• Nenhum resultado encontrado

Nem Piaget nem Kohlberg apresentam teorias éticas. Contudo, estudaram a forma como o ser humano adquire e desenvolve o agir moral e é neste contexto que consideramos relevante a análise (ainda que sumária) do seu trabalho.

Piaget considera que o desenvolvimento moral se faz a par do desenvolvimento cognitivo. Por isso, prevê três estádios no desenvolvimento moral da criança: o primeiro

154 é um período de anomia; o segundo implica a subordinação à autoridade adulta, e o terceiro corresponde à justiça igualitária.392

Durante a primeira etapa do desenvolvimento moral, a criança encontra-se numa fase de amoralidade, já que não possui nenhuma ideia de regra social ou de justiça.

O segundo estádio é o que corresponde ao que Piaget chamou moralidade heterónoma, uma vez que o juízo moral se baseia no realismo moral e nas restrições impostas pelos adultos de forma unilateral. Assim, o primeiro conceito de moralidade de uma criança é o que diz respeito à obediência perante a vontade dos mais velhos, existindo, por conseguinte, neste estádio, uma correlação directa entre o incumprimento da regra e o acto punitivo393.

Segue-se, por último, o estádio da autonomia, momento em que o adolescente se consciencializa da indispensabilidade de regras como ferramentas reguladoras nas relações sociais. A regra deixa de ser imposta do exterior para passar a ser fruto de ponderação, segundo juízos pessoais, independentemente das opiniões alheias:

A regra do jogo se apresenta à criança não mais como uma lei exterior sagrada, enquanto imposta pelos adultos, mas como o resultado de uma livre decisão, e como digna de respeito na medida em que é mutuamente consentida394

As relações sociais são, portanto, niveladas, deixando-se de lado o sistema hierárquico, para se passar a um sistema de reciprocidade, em que impera o respeito, a cooperação e a solidariedade entre os elementos do grupo:

O respeito mútuo aparece, portanto, como a condição necessária da autonomia, sob seu duplo aspecto intelectual e moral. Do ponto de vista intelectual, liberta as crianças das opiniões impostas, em proveito da coerência interna e do controle recíproco. Do ponto de vista moral substitui as normas de autoridade pela norma imanente à própria consciência.395

Pode dizer-se, assim, que durante os três estádios existem três regras de carácter totalmente distinto, que se desenvolvem a par com os aspectos cognitivo, afectivo e social: a regra motora, que faz parte da fase pré-verbal, quando a criança assume uma

392Idem, Ibidem, 13.

393 Branco, Lisandre Maria Castello (1979): “O desenvolvimento da Moralidade na Teoria de Jean Piaget”.

Internet. Disponível em http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_20_p063-073_c.pdf (consultado em 20 de Abril de 2011)

394 Piaget, Jean (1977): O Julgamento Moral na Criança. São Paulo: Editorial Mestre Jou, 56. 395 Idem, Ibidem, 94.

155 acção ritualizada sobre os objectos; a regra coerciva, que se expressa pela compreensão das regras como sagradas e imutáveis, porque emanadas de um adulto visto como fonte de autoridade inquestionável e a regra racional em que as normas já não são recebidas como indiscutíveis. Podem, aliás, até ser alteradas, desde que haja uma decisão partilhada entre pares396.

Piaget concorda, portanto, com Kant quando este confere às faculdades da razão as competências para criar conhecimento e para fundar a moral. Apenas não tem a mesma visão no que se refere à natureza dessas faculdades. Enquanto para Kant essas faculdades existem a priori, para Piaget as faculdades da razão são construídas a partir do nascimento, tendo por base factores cognitivos, afectivos e sociais397. Quer isto dizer que Kant, através do imperativo categórico, inscreve a moralidade no sujeito moral. Ao invés, Piaget vê a moralidade como um processo de tomada de consciência das regras e da sua natureza por parte do indivíduo em actuação no seu contexto social.398

Kohlberg admite a abordagem cognitivo-evolutiva de Piaget e continua a sua linha de pesquisa. Contudo, ele entende que o desenvolvimento moral é um processo mais profundo e mais longo do que o previsto por Piaget. Nas suas investigações, principalmente baseadas na apresentação de dilemas, ele dá relevo, sobretudo, à qualidade dos juízos morais, em detrimento das escolhas em si. Por isso, está em causa não o conteúdo, mas a capacidade de decidir e o modo de justificar as decisões, de acordo com o sistema cognitivo que se vai alterando e dilatando. Kohlberg opta, deste modo, por um realce do cognitivismo que o leva ao estabelecimento de estádios de desenvolvimento moral em termos quase exclusivamente cognitivo-estruturais399.

Assim, ele prevê seis níveis de desenvolvimento sócio-moral, agrupados dois a dois em três estádios: pré-convencional, convencional e pós-convencional.

