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O encontro com o transcendente

EDUCAR PARA A MORTE

4. O encontro com o transcendente

Na era da globalização, a humanidade, cada vez mais, vive uma transversalidade ao nível da técnica, da ciência, da economia, das formas de comunicação e dos modos de fazer, pensar e agir, que se vão afirmando, frequentemente sem disso se dar conta, na forma como nos vestimos, como comemos, como comunicamos, estando subjacente a este fenómeno, sem dúvida, o «modelo americano»461.

O homem da aldeia global, convencido das suas muitas capacidades e conhecimentos, fazendo o elogio de um ideal de vida materialista e hedonista e a apologia do individualismo e do subjectivismo, conseguindo que as suas ideias se difundam a uma velocidade assombrosa, arvora-se, sobremaneira, um poder semelhante aos dos «deuses», que tudo sabem e tudo podem462. Em consequência, a necessidade de

a viver mais a vida, a aproveitar as coisas que a vida tem para dar… a minha vida era quase

exclusivamente dedicada ao trabalho e ao estudo e havia valores que se iam perdendo…” – Domingos, Manuel (2008): Experiências de Quase-Morte. Lisboa: Ésquilo Edições e Multimédia, Lda, 49.

460

Eliot, George (1884): Adam Bede. New York: John B. Alden, 49.

461 Valadier, Paul (2000): A Moral em Desordem. Lisboa: Instituto Piaget, 18.

462 Cortés, Carmen (2010): “Humanismo cristiano para nuestra sociedad”. In: El Desarrollo Humano Integral. Barcelona: Editorial Iter, 118.

179 um sentido de transcendência abranda e a espiritualização, como meio para alcançá-la, deixa de ser uma premência, deixando espaço para o relativismo e para o niilismo:

Somos víctimas de un devastador relativismo, de un «tiempo de verdadera y propia decadencia», según Dietrich Bonhoefer, resultado del pensamiento débil, del rechazo de la dimensión espiritual, religiosa y transcendente de la vida del hombre. La única cultura emergente es un voraz nihilismo; es el triunfo dela máscara con detrimento de la verdad, la victoria del subjetivismo y del optimismo antropológico decadente que piensa que el paraíso ya está dado en la tierra y lo único que queda es conducir el mundo y las relaciones humanas al hombre mismo.463

Contudo, já tivemos oportunidade de afirmar que, por muito que as questões imanentes toquem o coração do homem, jamais ele escapará à sua condição de ser espiritual, que alguns preferem apelidar de «condição divina», e à necessidade de encontrar uma morte e uma vida com sentido. Muitas vezes, esse sentido encontra-se para lá da própria vida, ou seja, descobre-se na transcendência:

Dentre as manifestações racionais, exclusivas do ser humano, que o afastam definitivamente da animalidade, sobressaem as capacidades de linguagem simbólica, de pensamento abstracto, de liberdade e de amor aos outros, as quais, pela sua transcendência, constituem evidente sinal da presença divina no homem, obrigando-o a reflectir sobre o sentido da sua presença no mundo.464

Efectivamente, podemos dizer que há três perspectivas bem distintas na forma de encarar a transcendência: a primeira é a visão materialista-humanista, que recusa qualquer tipo de sobrevivência após a morte. A segunda pode chamar-se semítica- ocidental e caracteriza-se pela fé na preservação da personalidade individual além da morte. A terceira afirma a existência de uma série de reencarnações até à identificação total com o espírito e/ou infinito465.

Na verdade, nenhum outro ser vive o binómio imanência/transcendência. Apenas o homem encerra esta dualidade. Para Levinas, o conhecimento imanente apresenta-se nas contingências do próprio sujeito e no modo como ele apreende o mundo que o rodeia:

Enquanto saber, o pensamento é o modo pelo qual uma exterioridade se encontra no interior de uma consciência que não cessa de se identificar, sem ter de recorrer para tal a nenhum signo distintivo e é Eu: O Próprio. O saber é uma relação do Próprio como o Outro

463 Duque, Esteban Roberto (2009): Ensayo sobre la Muerte. Madrid: Ediciones Encuentro, 38. 464 Pinto, José Lemos (2010): Se não foi Deus…quem foi?. S.L.: Chiado Editora, 57.

