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2.2 A ética do amor a Deus

2.4.3. Instituições justas

À medida que as relações humanas se tornam anónimas, difusas e distantes e, portanto, a amizade se torna inviável, é necessário que o último pilar em que assenta a ética ricoeuriana, as instituições justas, se imponha com o intuito último de se ter uma vida boa em comunidade.

347 Idem, Ibidem, 214, 215. 348 Idem, Ibidem, 222.

137 Viver em comunidade implica, para Ricoeur, a extrapolação das relações face-a- face. A vida em sociedade tem o seu fundamento numa relação alargada que encerra um sem número de outros, unidos por relações de interdependência, partilhando costumes e tradições consolidados pelo tempo. Por isso, viver bem não se aplica apenas às relações de um eu com um tu, mas estende-se às próprias instituições:

Que la visée du bien-vivre enveloppe de quelque manière le sens de la justice, cela est impliqué dans la notion même de l’autre. L’autre c’est aussi l’autre que le «tu». Corrélativement, la justice s’étend plus loin que le face-à-face. 349

Ora, o que acontece é que a responsabilidade perante o outro perde a força em virtude do distanciamento e isso acarreta formas de injustiça que todos conhecemos. Em Ricoeur, a justiça é vista sob duas perspectivas distintas: a do bom, como extensão das relações interpessoais e a do legal em que o sistema judiciário concede às leis coerência e direito de coacção. Na verdade, a origem do sentido de justiça remonta a tempos imemoriais, sendo anterior a qualquer sistema judiciário. Por isso Ricoeur confere maior atenção à justiça do bom:

Le juste, me semble-t-il, regarde de deux côtés: du côté du bon, dont il marque l’extension des relations interpersonnelles aux institutions; et du côté légal, le système judiciaire conférant à la loi cohérence et droit de contrainte. C’est sur le premier versant exclusivement que nous nous tiendrons dans cette étude.

Deux raisons légitiment l’entreprise. D’une part, l’origine quasi immémoriale de l’idée de justice, son émergence hors du moule mythique dans la tragédie grecque, la perpétuation de ses connotations divines jusque dans les sociétés sécularisées attestent que le sens de la justice ne s’épuise pas dans la construction des systèmes juridiques qu’il ne cessent pourtant de susciter. D’autre part, l’idée de justice est mieux nommée sens de la justice au niveau fondamental où nous restons ici. 350

Ao falarmos de justiça - ou melhor, do sentido da justiça - a primeira percepção que temos é precisamente a da sua ausência, uma vez que a justiça é o que falta, enquanto a injustiça é o que reina. As instituições serão, assim, mediadoras, numa sociedade em que os seres humanos têm sempre uma visão mais clara daquilo que falta nas relações humanas do que qual o modo de organizar-se para que nada falte351.

349 Idem, Ibidem, 227. 350 Idem, Ibidem, 231. 351 Idem, Ibidem, 231.

138 Para Paul Ricoeur, a igualdade está para a vida nas instituições, como a solicitude está para as relações interpessoais. Se é verdade que a solicitude possibilita ver o outro como um rosto, a igualdade permite ver o outro como um quem quer que seja, digno, portanto, de viver num plano ético:

L’égalité de quelque manière qu’on la module, est à la vie dans les institutions ce que la sollicitude est aux relations interpersonnelles. La sollicitude donne pour vis-à-vis au soi un autre qui est un visage […] L’égalité lui donne pour vis-à-vis un autre qui est chacun. En quoi le caractère distributif du «chacun» passe du plan grammatical, où nous l’avons rencontré dès la préface, au plan éthique. Par là, le sens de la justice ne retranche rien à la sollicitude; il la suppose, dans la mesure où elle tient les personnes pour irremplaçables. En revanche, la justice ajoute à la sollicitude, dans la mesure où le champ d’application de l’égalité est l’humanité entière352

A ética ricoeuriana, quanto a nós, segue na esteira da ética de MacIntyre. É, como já vimos, uma ética teleológica escorada em três pilares fundamentais: a vida boa, que diz respeito ao indivíduo; a solicitude, que perspectiva o indivíduo na sua relação com um tu, e as instituições justas, que colocam o sujeito em relação com uma comunidade mais alargada. Portanto, do nosso ponto de vista, a ética de Ricoeur estende o seu raio de acção, pois parte do indivíduo e da construção de um plano de vida para se alastrar às relações interpessoais, mas também institucionais. As virtudes, ou padrões de excelência, deixam de se relacionar apenas com a construção de um carácter, para passarem a fazer parte do mundo em que o sujeito se integra.

Assim, a ética de Ricoeur, tal como a de MacIntyre, traz fortes contributos tanto para a educação moral como para o desenvolvimento da espiritualidade humana. Ela entende o homem na sua dimensão individual e corporativa e prevê uma reflexão que tem por base a realização de planos de vida, como fins a alcançar. O homem tem uma finalidade: alcançar a felicidade e, deste modo, faz opções e sofre transformações, ou seja, cresce, enquanto ser humano, resultando daí um maior aprofundamento espiritual, que lhe permite viver uma vida boa na companhia dos que conhece mas também desejar a vida boa para os que desconhece.

O que acontece é que, enquanto as éticas formalistas exigem do homem determinados pré-requisitos (competências comunicativas e cognitivas), a ética defendida quer por MacIntyre, quer por Ricoeur, é fundada na relação que o sujeito

139 estabelece com o seu percurso de vida e na sua relação de afectividade com os demais, porque é disso que se fala quando se alude à solicitude e às instituições justas.

Quanto maior for a profundidade espiritual do ser humano, mais facilidade ele tem em se relacionar com a ideia da sua morte, uma vez que o mergulho no seu interior lhe facilita a aceitação do que há, em si, de finito e de infinito e, também, o entendimento da vida como ela realmente é, sem medo e sem fugas:

En effet, découvrir sa dimension de profondeur permet de prendre contact avec l’infini qui est en soi; ce caractère d’éternité humanise et rend possible la véritable communication avec autrui. Ce n’est pas l’extériorité qui diversifie les sujets, mais l’intériorité. Devenir soi-même, se réaliser, exige une connaissance de soi conduisant à l’unité de l’infini et du fini. L’existence se vit comme une réalité et non comme un rêve, et l’homme ne cherche ni consolation ni refuge: il vit.353