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EDUCAR PARA A MORTE

1. O homem como ser finito

A história da humanidade prova que, desde que o homem se reconhece como tal, sempre teve consciência da sua efemeridade e que sempre considerou o mistério da

166 morte. Prova disto mesmo são os muitos sarcófagos e monumentos funerários encontrados e os ritos que, como testemunham os objectos que os acompanham, aí se realizavam.

Os estudos de arqueologia e de antropologia cultural têm mostrado várias formas de ritualização do cadáver: aceleração da decomposição, inumação, embalsamamento, rituais canibalescos, cremação e outros. Estes ritos fúnebres relacionam-se, sobretudo, com os quatro elementos: o ar, com o cadáver exposto; a inumação na terra, a mais praticada; a imersão na água e, finalmente, o fogo, com a incineração, praticada já no Neolítico412.

É legítimo admitir que estas múltiplas manifestações do culto prestado aos mortos pressupõem a perspectiva de uma passagem para uma outra vida ou para uma outra dimensão, consoante as crenças. Nas culturas pré-históricas, por exemplo, a posição fetal em que se colocava o corpo, simbolizaria um renascimento no fértil útero da terra mãe.

O homem, embora consciente da sua finitude, tem dificuldade em aceitar o carácter definitivo da morte. Esta, vista como o caos, o absurdo, ou o escândalo (Jankélévitch)413, aparece como um factor perturbador da vida, e são muitos os poetas e filósofos que versaram e continuam a versar sobre este tema e sobre a angústia a ele associada.

Trata-se de uma angústia sobre o desconhecido, pois a experiência da morte é sempre vista na segunda ou na terceira pessoa. Ninguém nunca fez essa experiência, “que é feita pela primeira e última vez, a primeira sendo também a última. É a ascensão a uma ordem completamente diferente ou a nada de nada.”414

Muito se tem dito, sendo certo, porém, que o homem é o único ser capaz de pensar a própria morte415, sendo, por conseguinte também, o único capaz de admirar a sua

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Carvalho, Fernando Lins de (2001): Simbologia dos Ritos Funerários na Pré-história. Internet. Disponível em://max.org.br/biblioteca/Revista/Caninde-dez-01/Dez-01-art12.pdf (consultado em 8 de Janeiro de 2011).

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Diz-nos este autor sobre a morte:

“Ora, a morte é a niilização sem fase. Ao morrer, o vivo cai, desaparece e não passará de um cadáver. O problema da cessação de ser permanece em si mesmo o mais profundo mistério. É impensável e é, neste sentido, escandaloso.” – Jankélevitch, Vladimir (2003): Pensar a Morte. Mem Martins: Inquérito Editorial, 27.

414

Jankélevitch, Vladimir (2003): Pensar a Morte. Mem Martins: Inquérito Editorial, 77.

415 Segundo Edgar Morin, não é pacífico que se diga que os animais não têm conhecimento da morte,

apenas se pode dizer que se trata de um conhecimento relativo não ao indivíduo, mas à espécie a que pertence:

“Além disso, há um ponto muito importante e obscuro, que diz respeito ao comportamento de numerosos animais e sobre o qual não conhecemos estudos. Vão-se esconder para morrer? Porquê? Qual o significado dos cemitérios dos elefantes, animais, aliás, muito evoluídos? Se certos animais têm, efectivamente, um comportamento particular perante a aproximação da

167 existência416. Como diz Heidegger o homem é um ser-para-a-morte, pois ela é intrínseca à própria vida e é a consciência da morte que motiva a preocupação e a angústia, mas que permite viver cada momento de forma responsável417.

A morte, sendo inerente à vida, “é antes de tudo um inexorável facto biológico, esse por cujo efeito irreversivelmente cessa a actividade vital”418 e tem sido objecto de discussão ao longo dos séculos. Para Platão, por exemplo, ela consistia na separação entre o corpo e a alma imortal. Trata-se de um processo de purificação da alma e do caminho para alcançar o bem supremo. O corpo é visto como constrangedor, porque impelido pelas paixões mundanas:

Nesse tempo em que tudo se encontrava sob o olhar dos deuses, em que, iniciados nos mistérios divinos os celebrávamos na ingenuidade da nossa pureza, isentos de todos os pecados que nos aguardavam no decurso ulterior do tempo; integridade, simplicidade, imobilidade, felicidade, eram as visões que a iniciação fazia passar em frente de nossos olhos, no seio de uma luminosidade pura e deslumbrante, justamente porque também nós éramos puros e não tínhamos contacto com esse sepulcro que se chama corpo, dentro do qual nos movemos, a ele tão ligados como a ostra à sua concha… 419

Epicuro, pelo contrário, é a favor de uma vida hedonista, ligada aos prazeres e às sensações, não vendo na morte nem um bem, nem um mal, mas apenas a privação total dos sentidos420.