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onde o Outro se reduz ao Próprio e se despoja da sua alienidade, onde o pensamento se refere ao outro, mas onde o outro já não é outro enquanto tal, onde ele é já o próprio já meu.466

A transcendência, pelo contrário, libertando-se do conhecimento imanente, é o mundo sobre o qual nada sabemos e que está para além das fronteiras do já visto ou experimentado, é a exterioridade total, o que significa que ela é, mesmo, a negação da própria metafísica:

Mas a noção de transcendência, de alteridade, de novidade absoluta – a noção de absoluto – deixar-se-á ainda designar entre os inteligíveis se, precisamente enquanto noção do outro, do transcendente, do absoluto, tem de decidir sobre o saber que a teria investido e assimilado, sobre o mundo onde ela poderia aparecer mas desde já fazer-se imanência?467

O que é certo é que, efectivamente, como quer que esta dualidade seja encarada, ela é incontestável. O homem, na procura da sua felicidade, busca, muitas vezes, os caminhos da transcendência, sendo que, para muitos, a transcendência é Deus.

Segundo Pascal, a infelicidade do homem deriva da queda da sua verdadeira natureza original, que era a graça468. O homem votou-se ao cárcere das limitações humanas e, por isso, se verifica a necessidade de se transcender a si próprio, pois só assim poderá voltar a encontrar a felicidade469. A imanência humana está, pois, na expulsão do paraíso, enquanto a transcendência está no reencontro com o paraíso perdido ou no reencontro com Deus.

Para Teilhard de Chardin, a transcendência e imanência são dimensões da mesma realidade. O homem age e ultrapassa os limites da animalidade e as condicionantes da matéria, não existindo, por isso, sem o mundo. Teilhard pretende conciliar a ideia de Deus com as teorias científicas, entretanto aceites, nomeadamente a teoria do evolucionismo.

Portanto, para Teilhard de Chardin o processo evolutivo culmina no homem. Para este pensador, quanto mais tarde se der o aparecimento de uma espécie, mais complexa e consciente essa espécie se torna470. Uma vez que a espécie humana foi a última a surgir,

466 Levinas, Emmanuel (s.d.): Transcendência e Inteligibilidade. Lisboa: Edições 70, 14. 467

Idem, Ibidem, 17.

468

Pascal, Blaise (2002): “Pensamentos”. Internet. Disponível em www.ebooksbrasil.com (consultado em 27 de Agosto de 2010)

469 Krailsheimer, Alban (1983): Pascal. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 97.

470 Chardin, Teilhard (s.d.): “El Fenomeno Humano”. Internet. Disponível em

181 na ordem dos seres, ela representa o que há de mais elaborado no mundo. O homem não é, assim, fruto do acaso, mas do estado ao qual a evolução chegou, significando isso que a evolução se deu no sentido da espiritualização da matéria:

Ahora que, bajo la maraña históricamente creciente de las formas y de los órganos, se descubre a nuestra mirada el aumento irreversible, no sólo cuantitativo, sino también cualitativo, de los cerebros (y, por tanto, de las consciencias), nos sentimos advertidos de que resultaba inevitablemente esperado un acontecimiento de orden nuevo, una metamorfosis, para cerrar, durante el curso de los tiempos geológicos, este largo período de síntesis.

Ahora habremos de señalar los primeros síntomas de ese gran fenómeno terrestre que culmina en el Hombre.471

Tal facto implica que, a haver seguimento no processo evolutivo, o homem dará continuidade ao caminho em direcção ao ponto culminante da sua espiritualização, o que o fará chegar até Deus, apresentando, assim, “motivos de esperança a partir do Universo, da Evolução, do Espírito”472. Como nos explica Alex Gonçalves Pin, é o ponto alfa na sua caminhada para o ponto ómega:

Neste modo de ver, o homem é ápice da evolução que não terminou nele, ela dá continuidade ao seu itinerário até o ponto máximo de espiritualização da matéria, convencionalmente, chamado por Teilhard de Chardin de ponto ômega. Trata-se de uma espécie de centro definido pela última convergência do espírito sobre si mesmo, o ponto natural de convergência da humanidade e, por meio da humanidade, de todo o universo; em linguagem religiosa, o encontro definitivo da humanidade com o Deus de Jesus Cristo; a letra grega ômega sugere conclusão, arremate.473

A transcendência é, por conseguinte, um mundo desejado, uma vez que ela implica sempre a superação das contingências mundanas. Pouco importa se ela é vista de uma perspectiva religiosa, em que Deus, ou os deuses, na sua perfeição, assumem papel primordial ou se ela assume um carácter mais ou menos esotérico em que o natural se alia ao sobrenatural, na tentativa de explicar universos ocultos.

