• Nenhum resultado encontrado

Origem e finalidade x vontade de poder

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 187-190)

Culpa e castigo

6.2 Origem e finalidade x vontade de poder

Nem a justiça, nem a consciência moral nem o castigo, segundo Nietzsche, podem ser pensados como possuindo desde o início uma certa finalidade que se revelaria ao termo do processo. Nós lhes atribuímos tal finalidade a partir da sua presente utilidade social, que procuramos justificar a partir de uma origem que a dignifique. A origem, porém, é amorfa, confusa, obscura, obscura: posto que não podemos reconstituí-la, nada se pode elucidar a partir dela.58

Daí a crítica à ideia, profundamente arraigada em nosso pensamento, segundo a qual toma-se o fim como já embutido de alguma forma na origem. Essa crítica, delineada em

Aurora, encontra sua mais clara formulação no parágrafo 12 da Segunda Dissertação da Genealogia da moral, onde Nietzsche faz intervir a doutrina da vontade de poder para

oferecer-nos uma concepção bem distinta, característica de sua análise genealógica. Demonstrada a suprema utilidade de uma coisa, nada se fez ainda para explicar sua origem, diz Nietzsche em Aurora; a utilidade não permite tornar compreensível a necessidade de existência (A, 37). Um investigador imparcial que estude a origem do olho só pode concluir que a visão não foi o propósito na sua gênese, mas apareceu quando o acaso havia juntado o aparelho (A, 122). Ora, se a utilidade como fim é discutível, quer se trate do corpo biológico ou do social, também o é a origem como causa suprema, buscada como “algo de significação inestimável para o julgamento e a ação”. Pelo contrário, com a penetração da origem, aumenta a insignificância da origem

58 Segundo Foucault (1981), a pesquisa da origem tem como postulados a essência como identidade

primeira, a perfeição anterior ao tempo histórico, a verdade; diferentemente, a investigação genealógica, remetendo-se a começos inumeráveis, mantém o que se passou na dispersão que lhe é própria.

(A, 44): enquanto antigamente buscava-se a grandeza do homem na sua suposta gênese divina, agora encontramos o macaco à porta.

No denso parágrafo 12 da Segunda Dissertação da Genealogia, essa questão é retomada : “De há muito se acreditava perceber, no fim demonstrável, na utilidade de uma coisa.... também a razão de sua gênese, o olho tendo sido feito para ver e a mão para pegar”. Dessa forma, porém, contraria-se “o mais importante princípio da ciência histórica”, qual seja, “...o de que a causa da gênese de uma coisa e a sua utilidade final, a sua efetiva utilização e inserção em um sistema de finalidades, diferem toto coelo”. Através da doutrina da vontade de poder, que percorre todo o parágrafo, Nietzsche aborda agora em novos termos a questão delineada em Aurora.

Ao invés de procurar a finalidade na origem, ele nos diz, trata-se de perceber que todo existente é sempre reinterpretado para novos fins, para uma nova utilidade; todo acontecimento é um subjugar e um assenhorear-se, impondo novas interpretações e ajustes, que obliteram a finalidade e o sentido atribuídos em interpretações anteriores. Tal concepção vale para a fisiologia, o direito, a política, a arte, a religião: quando se compreende a utilidade de uma determinada formação em qualquer um desses campos, nada se compreendeu acerca de sua gênese. Logo a seguir, a vontade de poder é evocada para permitir-nos compreender estas sucessivas subjugações e interpretações, em seu caráter eminentemente anti-teleológico: “Todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função”.

A ideia de uma vontade de poder, operando em conflitos de força que implicam tanto o mando como a obediência, determinando a interpretação prevalente de um processo, surge, como vimos, em Assim falava Zaratustra. Induzindo o vivente “a obedecer e a mandar, e, ao mandar, praticar ainda a obediência”, inclusive ao mandar em si mesmo, a vontade de poder não poderia operar se fosse apenas mando, sem a contrapartida da obediência, assim como das resistências e pressões que se produzem em seus embates; dessa maneira, produzem-se sucessivamente resultados diferentes, nenhum dos quais é o ponto de chegada, nenhum dos quais realiza um fim anteriormente almejado. Esses mesmos embates se desenrolam no indivíduo: apenas “o sintético conceito de “eu”, como vimos no item 5.2.3, faz o homem supor, ao querer, que comanda dentro de si algo que obedece _ e assim acreditar na liberdade da vontade _ quando somos ao mesmo tempo a parte comandante e a obediente (ABM, 19).

No parágrafo 12 da Genealogia da moral, Nietzsche recorre à vontade de poder para criticar a idéia de progresso: “... o “desenvolvimento de uma coisa, um uso, um órgão, é tudo menos o seu progressus em direção a uma meta, menos ainda um progressus lógico e rápido, obtido com um dispêndio mínimo de forças”, e sim uma sucessão de subjugamentos, compreendendo as resistências encontradas. O “verdadeiro progressus”, portanto, sempre aparece “em forma e via de vontade de maior poder”, imposto à custa de inúmeros poderes menores.

Nietzsche retoma nesse parágrafo a oposição, já presente na Primeira Dissertação, entre a moral nobre, essencialmente ativa, e a reatividade da moral do ressentimento. Aqui, reprovando aqueles que privilegiam na fisiologia a noção de adaptação, em detrimento da atividade, volta a referir-se à oposição ativo x reativo: “O reconhecimento da vontade de poder como essência da vida” exige também que se admita a “primazia fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações, direções”, cuja ação precede necessariamente qualquer forma de adaptação ou reação. Essas forças ativas e criadoras serão invocadas mais uma vez, como também veremos mais adiante, a propósito da ação violenta pela qual se constitui o Estado.59

Pode-se aplicar com fecundidade a doutrina da vontade de poder no desenvolvimento dos três eixos pelos quais Nietzsche apura sua crítica à liberdade da vontade, considerados no capítulo anterior. A partir da sucessão de subjugamentos e resistências dos quanta de poder, podemos abordar os embates e reconfigurações no jogo dos impulsos, nas seduções da linguagem, na ficção do Eu e da vontade como una e causal. Por conseguinte, em numerosos aforismos sobre esses temas, a vontade de poder pode ser invocada para a sua melhor compreensão, mesmo quando Nietzsche não se refere implicitamente a ela.

59

Deleuze [19-] distingue, baseado num fragmento póstumo de Nietzsche, os conceitos de força e vontade de poder, fazendo da segunda um complemento da primeira: a força é o que pode e a vontade de poder é o que quer. A partir daí, atribui grande importância à oposição entre forças ativas e reativas, relacionando-as com a forma afirmativa ou negativa da vontade de poder, para utilizar essas categorias em sua interpretação do niilismo, da moral do ressentimento e do ideal ascético. Diferentemente, parece a Müller-Lauter (1997) que Deleuze levou excessivamente a sério uma distinção sem maior importância no conjunto do pensamento de Nietzsche. Aqui, basta-nos fazer notar a existência da controvérsia. Para os fins deste trabalho, referimo-nos à oposição forças ativa x reativas nos termos pelos quais Nietzsche a apresenta em sua obra publicada, citando-o textualmente quando necessário, sem discutir seu valor como chave interpretativa para outras ideias e conceitos.

Veremos, mais adiante, como a distinção essencial entre origem e finalidade ou utilidade, essencial à doutrina da vontade de poder, será retomada a propósito do direito, da justiça e do castigo.

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 187-190)

Documentos relacionados