Já no século IV, Santo Agostinho, para quem o homem começa a existir na morte desde o momento em que começa a existir em corpo, defende que a finitude humana e a realidade da morte eliminam toda a possibilidade de se ser feliz sem Deus:

As diversas belezas das coisas temporais, filtrando-se por meio das sensações carnais, arrancam o homem decaído da unidade de Deus introduzindo-o na multiplicidade de afetos efêmeros. Daí se originar essa abundância laboriosa – se assim podemos dizer – essa copiosa

própria morte, esse comportamento implica, pois, um «conhecimento» da morte. Mas de que

«conhecimento» se trata?

Tais reacções, tais comportamentos, tal «inteligência» da morte, implicam o indivíduo, pois são manifestos por indivíduos para com outros indivíduos, mas são reacções específicas. […] O indivíduo age como espécime e manifesta nas reacções citadas, não uma inteligência individual, mas sim uma inteligência específica, isto é, um instinto. O instinto, que é um sistema de desenvolvimento e de vida, é também um formidável sistema de protecção contra o perigo da morte. Por outras palavras, é a espécie que conhece a morte, e não o indivíduo; e conhece-a a fundo.” – Morin, Edgar (s.d): O Homem e a Morte. Mem Martins: Publicações Europa-América, 54,55.

416

Idem, Ibidem, 39.

417

Heidegger, Martin (2003): Ser y Tiempo. Madrid: Editorial Trotta, 266.

418

Entralgo, Pedro Laín (2003): Corpo e Alma. Coimbra: Livraria Almedina, 360.

419 Platão (1986): Fedro. Lisboa: Guimarães Editores, 65.

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indigência, que faz o homem ir atrás de uma coisa e outra sem se reter em nada. […] Isso quer dizer: não mais encontram a Deus, aquele Ser imutável e único, em cujo seguimento não há erro, e cuja posse não acarreta dor alguma.421

Muito mais tarde, Kant afirma que a imortalidade é um postulado da razão prática, uma exigência da moralidade. A mortalidade impossibilita a realização, neste mundo, do cumprimento integral do dever. O homem, porque mortal, não tem tempo de conseguir a perfeição, ou seja o acordo entre a vontade e a lei natural. A imortalidade da alma é, assim, uma exigência de tipo prático que se impõe422.

Com o marxismo, a transcendência da morte encontra-se na entrega incondicional ao colectivo. A morte é a realização do dever cumprido. A única glória está no reconhecimento e na lembrança dos camaradas que trabalharam na causa do partido e que se tornam, assim, estímulos permanentes para a luta423.

Como resposta ao postulado da razão, surgem novos movimentos, nomeadamente com Heidegger que vê a morte como uma dimensão da vida humana, como algo ontológico424. Para este pensador, como para outros pensadores existencialistas, a consciência da morte está ligada ao facto de que a existência é, sobretudo, preocupação e angústia:

158 A enorme desproporção entre aquilo que fazemos e o que escolhemos ou alguém em nós escolheu ter sido. O destino da vida é o esquecimento. Mas nós lutamos desesperadamente por ser o lembrar. O sol atravessa a janela da sala, ilumina os cortinados suspensos. É um instante fugidio que em breve desaparecerá. Vivo-o ainda, agora que contemplo a janela iluminada, mas em breve virá a noite e tudo findará. Lembrá-lo-ei amanhã? Não o lembrarei dentro em breve, o seu milagre será inútil. Tento, todavia, segurá-lo, fazê-lo perdurar contra a morte que é sua. Mas quantos estratagemas de que nos servimos para ter razão contra a morte. E, no entanto, o que perdura é uma fracção mínima do que aconteceu. O que perdura é o nosso gesto inútil de desespero. Mas mesmo no que se refere à nossa vida, o que para nós fica a marcá-la são pontos distantes e desconexos de uma estranha constelação. Que foi para nós aquilo que foi e desapareceu? Que significa ter sido? Em que economia incognoscível foram elementos de contabilidade? Em função de quê a nossa vida, foi vida no que se perdeu? Nós detemo-nos na gratuidade da vida do homem e do universo. Ele começa mais abaixo, no silêncio que recobre uma fracção enorme da vida de cada um…425

