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2.2 A ética do amor a Deus

2.4.1. Vida Boa

Paul Ricoeur lê a ética à luz da necessidade que o homem tem de encontrar a felicidade, na presença do seu semelhante e enquadrado na sociedade. Por isso, ele edifica a sua teoria ética em três sustentáculos distintos: a vida boa337, a solicitude338 e as instituições339.

O conceito de vida boa é explanado por Ricoeur tendo por base a teoria de Aristóteles. Vida boa é, segundo Ricoeur, o que quer que seja que cada um pensa ser a total realização de projectos ou planos, isto é o que cada um supõe ser o fim último a atingir:

La «vie bonne» est ce qui doit être nommé en premier parce que c’est l’objet même da la visée éthique. Quelle que soit l’image que chacun se fait d’une vie accomplie, ce couronnement est la fin ultime de son action.340

Assim, na prática do dia-a-dia, o homem conhece os meios que podem servir para alcançar esse fim último. Estes meios são fruto de uma deliberação e essa deliberação é tomada com base no conceito de felicidade ou de vida boa que cada um tem para si. A praxis é, deste modo, e de acordo com Aristóteles, a ancoragem fundamental de uma vida boa. No entanto, para o filósofo grego, permanecia o paradoxo aparente segundo o qual a praxis não seria um fim em si mesmo, visando apenas um fim ulterior. Isto é, a praxis seria o resultado de um conjunto de meios a concorrer para um fim. De acordo com Ricoeur tal paradoxo pode ser resolvido, através de uma hierarquia que consiga que as finalidades se encaixem umas nas outras, sendocada uma sempre o aperfeiçoamento da anterior:

A cet égard, il n’est pas certain qu’Aristote ait résolu le paradoxe apparent selon lequel la praxis, du moins la bonne praxis, serait elle-même sa propre fin, tout en visant une fin ultérieure. Le

335 Idem, Ibidem, 201. 336 Idem, Ibidem, 201. 337 Idem, Ibidem, 202. 338 Idem, Ibidem, 211. 339 Idem, Ibidem, 227. 340 Idem, Ibidem, 203.

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paradoxe serait résolu si l’on trouvait un principe de hiérarchie tel que les finalités soient en quelque sorte incluses les unes dans les autres, le supérieur étant comme excès de l’inférieur.341

Quer isto dizer que Ricoeur entende que alguns meios são também fins em si mesmos, possuindo um bem imanente. Há, na verdade, um fim hierarquicamente superior, peculiar ao agir humano e é esse fim que orienta as escolhas das acções. No entanto, as escolhas não se fazem no contexto de uma totalidade representada pela vida boa. O que acontece é que o conjunto das acções humanas, parciais e portadoras de um bem imanente, integra-se numa unidade mais vasta a que se chama planos de vida. Segundo Ricoeur, é na relação entre a prática e os planos de vida que reside o segredo do encaixe das finalidades342.

Os padrões de excelência, já preconizados por MacIntyre, sendo regras de comparação que incorporam os ideais de perfeição de cada prática, função ou profissão, ajudam a estabelecer os critérios que servem de juízo ao bem-fazer, de acordo com os conceitos do convívio social e são reveladores da existência de uma teleologia intrínseca do agir:

De quelle manière ces étalons d’excellence se rapportent-ils à la visée éthique du bien-vivre? D’une double manière. D’une part, avant de qualifier comme bon l’exécutant d’une pratique, les étalons d’excellence permettent de donner sens à l’idée de biens immanents à la pratique. Ces biens immanents constituent la téléologie interne de l’action, comme l’expriment au plan phénoménologique les notions d’intérêt et de satisfaction qu’il ne faut pas confondre avec celles du plaisir. Ce concept de bien immanent, chère à MacIntyre, donne ainsi um premier point d’appui au moment réflexif de l’estime de soi, dans la mesure où c’est en appréciant nos actions que nous nous apprécions nous-mêmes comme en étant l’auteur. D’autre part, le concept de biens immanents doit être tenue en réserve en vue d’une reprise ultérieure de la conception proprement normative de la morale lorsqu’il s’agira de donner un contenu à la forme vide de l’impératif catégorique. En ce sens, l’idée de biens immanents occupe dans notre entreprise une double position stratégique.343

A vida boa, finalidade de todo o ser humano, resulta, deste modo, de um processo de escolhas entre acções, detentoras de um bem teleológico imanente que lhe é particular, o que justifica, logo à partida, o serem boas acções. Contudo, ao longo do percurso, há lugar a um processo interpretativo das acções, pelo que o sujeito, agente

