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2.2 A ética do amor a Deus

3. Éticas racionais

3.2. Jürgen Habermas

A teoria da ética discursiva, defendida por Habermas e por outros pensadores de reconhecido valor, como por exemplo Apel, surge a partir do confronto com teorias já existentes, entre as quais a de Kant. A ética de Habermas pode caracterizar-se do seguinte modo: é uma ética cognitivista, dado que o conhecimento racional serve de base para a formulação do princípio do bem, e do que deve ser; é uma ética formalista, pois não pretende propor normas de conduta concretas, valores morais ou modelos de felicidade, mas antes princípios processuais, através dos quais se possam adoptar regras racionais e correctas; é uma ética universalista porque se abstrai dos conteúdos contextuais, fazendo uma reinterpretação dialógica da ética de Kant378. A tese da ética discursiva formula-se a partir da ideia da formulação de um ponto de vista moral, de onde resulte um juízo ético neutro e universal379.

A ética discursiva propõe dois princípios: o da discussão e o da universalização. Através do primeiro explora-se e questiona-se a validade de determinada norma. Através do segundo, essa norma é testada e, eventualmente, validada380.

378 Bonete, Enrique (2003): Éticas en Esbozo. Bilbao: Editorial Desclée de Brouwer, 96,97.

379Hare, John (2010): "Religion and Morality". The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Internet.

Disponível em <http://plato.stanford.edu/archives/win2010/entries/religion-morality/. (consultado em 10 de Agosto de 2011)

380Pegoraro, Olinto (2006): Ética dos Maiores Mestres através da História. Petrópolis: Editora Vozes,

149 A ética discursiva, pode dizer-se, tem como objectivo substituir o imperativo categórico pelo procedimento da argumentação moral. Esta ética aventa que as normas só terão validade se forem consentidas por todos os agentes do discurso prático e elas só serão universais se for feita a antecipação dos resultados e dos efeitos colaterais decorrentes da sua aplicação. Isto só se alcança mediante um processo argumentativo em que se respeitam os melhores argumentos, tendo por base a maior coerência, rectidão e adequação381. Com efeito, Habermas propõe um novo paradigma. Ele recupera a legitimidade cognitiva da razão, mas de uma razão dialógica. A nova ética deixa de ter como fundamento o sujeito, passando a ter como alicerce o grupo. Assim, a verdade obtida é resultado de um processo comum aos elementos desse grupo. Deste modo, a razão comunicativa, expressa através da linguagem, torna-se elemento constitutivo. Aliás, a linguagem é o esteio de todo o processo interactivo que se estende às práticas comunicativas ligadas ao mundo dos objectos, ao mundo das normas e ao mundo do sujeito:

No quadro da teoria do agir comunicacional, eu concentro-me pelo contrário a estabelecer a plausibilidade do facto de que uma pessoa, socializada em qualquer língua e em qualquer forma cultural de vida, qualquer que ela seja, não pode não se comprometer nas práticas comunicativas e, por isso mesmo, não pode não se apoiar sobre certos pressupostos pragmáticos que nós temos como nível geral. A reconstrução do conteúdo intuitivo destes inevitáveis pressupostos da acção comunicativa consiste em revelar a rede de idealizações performativas no seio da qual os sujeitos agindo e comunicando se descobrem comprometidos, sem que se possam subtrair, a partir do momento em que participam em tais práticas culturais. 382

A ética discursiva parece-nos bastante mais flexível do que a ética kantiana, no sentido em que ela prevê uma negociação entre os diversos elementos que constituem uma comunidade.

Trata-se de uma ética em que o elemento reflexivo tem um papel primordial e, neste contexto, o aprofundamento do homem enquanto ser espiritual revela-se mais favorecido, dado que, na sua relação com os outros, o homem procura responder a

381

Freitag, Barbara (1989): “ A questão da Moralidade: da razão prática de Kant à ética discursiva de Habermas”. In Tempo Social volume 1: 29.

382“Dans le cadre de la théorie de l’agir communicationnel, je m’attache au contraire à établir la plausibilité du fait

qu’une personne, socialisée dans quelque langue et dans quelque forme culturelle de vie que se soit, ne peut pas ne pas s’engager dans des pratiques communicationnelles et, par là même, ne peut pas ne pas faire fond sur certaines préssupositions pragmatiques que nous tenons pour être d’une portée générale. La reconstruction du contenu intuitif de ces inévitables préssupositions de l’action communicationnelle consiste à révéler le réseau des idéalisations performatives au sein duquel les sujets agissant et communiquant se découvrent engagés, sans qu’ils puissent s’y soustraire, dès lors qu’ils participent à de telles pratiques culturelles.” – Habermas, Jürgen (2003): L’Éthique de la Discussion et la Question de la Vérité. Paris: Éditions Grasset, 29.

150 questões de carácter ético e moral, tendo liberdade para se questionar e para se auto- analisar, com o intuito de encontrar soluções que tragam a sua felicidade e a felicidade dos demais.

Porém, e quanto a nós, a crítica que apresentámos relativamente às teorias kantianas faz ainda mais sentido na ética discursiva de Habermas. Ela é sustentada por factores de ordem cognitiva, que dominam a capacidade de argumentar. Isto significa que aqueles que, por quaisquer motivos, não tenham desenvolvido as suas competências intelectivas, estarão em total desvantagem e viverão, sempre, sob a tirania do poder argumentativo alheio, o que põe em causa, à partida, a universalidade que, supostamente, a caracteriza.

A aplicação prática da ética discursiva parece-nos, por conseguinte, não trazer grandes benefícios em prol de uma sociedade mais justa e mais feliz. E quando o homem não encontra na sua vida a realização das suas aspirações, enquanto ser biológico, mas sobretudo, enquanto ser espiritual, com direito à expressão dos seus anseios, das suas dúvidas, das suas limitações, sejam elas grandiosas ou mais simples, fruto de maior ou de menor capacidade de apresentar argumentos, ele não se sentirá verdadeiramente homem e a sua morte será apenas o desfecho anunciado para a sua falta de esperança.