No estádio pré-convencional encontramos os níveis: castigo e obediência e intercâmbio individual instrumental. No primeiro nível, o correcto é a obediência às regras e à autoridade, a fim de evitar-se o castigo. Trata-se, portanto, de uma moralidade heterónoma. Do ponto de vista social, este estádio caracteriza-se por uma atitude de

396 Lima, Vanessa Aparecida Alves de (2004): “De Piaget a Gilligan: Retrospectiva do desenvolvimento

moral em Psicologia um caminho para o estudo das virtudes”. Pepsic. Internet. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-

98932004000300003&lng=pt&nrm=iso (consultado em 20 de Abril de 2011)

397 Freitag, Barbara (1989): “ A questão da Moralidade: da razão prática de Kant à ética discursiva de

Habermas”. In Tempo Social volume 1: 12.

398

Idem, Ibidem, 14.

399 Carracedo, José Rubio: “La Psicología Moral (de Piaget a Kohlberg)”. In: Camps, Victoria (2000): Historia de la Ética 3. La ética contemporânea. Barcelona: Editorial Crítica, 498.

156 egocentrismo, pois o indivíduo não tem em conta os interesses dos outros, nem entende que possam ser diferentes dos seus. As acções são julgadas de acordo com as consequências físicas e não tendo em conta os interesses psicológicos dos outros. No segundo nível, o correcto é atender às suas próprias necessidades e às dos outros, fazendo acordos ou trocas. Cada um deve procurar os seus interesses e permitir que os outros façam a mesma coisa. A razão que leva a fazer o que é correcto é, portanto, servir as suas próprias conveniências, sendo capaz de reconhecer as dos outros. Do ponto de vista social, este nível segue uma perspectiva individualista concreta. O sujeito sabe que todos têm objectivos diferentes a atingir e isso conduz a um conflito, pois o correcto é relativo. O indivíduo tem, desta maneira, necessidade de integrar e relacionar os interesses pessoais conflituantes por via de uma troca instrumental.

O estádio convencional inclui os níveis terceiro (conformidade interpessoal) e quarto (Consciência da manutenção do sistema social). No terceiro nível, o juízo moral baseia-se em adoptar uma atitude amável, revelando interesse pelos outros e pelos seus sentimentos, identificando-se com as suas regras e com as suas expectativas. Os motivos que levam a querer fazer o correcto prendem-se com a necessidade de se sentir bom aos próprios olhos e aos dos demais, sendo a regra de ouro: “faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti”. De uma perspectiva social, este nível aponta para a atitude do indivíduo em relação com os outros, tendo por orientação o grupo e as regras morais, partilhadas entre pares. No quarto nível, o correcto passa por cumprir o dever, mantendo a ordem social e contribuindo para o bem-estar da sociedade ou do grupo. As razões que levam a fazer o que é correcto têm a ver com a necessidade de suportar a instituição, funcionando como um todo, com o auto-respeito e com a consciência de cumprir as obrigações pré-estabelecidas. O sujeito adopta o ponto de vista da sociedade, que define normas e papéis e vê as relações individuais de acordo com o lugar que ocupam no sistema.

O estádio pós-convencional inclui os níveis quinto (Prioridade dos direitos e do contrato social) e sexto (Princípios éticos universais). No quinto nível, o juízo moral consiste em estar consciente de que as pessoas têm uma variedade de valores e opiniões, que muitos valores e normas são relativos ao grupo, devendo essas diferenças relativas manter-se, por razões de imparcialidade, mediante contratos sociais. Alguns valores e regras não relativos devem prevalecer em toda a sociedade, sem considerar-se as maiorias de opinião. Os motivos que levam a fazer o correcto são, normalmente, os sentimentos de estar obrigado a obedecer à lei porque esta resulta de um contrato social

157 e apoiar, através das leis, o bem de todos. As regras são válidas apenas na medida em que protegem os direitos humanos fundamentais. De uma óptica social, este estádio caracteriza-se por adoptar uma perspectiva de prioridade à sociedade. Dado que é a razão a força motriz para agir moralmente, no cumprimento da lei, há a necessidade de compreendê-la no seu princípio, pois sobejas vezes o ponto de vista moral não coincide com o ponto de vista legal. No último nível, o correcto consiste em guiar-se por princípios éticos universais. As leis e os contratos sociais particulares deverão ser válidos só na medida em que são elaborados tendo por base esses princípios. Os princípios são princípios universais de justiça: a igualdade de direitos humanos e o respeito pela dignidade dos seres humanos enquanto indivíduos. A razão para se fazer o correcto é que, enquanto ser racional, o sujeito percebe a validade do princípio e compromete-se com ele. À luz da questão social, este estádio adopta a perspectiva do ponto de vista moral, no qual se fundamentam as normas sociais. É a perspectiva do indivíduo racional que reconhece a natureza da moralidade ou a premissa moral básica de respeito por todas as pessoas como fins e não como meios400.

Sendo certo que tanto Piaget como Kohlberg se preocuparam com o processo do desenvolvimento moral nos indivíduos, e não com questões da ética formal, importa realçar que eles não recusaram os conhecimentos existentes nessa área. Kant, como já vimos, representa uma fonte de conhecimento clara para Kohlberg. Tal como para Kant, o indivíduo racional é o ponto de partida para o estudo da condição moral. A crença na liberdade do sujeito, conseguida a partir do uso da razão, bem como a recusa de qualquer forma de verticalidade ética ou moral, são outros factores que os aproximam401.