341 Idem, Ibidem, 203. 342 Idem, Ibidem, 209. 343 Idem, Ibidem, 207, 208.

135 dessa interpretação, acaba por se interpretar a si próprio, sendo, portanto, aqui introduzida uma relevante questão hermenêutica:

D’abord, entre notre visée de la «vie bonne» et nos choix particuliers, se dessine une sorte de cercle herméneutique en vertu du jeu de va-et-vient entre l’idée de «vie bonne» et les décisions les plus marquantes de notre existence (carrière, amours, loisirs, etc). Il en est ainsi comme d’un texte dans lequel le tout et la partie se comprennent l’un par l’autre. Ensuite, l’idée d’interprétation ajoute, à la simple idée de signification, celle de signification pour quelqu’un. Interpréter le texte de l’action, c’est pour l’agent s’interpréter lui-même.344

Temos, portanto, a recuperação da ideia de MacIntyre sobre a narrativa de vida, que se pauta por ser uma unidade composta pelas várias acções humanas, intenções, causas e imprevistos que se vão sucedendo, mediante decisões conformes ao campo das práticas, dos padrões de excelência e, por fim, dos planos de vida.

2.4.2. Solicitude

Ricoeur analisa a definição de amizade em Aristóteles, com o objectivo de introduzir a noção de solicitude e de a valorizar no âmbito da ética.

Assim, a amizade está na origem da solicitude em resultado de três aspectos fundamentais. Como já dissemos, o primeiro pilar da ética ricoeurina, a vida boa, assume um carácter reflexivo conducente à estima de si mesmo, o que, à partida, pode levar-nos ao perigo do isolamento. Contudo, Ricoeur combate essa ideia, uma vez que a solicitude não surge como um apêndice externo à amizade, mas sim como um desdobramento dialogal, em que amizade e solicitude não existem uma sem a outra:

La réflexivité semble en effet porter en elle la menace d’un repli sur soi, d’une fermeture, au rebours de l’ouverture sur le grand large, sur l’horizon de la «vie bonne». En dépit de ce péril certain, ma thèse est que la sollicitude ne s’ajoute pas du dehors à l’estime de soi, mais qu’elle en déplie la dimension dialogale jusqu’ici passée sous silence.345

Em segundo lugar, é importante perceber que a amizade, em Ricoeur, não é tomada na perspectiva tripartida de Aristóteles segundo o bom, o útil ou o agradável346.

344 Idem, Ibidem, 210, 211. 345 Idem, Ibidem, 212. 346 Idem, Ibidem, 214.

136 A amizade verdadeira é a que inviabiliza o egoísmo do sujeito, impossibilitando-o de se fechar sobre si mesmo e conduzindo-o a uma reciprocidade que se baseia na relação com o outro e na aceitação do outro, tal como ele é.

Por último, a amizade coloca em cima da mesa a noção de igualdade e de justiça, estabelecendo, a este nível, um paralelo entre as relações interpessoais e as relações institucionais. Por este motivo, Ricoeur considera que a amizade não só depende da ética, como prima pelo reconhecimento mútuo:

(…) non seulement l’amitié relève effectivement de l’éthique, comme étant le premier dépli du souhait de vivre bien; mais surtout elle porte au premier plan la problématique de la réciprocité, nous autorisant ainsi à réserver pour une dialectique de second degré, héritée de la dialectique platonicienne des «grands genres» - le Même et L’Autre -, la question de l’altérité en tant que telle.347

A solicitude não é, por conseguinte, impelida pelo culto do eu ou por desejos de índole egoísta. Pelo contrário, ela dá azo à reciprocidade, sempre na perspectiva de uma vida boa com e para o outro. Esta permite o equilíbrio entre partes desiguais, sendo que a ideia de dar e a ideia de receber não têm forçosamente o mesmo peso. A solicitude adquire o estatuto de espontaneidade benevolente:

C’est pourquoi il nous importe tant de donner à la sollicitude un statu plus fondamental que l’obéissance au devoir. Ce statut est celui d’une spontanéité bienveillante, intimement liée à l’estime de soi au sein de la visée de la vie «bonne». C’est du fond de cette spontanéité bienveillante que le recevoir s’égale au donner de l’assignation à responsabilité, sous la guise de la reconnaissance par le soi de la supériorité de l’autorité qui lui enjoint d’agir selon la justice. Cette égalité n’est certes pas celle de l’amitié, où le donner et le recevoir s’équilibrent par hypothèse. Elle compense plutôt la dissymétrie initiale, résultant du primat de l’autre dans la situation d’instruction, par le mouvement en retour de la reconnaissance.348