Talvez por isso se encontrem tantos estudos sobre a morte e sobre a vida para lá da vida, por muito controversos que possam parecer todos os argumentos apresentados pelos estudiosos destas matérias.

471Idem, Ibidem.

472 Almeida, J. Rogério (1989): Vida e Morte – Sentido e Esperança. Porto: Edições Salesianas, 173. 473

Pin, Alex Gonçalves (2008): “A Concepção de Homem em Pierre Teilhard de Chardin”. Internet.

Disponível em

http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/File/conteudo/artigos_teses/FILOSOFIA/Mono grafias/antropogenenese.pdf (consultado em 5 de Fevereiro de 2011).

182 Elisabeth Kübler-Ross, uma das personalidades mais ligadas ao estudo da tanatalogia, médica psiquiatra e professora da universidade de Virgínia, foi pioneira no que ao acompanhamento de pessoas em fim de vida diz respeito474. Sendo médica e, portanto, ligada às ciências da vida, ela apresenta a morte não como um final trágico, mas como uma porta para a própria vida. Ela aprendeu, com os seus pacientes, a enfrentar a morte não só de um ponto de vista clínico, mas também, e principalmente, do ponto de vista humano e até mesmo espiritual:

Mais tarde, alguém me perguntaria o que é que todos aqueles pacientes a morrer me haviam ensinado acerca da morte. Primeiro, pensei dar uma explicação muito clínica, mas isso não corresponderia à minha verdadeira imagem. Os meus pacientes ensinaram-me muito mais do que o que é estar a morrer. Partilharam lições sobre o que é que podiam ter feito e sobre o que é que deviam ter feito e sobre o que é que não tinham feito até já ser demasiado tarde, até estarem demasiado doentes ou demasiado fracos, até já estarem viúvos. Olhavam em retrospectiva para as suas vidas e ensinavam-me todas as coisas que tinham realmente sentido, não acerca de morrer… mas de viver.475

Tendo por base os seus conhecimentos médicos e os seus estudos sobre as pessoas em fase terminal, ela concluiu que se podem hierarquizar os vários estádios por que passam os doentes em fim de vida. Assim, as diversas etapas iniciam-se com a negação e o isolamento, passando, de seguida, ao sentimento de raiva, de negociação, de depressão e de aceitação, sendo transversal a todas as fases o sentimento de esperança476.

474

Kübler-Ross, Elisabeth (1988): La Mort est un Nouveau Soleil. Paris: Éditions du Rocher, 1.

475 Kübler-Ross, Elisabeth (2008): A Roda da Vida. Cruz Quebrada: Estrelapolar, 191. 476 Diz-nos a autora sobre estas etapas:

“A negação, pelo menos a negação parcial, é usada por quase todos os pacientes, não só durante os primeiros estádios da doença ou depois de serem confrontados com ela como também posteriormente, de tempos a tempos.

[…]

Quando o primeiro estádio de negação não pode ser mantido durante mais tempo, é substituído por sentimentos de ira, fúria, inveja e ressentimento. A questão lógica seguinte passa a ser: «Porquê eu?»

[…]

O terceiro estádio, o estádio de negociação, é menos bem conhecido mas igualmente útil ao paciente, embora apenas por breves períodos de tempo. Se fomos incapazes de enfrentar os tristes factos no primeiro período e nos zangámos com Deus e com as pessoas no segundo, talvez consigamos entrar numa qualquer espécie de acordo que possa adiar o inevitável acontecimento: «se Deus nos decidiu levar desta Terra, e se não respondeu aos meus coléricos pedidos, pode ser que seja mais receptivo se lhe pedir com jeitinho.»

[…]

Quando o paciente já não consegue negar mais a sua doença, quando é forçado a submeter-se a mais cirurgias ou hospitalizações, quando começa a ter mais sintomas ou fica mais fraco e magro, já não consegue esquecer a sua doença com um sorriso. A sua dormência ou estoicismo, a sua ira e raiva, serão brevemente substituídas por uma sensação de grande perda.