Concordando em que só a razão permite ao homem ser ético, Piaget e Kohlberg pretendem mostrar, não a partir da discussão filosófica, mas de estudos empíricos que a prática de acções morais varia, na sua complexidade, de acordo com o desenvolvimento cognitivo do ser em crescimento, mas também de acordo com as relações interpessoais de dependência que este estabelece, até ser capaz de alcançar a autonomia.

O processo que conduz o homem ao caminho da ética centra-se, por conseguinte, no desenvolvimento cognitivo, ou seja, é o factor genético que se apresenta como basilar no sistema de apropriação de um conjunto de valores éticos e morais.

Como já tivemos oportunidade de referir anteriormente, parece-nos redutor ligar a capacidade ética do homem apenas às suas potencialidades cognitivas. Na verdade, um

400 Idem, Ibidem, 501-504

401 Freitag, Barbara (1989): “ A questão da Moralidade: da razão prática de Kant à ética discursiva de

158 homem cujo desenvolvimento cognitivo seja superior, terá a capacidade de analisar e formular, até, princípios éticos universais, mas duvidamos que seja mais competente na aplicação desses princípios, do que um homem menos capacitado. É que, em nosso entender, para que o homem seja ético, ele tem de ser homem na sua plenitude: racional, emocional e espiritual e nem Piaget nem Kohlberg estudaram o desenvolvimento moral das crianças, à luz da sua espiritualidade.

3.4.2. A ética racional e educação em valores

Ao pensarmos na aplicação pedagógica das teorias éticas racionais ou seja, uma educação moral baseada numa ética racional, sobretudo da teoria de Kant, vislumbramos, desde logo, um sério obstáculo que reside no facto de ser difícil para os alunos lidar com a ideia de que existem imperativos categóricos – leis morais absolutas e universais – absolutamente desligados de qualquer contexto circunstancial e alheios a resultados ou consequências. Como defender, perante um aluno que, por exemplo, mentir é sempre eticamente incorrecto, se uma determinada mentira pode salvar a vida de alguém?

Por outro lado, de que forma poderão os professores e demais responsáveis pela educação dos jovens ajudá-los a adquirir as normas do agir moral, se não for através de exemplos fornecidos pelas ocorrências do quotidiano?

A tarefa pedagógica parece mais facilitada, porém, se pensarmos na ética discursiva de Habermas. Na verdade, dá-se primazia à discussão das regras do agir moral dentro de um grupo, o que permite que, por exemplo, o professor possa, no contexto de sala de aula, proporcionar aos seus alunos situações que lhes consintam questionar, dialogar e decidir sobre o comportamento mais adequado numa determinada situação, sendo a regra validada para situações semelhantes e tornando-se, por conseguinte, universal.

O elemento reflexivo é fundamental e com ele a capacidade argumentativa, o que significa que os jovens serão tanto mais interventivos no contexto escolar, quanto maior for a sua capacidade de argumentar em favor das regras éticas e de antever os efeitos colaterais da sua aplicação. Daqui resulta que os alunos possam sentir uma motivação acrescida pela escola, uma vez que esta, em vez de lhes impor regras, convida-os a negociá-las. O perigo, todavia, reside no facto de que as crianças são imaturas e estão ainda a desenvolver-se. Isto quer dizer que a sua capacidade reflexiva, ainda em evolução, pode desviá-las do essencial, durante o processo dialógico necessário à validação das regras éticas.

159 Quanto a nós, Adela Cortina vem colmatar as dificuldades que apontámos à aplicação pedagógica das teorias de Kant e de Habermas porque ela conjuga as virtualidades da razão e da discussão dialógica com os sentimentos e com a formação do carácter. Efectivamente, através do cultivo das virtudes, facilmente se chega ao desenvolvimento de sentimentos de justiça ou de compaixão. Um carácter virtuoso, portador destes sentimentos, poderá muito mais facilmente avaliar as normas éticas e discuti-las com os seus pares.

Num contexto escolar, será fácil, através da apresentação de modelos de excelência e da observação de situações concretas, cultivar as virtudes dos alunos. Por outro lado, podemos continuar a motivá-los para a discussão de regras éticas universalizáveis, partindo, uma vez mais, de situações vividas na escola e estabelecendo-se, ao mesmo tempo, um paralelo com o previsto pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, garante da defesa da dignidade da pessoa humana. A inclusão dos sentimentos na discussão ética apenas vem dotá-la de um maior humanismo, pois se a razão é exclusiva dos seres humanos, o mesmo acontece com os sentimentos.

Na verdade, o quotidiano escolar permite o desenvolvimento do agir ético, pois a escola é uma comunidade, onde se tornam incontornáveis os conflitos de interesses e as situações de injustiça. Assim, a ética da razão cordial parece poder trazer um contributo importante para a formação de caracteres excelentes, capazes de sentir as normas éticas como um dever, mas também como um conjunto de princípios discutíveis, capazes de se tornarem universalizáveis para que todos tenham a garantia de poder ter acesso não só a uma vida justa, como também a uma vida boa.