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Últimas críticas ao conceito de liberdade da vontade

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 180-184)

A crítica à doutrina da liberdade da vontade

5.3 Últimas críticas ao conceito de liberdade da vontade

O percurso que aqui buscamos ordenar segundo três eixos _ o primado da vida instintiva sobre a consciência, a indicação das seduções na linguagem na ficção do Eu e em sua projeção sobre as “coisas”, a crítica à unidade e à causalidade da vontade _ permite a Nietzsche sustentar sua crítica à liberdade de vontade a partir de uma argumentação cada vez mais apurada. Esses eixos relacionam-se estreitamente à doutrina da vontade de poder, que abordaremos no próximo capítulo.

Em Aurora, ele questiona a “antiquíssima ilusão”, da qual nem mesmo Sócrates e Platão teriam conseguido emergir, segundo a qual o homem sabe o que quer, é livre e responsável, e pode, portanto, tornar responsável o outro. Parece-lhe um erro supor que

o conhecimento correto se acompanhe necessariamente da ação correta. Não há juízos racionais e universais que possam preceder e determinar a ação, pois o que se pode saber dela não basta jamais para fazê-la. As concepções da relação dos instintos com a consciência, examinadas no item 5.2.1, apontam-nos a impossibilidade de “um saber relativo à essência de um ato”, relacionando-se à ficção do Eu, tal como examinada no item 5.2.2. “A ponte do conhecimento ao ato não foi lançada nem uma vez até hoje” (A, 116).

No trecho da Genealogia da moral que abordamos também no item 5.2.2, vimos como Nietzsche remete a origem do conceito filosófico de liberdade da vontade à sedução da linguagem que desdobra agente e ação, propondo o primeiro como substrato livre e indiferente para ser e atuar desta ou daquela maneira, assim propiciando a imputação moral do mérito ou do mal feito (GM, I, 13).

No aforismo 19 de Além do bem e do mal examinado no item 5.2.3, onde Nietzsche procura mostrar a extrema multiplicidade das ordens e contra-ordens, obediências e resistências da qual deriva a aparente unidade da vontade, “a ilusão do livre arbítrio” é remontada ao “afeto de superioridade em relação àquele que tem de obedecer”; ainda, é a expressão “para o multiforme prazer do querente, que ordena e ao mesmo tempo se identifica como o executor da ordem _ que, como tal, goza também do triunfo sobre as resistências, mas pensa consigo que foi sua vontade que a superou” (ABM, 19).

Se o que chamamos de vontade assim se determina de forma tão múltipla e alheia á consciência, como pode o homem ter tanta certeza da correção moral do seu ato? Ao considerá-lo como tal por que assim lhe diz a sua consciência, ignora que seu próprio julgamento é determinado por seus impulsos, inclinações e aversões, podendo estar apenas acolhendo o que lhe foi ensinado desde a infância, ou entendendo como seu dever o que não é senão a sua condição de existência. A incondicionalidade do imperativo categórico revela antes um egoísmo cego, que sente o próprio juízo como uma lei universal. Nossas opiniões sobre o bom, o belo, o nobre, não podem ser demonstradas por nossas ações, pois toda ação é incognoscível: “As nossas opiniões, avaliações e tábuas de valores estão entre as mais poderosas alavancas dos nossos atos, mas em cada caso a lei de seu mecanismo é indemonstrável” (GC, 335).

Ademais, o valor da ação varia e mesmo se inverte ao longo da história: enquanto no “período pré-moral” da humanidade, anterior ao “conhece-te a ti mesmo”, o valor de

uma ação dependia das suas consequências, no período moral chega-se a um ponto em que é a origem da ação que determina seu valor. Embora esta “crença na origem” traduza um refinamento do olhar, uma interpretação estreita apodera-se dela, ao considerar a origem da ação como origem a partir de uma intenção, aí fazendo residir o seu valor. No limiar do período extra-moral, ao qual quer chegar a filosofia de Nietzsche, pode-se suspeitar de que o valor decisivo de uma ação está justamente naquilo que nela é não-intencional. A intenção _ consciente, portanto superficial _ é apenas sinal e sintoma _ um sinal que, por significar coisas demais, nada significa (ABM, 32).

O desenvolvimento dessas questões, portanto, propiciam a crítica ao conceito de liberdade da vontade nas obras da maturidade.

