Idem, Ibidem, 27,28.

120 Para Aristóteles, a finalidade do ser humano não reside apenas nos prazeres, nas riquezas ou nas honras. A felicidade (ou o bem supremo) realiza-se, principalmente, na condição única do ser humano, que lhe permite a capacidade de raciocinar. Cada parte do homem, seja ela biológica, sensitiva ou intelectiva, cumpre a sua função, sendo certo, no entanto, que a sua função singular é a que se relaciona com o elemento racional. Logo, o homem estará tanto mais perto da felicidade, quanto mais virtuoso for no uso do seu intelecto:

Se, por conseguinte, a felicidade é uma actividade de acordo com a excelência, é compreensível que terá de ser de acordo com a mais poderosa das excelências, a excelência da melhor parte do Humano. Seja a melhor parte do Humano o poder de compreensão ou qualquer outra coisa que pareça, por natureza, comandar-nos, conduzir-nos ou dar-nos uma compreensão intrínseca do que é belo e divino […], a actividade desta dimensão será de acordo com a excelência que lhe pertence. Tal será a felicidade na sua completude máxima. Uma tal actividade é, como dissemos, contemplativa.

Esta perspectiva está de acordo com o que foi apurado nas nossas primeiras análises, bem como a verdade das coisas. É que esta actividade é ela própria a mais poderosa que existe (porque o poder da compreensão intuitiva é o que de mais poderoso existe em nós, e os objectos mais excelentes que podem ser conhecidos são aqueles a que o poder da compreensão intuitiva acede) e é também a mais contínua de todas, porquanto nós somos capazes de nos demorarmos mais no olhar contemplativo do que na execução de qualquer outra acção.304

A felicidade encontra-se, portanto, no homem que desempenhe as suas funções, muito particularmente a sua função racional, de forma virtuosa ou, se preferirmos, com excelência.

Porém, para Aristóteles, existem dois tipos de virtude: a virtude dianoética, que se relaciona com as capacidades intelectuais e a virtude ética, que diz respeito às qualidades morais. Por exemplo, a sabedoria (sofia) é uma virtude dianoética, enquanto a prudência (fronesis) é uma virtude ética305. Através da sabedoria, o homem ergue-se acima das realidades mundanas, conseguindo contemplar a essência das coisas: a verdade, o bem e a justiça. A prudência ajuda a decidir sobre as melhores acções, gerindo os comportamentos do quotidiano306. Ambas, sabedoria e prudência, agem em cooperação. A primeira aponta o bem geral, enquanto a segunda adopta um carácter

304

Idem, Ibidem, 242.

305 Idem, Ibidem, 41,42.

306 Santos, Ana Leonor (2008): Para uma Ética do Como Se. Contingência e Liberdade em Aristóteles e Kant Covilhã: LuSofia: press, 40, 50.

121 pragmático, fazendo a adaptação da ideia de bem ao contexto real e quotidiano em que possa surgir:

Não se deve enunciar isto apenas na sua generalidade, é necessário também procurar adequar os enunciados às circunstâncias particulares. Isto é, de facto, os enunciados proferidos universalmente acerca das acções são mais abrangentes, mas os que são proferidos acerca das situações concretas que de cada vez se constituem particularmente são mais reveladoras da verdade. Porque, se, de uma parte, as acções respeitam as circunstâncias particulares, de outra, os enunciados universais devem concordar com elas na conformidade da sua circunstância.307

Podemos, por conseguinte, concluir que, para Aristóteles, o homem não nasce ético, embora possua potencialidades biológicas e naturais para se tornar ético. As virtudes morais não lhe são congénitas, mas a natureza humana dá ao homem a capacidade de as criar e de as melhorar com o hábito. Aliás, Aristóteles considera que a prática reiterada das acções virtuosas conduz a um aperfeiçoamento, fazendo com que estas se tornem mais excelentes. Quanto mais se praticar, mais perto da perfeição se estará, logo mais facilmente praticaremos as virtudes: «As excelências, então, não se geram em nós por natureza, nem contra natureza, mas por sermos constituídos de tal modo que podemos, através de um processo de habituação, acolhê-las e aperfeiçoá- las.»308 Nisto consistiria a educação moral segundo Aristóteles.

A ética aristotélica é vista não só na perspectiva individual, da formação do homem virtuoso, mas também, e sobretudo, na perspectiva política que analisa o cidadão, a sociedade e o governo. Tanto assim é que a ética só faz sentido por via da política. Ela molda o indivíduo para que este se transforme num cidadão virtuoso:

Porque mesmo que haja um único bem para cada indivíduo em particular e para todos em geral num Estado, parece que obter e conservar o bem pertencente a um Estado é obter e conservar um bem maior e mais completo. O bem que cada um obtém e conserva para si é suficiente para se dar a si próprio por satisfeito; mas o bem que um povo e os Estados obtêm e conservam é mais belo e mais próximo do que é divino.309

A ética aristotélica aponta, assim, um caminho para alcançar uma sociedade melhor, uma sociedade em que cada cidadão, executando com excelência as suas

307 Aristóteles (2006): Ética a Nicómaco. Lisboa: Quetzal Editores, 53. 308Idem, Ibidem, 43.

122 funções, alcance a sua felicidade pessoal e contribua para o funcionamento perfeito da polis.

Depois de sumariamente analisado o pensamento aristotélico, sobre a ética, cumpre-nos pensar no objectivo primeiro da nossa tese: de que forma esta teoria poderá contribuir para o desenvolvimento espiritual do homem, com vista à sua preparação para a morte?

Quanto a nós, a resposta é clara. A ética assente no desenvolvimento das virtudes proporciona ao ser humano a capacidade de aprofundar os seus valores espirituais. Em primeiro lugar, porque as virtudes aristotélicas têm como objectivo último alcançar a felicidade, não a felicidade oca, efémera ou superficial, assente nos prazeres, mas uma felicidade que tem como alicerce o intelecto humano, argumento exclusivo, que permite ao homem hierarquizar e, portanto, valorizar, sempre com vista a essa finalidade da vida humana. Em segundo lugar, porque a ética das virtudes é exigente, requerendo disciplina e esforço, logo uma proposta educativa. Trata-se de uma ética virada não tanto para o bem individual, mas sobretudo para o bem comum, o que implica a necessidade de cada homem desenvolver em si sentimentos de cooperação e de solidariedade.

O homem não nasce com a capacidade de ultrapassar por si mesmo as fronteiras das suas próprias necessidades e, portanto, o desenvolvimento das virtudes requer habituação. Se, como nos diz Aristóteles, o homem será tanto mais feliz quanto melhor ele for no uso do seu intelecto, então há que educá-lo e discipliná-lo, no sentido de que apreenda a diferença entre o seu próprio bem e o bem comum e ainda entre o seu bem mais imediato e o Bem supremo.

Certamente, ao homem com uma vivência espiritual mais profunda, será mais fácil encarar a ideia da sua morte, pois ele tem de si um entendimento que vai além das premências da sua existência física. Um homem que viva a sua vida de forma plena, em harmonia consigo mesmo e com os outros, será mais feliz e terá experimentado um grau de serenidade que lhe permitirá encarar a morte com a placidez de quem fez o que havia a ser feito.