[…]

Se um paciente teve tempo suficiente […] e recebeu alguma ajuda para trabalhar a fundo as etapas antes descritas, alcançará um estádio em que não estará nem deprimido nem zangado com o seu «destino». Terá sido capaz de expressar os seus anteriores sentimentos, a sua inveja pelos vivos e saudáveis, a sua ira para com os que não tiveram de enfrentar o fim tão cedo. Terá feito o luto da perda iminente de tantas pessoas e lugares importantes para ele, e contemplará o seu fim com uma expectativa de certo modo serena.

183 Contudo, para além das pesquisas de carácter científico, que conduziram a esta hierarquização, Kübler-Ross, que se autodefine como céptica477, quis ir mais além, tendo-se interrogado sobre o que se passa para lá da morte.

Depois de anos de estudo, Kübler-Ross concluiu que o corpo não é mais do que o nosso casulo durante os anos que vivemos até à chegada da morte478. Esta estudiosa apresenta-nos, mesmo, alguns testemunhos de pacientes que estiveram no limiar da morte, e que contaram como, separados do corpo físico, continuaram a viver. A dar força aos argumentos de Kübler-Ross, estão milhares de relatos de experiências de “morte aparente”, em todos os pontos do planeta, em todas as culturas e religiões, entre pessoas dos dois sexos, entre crianças de tenra idade, jovens e velhos, entre crentes e ateus479.

Na verdade, sem falar de transcendência, o conceito está implícito nas conclusões de Kübler-Ross, pois ela refere que, uma vez desligados do corpo físico, não sentimos nem pânico, nem medo, nem desgosto. No fundo, o casulo (da ordem da imanência) não nos deixa voar como a borboleta (na ordem da transcendência):

Au moment de la mort nous vivons tous la séparation du vrai moi immortel de sa maison temporelle, c’est-á-dire du corps physique. Ce moi immortel est également appelé âme ou entité ou si nous nous exprimons symboliquement comme nous le faisons avec les enfants, nous pourrions comparer ce moi qui se libère du corps terrestre à un papillon qui quitte son cocon.480

Trata-se de uma transcendência sem limites de tempo ou espaço, um mundo em que podemos deslocar-nos de um lado ao outro de forma instantânea, em que somos recebidos por guias espirituais e pelos que partiram antes de nós e que nos foram queridos e em que não estamos sujeitos às paixões terrenas. Bem pelo contrário, trata-se de um mundo que rejeita toda a negatividade481.

Outros estudiosos, porém, referem que nem sempre as experiências de quase- morte se caracterizam por “contactos extra-corpóreos com estímulos sensitivos e

Até agora, discutimos diferentes estádios pelos quais as pessoas passam quando são confrontadas com notícias trágicas mecanismos de defesa, em termos psiquiátricos, mecanismos para lidar com situações extremamente difíceis. Estes estádios têm durações diferentes e substituem-se uns aos outros ou, por vezes, coexistem lado a lado. A única coisa que geralmente persiste ao longo de todos estes estádios é a esperança.” - Kübler-Ross, Elisabeth (2008): Acolher a Morte. Cruz Quebrada: Estrelapolar, 54, 67, 101, 104,133, 161,162.

477 Kübler-Ross, Elisabeth (1988): La Mort est un Nouveau Soleil. Paris: Éditions du Rocher, 95. 478

Idem, Ibidem, 93.

479 Idem, Ibidem, 105. 480 Idem, Ibidem, 106,107. 481 Idem, Ibidem, 137

184 sensoriais, seres «luminosos» e entes-queridos já falecidos, a par de sentimentos de bem- estar (paz) extático e de auto-escopia”482.

O presidente da Sociedade Portuguesa de Neuropsicologia, Manuel Domingos, por exemplo, refere que um a vinte e cinco por cento dos casos estudados não faz alusão a sentimentos de tranquilidade, nem a encontros com os já falecidos. Pelo contrário, alguns fazem descrições de lugares semelhantes às que se fazem do Inferno, com fogo, almas atormentadas e um calor intenso483.

Independentemente de nos mostrarmos mais ou menos cépticos relativamente às conclusões deste tipo de estudos, um aspecto ressalta da sua existência. Temos indícios de que grande parte dos seres humanos, de uma maneira geral, tem necessidade de buscar a transcendência e de provar que ela existe. Além disso, a convicção de que a vida continua para além da morte, ainda que numa esfera totalmente diferente, é mais um factor a contribuir para que o homem reequacione os seus valores e com que renove o seu projecto de vida484.