421 Santo Agostinho (2002): A Verdadeira Religião O Cuidado Devido aos Mortos. São Paulo: Paulus, 64,

65.

422

Kant, Immanuel (2008.): Crítica da Razão Prática. Lisboa: Edições 70, 172.

423 Duque, Esteban Roberto (2009): Ensayo sobre la Muerte. Madrid: Ediciones Encuentro, 33. 424 Heidegger, Martin (2003): Ser y Tiempo. Madrid: Editorial Trotta, 266.

169 Nos dias de hoje, a recusa cada vez mais acentuada das dimensões espiritual, transcendente e religiosa em detrimento da dimensão material conduz a um relativismo, apoiado na ideia da felicidade subjectiva como fim último da vida de cada um. Assim, os bens consumíveis e instantâneos, satisfazendo as necessidades hedonistas das pessoas, sobrepõem-se à necessidade de uma relação profunda com o mundo, escondendo, sobejas vezes, um vazio e um horizonte sem esperança, em que a morte surge apenas como o fim de tudo426.

Em todo o caso, a morte humana continua, ainda, a ser vista numa perspectiva dualista. Quer isto dizer que o corpo e a alma427, entendidos como realidades independentes, recuperam na morte, a sua autonomia428, independentemente de se considerar, ou não, a imortalidade da alma. Na verdade, o homem não é um ser meramente biológico. Por isso se admite, com relativa facilidade, que a alma espiritual que habitava o vivo se ausenta com a morte corporal.

A morte humana é, apesar da proliferação das ideias ateístas e até mesmo das políticas laicistas, encarada como motivo de uma nova organização. No mundo, noventa por cento das pessoas professam uma religião429. Por isso se compreende que a morte, por meio dos rituais de renovação que ela sempre inclui, seja, para esses crentes, não apenas um fim. Para haver vida, tem de haver morte. Era assim o pensamento no tempo dos povos primitivos, como foi assim no tempo das civilizações egípcia, grega e romana, como, apesar de tudo, continua a ser, para muitos, nos dias de hoje. Ao falarmos de morte, inevitavelmente nos assalta a ideia de uma nova forma de vida. A maioria dos mortais aceita a eternidade da sua alma, variando essa forma de eternidade, de acordo com a sensibilidade, a religião ou a filosofia de cada um.

Os budistas acreditam na reencarnação da alma, os seguidores das religiões abraâmicas, de uma forma geral, crêem que a alma imortal se juntará a Deus no paraíso, outros encaram a morte como a passagem para uma outra dimensão ou frequência. O certo, no entanto, é que, em contexto religioso, a morte raramente é vista como o fim.

Porém, hoje em dia, a angústia da morte parece ter invadido a nossa sociedade e de tal modo, que é patente a necessidade de a esconder. Ao mesmo tempo que os meios de

426 Duque, Esteban Roberto (2009): Ensayo sobre la Muerte. Madrid: Ediciones Encuentro, 38.

427 A ideia de «alma» não adquire, aqui, um sentido religioso. Tem, sobretudo a ver com o conceito, tal

como o define Ortega: “Alma e espírito são para Ortega modos da pessoa humana se apresentar e agir, discerníveis na unitária realidade do homem.” – Entralgo, Pedro Laín (2003): Corpo e Alma. Coimbra: Livraria Almedina, 237.

428 Gevaert, Joseph (2005): El Problema Del Hombre. Salamanca: Ediciones Sígueme, 299. 429 Duque, Esteban Roberto (2009): Ensayo sobre la Muerte. Madrid: Ediciones Encuentro, 43.