Em Além do bem e do mal, Nietzsche, apontando a auto-contradição inerente ao vaidoso conceito de causa sui, a ela remonta o anseio do livre arbítrio: “...o anseio de carregar a responsabilidade última pelas próprias ações, dela desobrigando Deus, mundo, ancestrais, acaso, sociedade, é nada menos que o de ser justamente esta causa

sui e, com uma temeridade própria do Barão de Münchausen, arrancar-se pelos cabelos

do pântano do nada em direção à existência!” Ao mesmo tempo, critica o conceito oposto, o de cativo arbítrio: à “rústica singeleza” do primeiro, contrapõe o “abuso de causa e efeito” do segundo. A coisificação de “causa” e “efeito”, que realizam, segundo Nietzsche, os “pesquisadores da natureza”, naturaliza o pensar; a “tacanhez mecanicista” é incapaz de perceber que causa e efeito não correspondem a laços causais que existiriam no em si _ representando, assim como sucessão, número, lei, liberdade, finalidade, etc, resultados da introdução do nosso mundo de signos nas coisas. A indicação deste “agir mitológico”, já examinado em itens anteriores, é utilizada por Nietzsche para criticar tanto o conceito de livre arbítrio como o seu oposto, porquanto ambos se baseiam em tomar como inerentes ao “em si” conceitos que representam ficções convencionais, para fins de designação, e não de explicação.57

Eis por que Nietzsche ressalta o caráter problemático da não liberdade da vontade para os dois lados em disputa, seja pela vaidade daqueles que defendem o livre arbítrio, seja pelo auto-desprezo dos que acreditam num arbítrio cativo: “uns não querem por

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Como faz notar Gemes (2009), assim como a noção de liberdade da vontade resulta em uma atitude passiva diante do mundo, a noção moderna de vontade não livre chega ao mesmo resultado, pois adota um pessimismo fatalista, o “fatalismo dos fracos de vontade”.

preço algum abandonar sua “responsabilidade,...o direito pessoal ao seu mérito; os outros, pelo contrário, não desejam se responsabilizar por nada, ser culpados de nada,..querem depositar o fardo de si mesmos em algum outro lugar” (ABM, 21).

No Crepúsculo dos ídolos, inserindo o “erro do livre arbítrio” como o quarto grande erro da razão, Nietzsche aponta seus laços com a psicologia do “tornar responsável”, com a vontade de julgar e punir. Trata-se do “mais famigerado artifício dos teólogos”, que, responsabilizando os homens, visam torná-los dependentes deles, e autorizar-se a impor-lhes castigos _ o que nos remete à figura do sacerdote ascético, ao mesmo tempo doente e médico do rebanho, da Genealogia da moral. “O vir-a-ser é despojado de sua inocência, quando se faz remontar este ou aquele modo de ser a intenções, a atos de responsabilidade: a doutrina da vontade foi essencialmente inventada com o objetivo da punição, isto é, de querer achar culpado” (CI, VI,7).

Considerar o homem “livre”, ressalta Nietzsche nessa mesma passagem, é algo que se faz para poder julgá-lo, puni-lo, culpá-lo enfim _ algo requerido pelo conceito de uma ordem moral do mundo, necessária ao cristianismo, “metafísica do carrasco”. A esse movimento que “continua a empestear a inocência do vir-a-ser”, Nietzsche contrapõe o movimento inverso, norteador de sua filosofia: “retirar novamente do mundo o conceito de culpa e o conceito de castigo, e deles purificar “a psicologia, a história, a natureza, as sanções e as instituições sociais”.

Portanto, reitera Nietzsche, “ninguém dá ao ser humano suas características _ nem Deus, nem a sociedade, nem seus pais e ancestrais. Tampouco ele próprio pode dá-las a si mesmo, apesar do contra-senso da noção kantiana de liberdade inteligível, talvez já presente em Platão. “A fatalidade de seu ser não pode ser destrinchada de tudo o que é, foi e será. Ele não é consequência de uma intenção, uma vontade, uma finalidade próprias,...é absurdo empurrar o seu ser para uma finalidade qualquer”. Apenas compreendendo que “o modo de ser não pode ser remontado a uma causa prima”, que ninguém pode ser feito responsável do que é, pode-se estabelecer novamente a inocência do devir. (CI, VI, 8). Veremos, no oitavo capítulo, como se torna necessário, para o estabelecimento dessa inocência, o pensamento do eterno retorno.

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 180-184)

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