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O papel da espiritualidade no confronto com a morte

EDUCAR PARA A MORTE

5. O papel da espiritualidade no confronto com a morte

Como já dissemos no primeiro capítulo, o homem é um ser espiritual na sua essência, o único capaz de colocar interrogações acerca do sentido de si mesmo, da sua relação com os outros, acerca das suas potencialidades e limites, acerca do transcendente.

Hoje em dia, também já o dissemos, a sociedade pós-moderna parece viver aquilo que, por simpatia com Enrique Rojas, poderíamos chamar uma espiritualidade light485.

Na verdade, quando se vive preocupado com questões menores, experimentando uma vida vazia e fútil, dificilmente se poderá dedicar algum tempo a questões maiores como quem é o homem e/ou o que procura e que caminho deve seguir. A essência humana, ou, se quisermos, a sua condição espiritual, banaliza-se e dá lugar a uma espiritualidade baseada no individualismo e na permissividade, que vê os prazeres pessoais, quase sempre materiais e efémeros, como objectivo último a atingir:

482 Domingos, Manuel (2008): Experiências de Quase-Morte. Lisboa: Ésquilo Edições e Multimédia, Lda,

173.

483 Idem, Ibidem, 173. 484Idem, Ibidem, 12.

185

É uma sociedade, em certa medida, doente, da qual emerge o homem light, um sujeito que tem por bandeira uma tetralogia niilista: hedonismo-consumismo-permissividade-relativismo. Todos eles impregnados de materialismo. Um indivíduo assim parece-se muito com os denominados produtos light dos nossos dias: alimentação sem calorias e sem gorduras, cerveja sem álcool, açúcar sem glicose, tabaco sem nicotina, coca-cola sem cafeína e sem açúcar, manteiga sem gordura… um homem sem essência, sem conteúdo, entregue ao dinheiro, ao poder, ao êxito e ao prazer ilimitado e sem restrições.486

Saint Exupéry parece partilhar desta opinião ao afirmar que o único problema que existe é dar aos homens o seu significado espiritual:

Il n’y a qu’u problème, un seul de par le monde. Rendre aux hommes une signification spirituelle, des inquiétudes spirituelles. Faire pleuvoir sur eux quelque chose qui ressemble à un chant grégorien. […] On ne peut plus vivre de frigidaires, de politique, de bilans et de mots croisés, voyez vous!487

Com efeito, o homem necessita de ir mais além de si próprio e das contingências do mundo material em que vive. É necessário que descubra o vazio em que se deixou cair e dar o salto para dentro de si próprio e para a necessidade de se questionar enquanto ser espiritual, totalmente diferente de todos os outros à face da terra:

A construção de um reino espiritual neste mundo é tarefa prioritária […] pois todo o ser humano é capaz de se interrogar sobre o sentido da sua existência [e] viver segundo princípios éticos (…)488.

Como já dissemos, não é forçoso que a espiritualidade se funde na aceitação da divindade, embora assim aconteça em muitos casos. O importante é que, subjacente a essa espiritualidade, esteja não o individualismo e o relativismo, mas um conjunto de valores que possam conduzir a vida humana.

O problema, porém, reside no facto de vivermos num mundo cujas dinâmicas estão ancoradas num sistema económico, cujo aumento de capitais é o único móbil dos agentes sociais. Seríamos ingénuos se acreditássemos que o homem «materialista- consumista-individualista» não é um produto do sistema capitalista ocidental, com todos os prejuízos que tal acarreta para o estabelecimento de um conjunto de valores morais orientados para o bem comum e, consequentemente, para as vivências espirituais individuais e colectivas:

486Idem, Ibidem, 5.

487 Saint-Exupéry, Antoine (1956): Un sens à la Vie. S.L.: Éditions Gallimard, 225,226. 488 Pinto, José Lemos (2010): Se não foi Deus…quem foi? S.L. Chiado Editora, 173.

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As regras em que consiste o nosso código moral comum têm- se vindo progressivamente a reduzir e a tornar mais genéricas no seu carácter: do homem primitivo, que estava vinculado por um ritual a quase todas as actividades do seu quotidiano, limitado por inúmeros tabus, e que dificilmente pensaria em fazer coisas de um modo diferente dos seus semelhantes, a moralidade tem vindo cada vez mais a tornar-se apenas limites que circunscrevem a esfera dentro da qual o indivíduo se podia comportar como lhe aprouvera. A adopção de um código ético comum suficientemente abrangente para determinar um plano económico unitário significaria a total inversão desta tendência.489

Uma sociedade assim, tão virada para os problemas emergentes do seu quotidiano, repleto de mil e um afazeres e de tantas outras solicitações, não se dedica à reflexão. Até porque reflectir envolve, mais do que tempo, disponibilidade espiritual.

Nietszche, ainda no século XIX, já discorria sobre o ponto a que chegara a nossa sociedade, ao falar na morte de Deus490. Este filósofo refere-se à ideia da divindade e da religião, querendo, efectivamente, alertar-nos para o facto de este Deus morto ser uma construção da consciência humana, um reflexo dos nossos valores e desejos, ou seja a edificação de um ideal cristão que, em face da supremacia da razão, deixa de fazer sentido491. Este pensador percebe que a ausência de Deus na vida dos homens tem consequências perniciosas e, por isso, antevê a urgência de se reestruturar o sistema de valores, substituindo o anterior que era suportado pelas doutrinas do teísmo tradicional492.

É verdade que a maioria das pessoas continua a dizer-se crente, contudo a sua forma de estar e de pensar entra, frequentemente, em rota de colisão com os valores preconizados pelas diferentes religiões. Na sociedade actual, os efeitos da falta de fé, ou extrapolando um pouco as teorias de Nietszche, a negação dos valores religiosos, conduz à negação de muitos dos conceitos em que o mundo se estruturou ao longo de muitos séculos. Com efeito, sem um ponto de ancoragem firme para a vivência da espiritualidade, e mergulhados num clima materialista, assistimos à substituição da espiritualidade tradicional, assente em valores de fraternidade e de solidariedade, por um conjunto de comportamentos e atitudes, muitas vezes induzidas e conduzidas pelas

489 Hayec, Friedrich (2009): O Caminho para a Servidão. Lisboa: Edições 70, 87. 490

Nietzsche, Friedrich (2002): A Gaia Ciência. Curitiba: Hemus Editora, 134.

491 Howarth, Glennys e Leaman, Oliver (2004): Enciclopédia da Morte e da Arte de Morrer. Rio de

Mouro: Círculo de Leitores, 360.

187 modas493 e pelos meios de comunicação social, e que se caracterizam pela sua pouca consistência e efemeridade.

Assim, não é difícil perceber que, na ausência de vivências espirituais profundas e significativas, se torna difícil acolher a ideia de morte. A morte não tem lugar numa sociedade que vive obcecada com o aspecto físico, com o valor do dinheiro, com a fama fácil, com o valor das aparências. Uma sociedade em que tudo se compra, em que o próprio ser humano se transformou numa «mercadoria» descartável, enfim, uma sociedade utilitarista494, não tem maturidade conceptual para pensar a morte e para aceitá-la como parte estruturante da vida.

O homem moderno parece crer na ideia de que a morte só acontece aos outros. Ele prefere olhar para si próprio como se acreditasse na sua imortalidade e é essa vontade495 que conduz o seu espírito e que, não raras vezes, o cega.