170 comunicação social banalizam a morte, ao exibirem, despudoradamente, cadáveres em cenas de guerra ou de catástrofes naturais ou ao falarem quotidianamente em abortos, eutanásia, suicídios, homicídios, etc, a morte é um tabu:

Nous éloignons les enfants de la mort sans y penser, croyant les protéger. Mais il est clair que nous ne leur rendons pas service en les privant de cette expérience. En faisant de la mort et de l’acte de mourir un sujet tabou et en éloignant les enfants des mourants et des morts, nous créons une peur que n’était pas nécessaire. Quand quelqu’un meurt, nous «aidons» ses proches en nous occupant d’eux, en restant souriants, en arrangeant le corps pour qu’il ait l’air «naturel». Encore une fois, notre «aide» n’aide pas, elle est destructive. Quand quelqu’un meurt, il est important que ses proches participent au processus; cela les aidera à leur deuil, et les aidera aussi à faire face plus facilement à leur propre mort.430

Enquanto no passado, a morte era pública e ruidosa, actualmente a morte é privada, frequentemente escondida. No passado morria-se em casa, rodeado pelos familiares e amigos, ao passo que hoje se morre, anonimamente, na cama de um hospital. Chega-se mesmo ao cúmulo de maquilhar os cadáveres para lhes ocultar o aspecto de mortos431.

Não é por acaso que a morte se tornou cada vez mais difícil de aceitar nas sociedades modernas. O homem hedonista e consumista, habituado, unicamente, aos prazeres materiais da vida, não consente que a ideia de morte lhe venha toldar o gozo que esses bens lhe proporcionam. A ideia de morte iria perturbar fortemente a sua relação com o mundo, pois, efectivamente, aquele que se consciencializa que vai morrer, não sentirá o apelo ao consumo ou à busca de prazeres efémeros.

Uma sociedade que rejeite a ideia de morte está também a rejeitar a ideia de vida, uma vez que uma não existe sem a outra. Ao esconder a morte, deprecia-se a vida e esta vive-se, muitas vezes, no vazio, na solidão e na desesperança. Ao contrário, uma sociedade capaz de encarar a morte com naturalidade será uma sociedade madura e equilibrada432.

Aqueles que vêem a morte como um processo inerente à vida têm a capacidade de hierarquizar as prioridades, não passando pela vida com indiferença:

430Kübler-Ross, Elisabeth (1985): La mort, dernière étape de la croissance. Paris: Éditions du Rocher, 36. 431 Oliveira, J.H. Barros (1998): Viver a Morte. Coimbra: Livraria Almedina, 16.

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Qué significa entonces «aprender a vivir?

Significa que uno no vive el noventa por ciento en el futuro y se preocupa por lo que va a suceder mañana. Y que se aprende a estar aquí y a vivir en el presente.

Entonces también hay tiempo para coger una flor o para escuchar a una persona y no pasar de largo sin hacer caso de las cosas y de la gente, como ocurre hoy en día. Hay padres que se preguntan con inquietud si un día podrán llevar a sus hijos a un buen colegio, si ganan bastante y si en la vejez dispondrán de lo suficiente para vivir. Nunca se toman el tiempo de conocer a sus hijos. Y de pronto caen gravemente enfermos antes de jubilarse y los hijos entonces no tienen tiempo para su padre, porque él tampoco había tenido tiempo para ellos. Uno se pregunta en esos momentos «por qué no me habré tomado medio día libre para ir, por ejemplo, a pescar com mis hijos y así poder llegar a conocerlos bien».Estas personas se mueren entonces con una profunda tristeza, puesto que en el fondo nunca han vivido de verdad. 433

Com efeito, a tomada de consciência da morte obriga a escolhas pessoais, revelando, dessa maneira, o ser único e singular que existe em cada um de nós. Assim, as opções que cada um toma, toma-as de acordo com a sua escala de valores, o que significa que existe uma relação absolutamente indissociável entre a morte e o domínio axiológico434, entre a morte e a educação em valores.

Se a ideia de morte condiciona os caminhos que decidimos percorrer, isso significa que «pode viver-se melhor à luz da morte», ou seja, o conhecimento da nossa finitude pode proporcionar-nos escolhas mais conscientes e mais reflectidas, no quadro de um conjunto de valores éticos e espirituais.

Com efeito, a nossa morte, sendo apenas uma antecipação experimentada na morte dos que nos estão perto, poderá levar-nos à tomada de decisões e de escolhas efectivas.