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Ainda devotos

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 142-144)

Por uma gaia ciência

4.4 Ainda devotos

No Livro V da Gaia ciência, a ela acrescentado depois da publicação de Assim

falava Zaratustra, Nietzsche prossegue interrogando ativamente a vontade de verdade

enquanto aspiração da moral.

No aforismo provocativamente intitulado Em que medida também nós ainda somos

devotos, Nietzsche traz a questão do enraizamento de toda ciência em uma fé. A ciência

não existe sem pressupostos; embora desvalorize as convicções, para fundá-la é preciso também uma convicção. Não se trata de uma convicção qualquer, e sim de uma “tão absoluta” que sacrifica todas as outras: uma “absoluta vontade de verdade”. Mas em que consiste tal vontade de verdade? Será vontade de não se deixar enganar, ou de não enganar a si mesmo? No primeiro caso, a ciência não seria senão uma prolongada esperteza; contudo, ainda há que considerar se deixar-se enganar é prejudicial, quando tudo nos indica, pelo contrário, o caráter inútil e mesmo perigoso da vontade de

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É conhecida a controvérsia entre aqueles que, como Heidegger, e também outros autores, como Weischedel, Jaspers, Schulz, entendem a vontade de poder como um fundante metafísico, e aqueles, como Müller-Lauter, Deleuze, Haar, também dentre outros, se opõem a esta interpretação. Para Nietzsche, “toda unidade só é unidade como organização e concerto”, e apenas assim, segundo Müller.Lauter (1997), podemos pensar o “um” da vontade de poder: ela é a “multiplicidade das forças em combate umas com as outras”, diz, concordando nesse ponto com Deleuze, , segundo o qual ‘toda força está em relação essencial com outra força.Em cada organismo, seja biológico, químico, social, etc, encontra-se um aglomerado de vontades prossegue Müller-Lauter, nas quais se encontra como única qualidade a vontade de poder, cujas múltiplas gradações constituem o mundo.Tendo em vista o ininterrupto aumento e diminuição das aglomerações de quanta de poder, só se pode falar em unidades continuamente mutáveis, não da unidade, como pretende a interpretação heideggeriana. Haar (1993) também sustenta que a vontade de poder não é uma identidade, e sim remete a identidades quebradas e dispersas.

verdade. Ainda, de onde retiraria a ciência a convicção incondicional que a sustenta, segundo a qual a verdade é mais importante do que qualquer outra convicção? No segundo caso, se o que está em causa é a vontade de não enganar, nem sequer a si mesmo, estamos então no terreno da moral. “Assim a questão “Por que ciência?” leva de volta ao problema moral: para que moral, quando vida, natureza e história são “imorais?” O homem que leva a fé na ciência às suas conseqüências acaba necessariamente por afirmar um outro mundo, distinto da vida, da natureza e da história _ necessita negá-las, pois, assim negando este mundo. “A nossa fé na ciência repousa ainda numa crença metafísica”_ e assim, conclui Nietzsche, eis-nos de volta a Platão (GC, 344).

No Livro I da Gaia ciência, Nietzsche delineava um vasto corpo de questões que a ciência nos permitiria estudar no campo da moral (GC, 7). Agora, avaliando os resultados do conhecimento assim obtidos até o momento, diz encontrar apenas esforços relativos à gênese dos sentimentos e valorações morais, da parte de historiadores que se acham, sem sabê-lo, sob as ordens de uma determinada moral52. No máximo, chegam a

criticar as opiniões dos homens sobre alguma moral, ou mesmo sobre toda moral, supondo com isso haver criticado a moral mesma. Dessa forma, prosseguem moralizando, também eles: mesmo ao perceber que a moral pode ter nascido de um erro, não chegam a tocar no problema de seu valor. Pois bem, é preciso pôr em questão o valor da moral. “Este é justamente o nosso trabalho!” Tal interrogação, novamente destacada no Prólogo da Genealogia, é intrínseca à tarefa nietzschiana. O filósofo constata, pois, que toda investigação da moral a partir das premissas e métodos da ciência permanece no interior da moral, de onde não se pode indagar do seu valor (GC, 345).

Ademais, a investigação científica costuma ceder, ela própria, à tendência que faz com que a necessidade de conhecer coincida com a necessidade do conhecido, ou seja, à vontade de descobrir em tudo o que é estranho algo que não nos inquiete. Essa questão será retomada por Nietzsche no Crepúsculo dos ídolos como explicação psicológica para um dos “quatro grandes erros da razão”, qual seja, o erro das causas imaginárias, que nos habitua a uma interpretação causal que inibe e até exclui uma investigação das causas: o por quê buscado deve fornecer uma certa espécie de causa que tranqüilize e

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Observe-se que Paul Rée, enfaticamente elogiado por Nietzsche em Humano, demasiadamente

humano, é aqui implicitamente incluído entre esses historiadores _ e o será explicitamente no Prólogo da

alivie, numa preferência pelas explicações habituais que exclui o novo e o estranho (CI, VI, 4 e 5).

Na Gaia ciência, essa espécie de vontade de verdade é relacionada à necessidade de que os objetos conhecidos correspondam aos desejos dos pesquisadores: é o caso de Herbert Spencer ao traçar um horizonte onde egoísmo e altruísmo enfim se conciliariam, ou o dos cientistas naturais, ao acreditar num mundo da verdade que tenha como equivalência o pensamento humano, definitivamente acessível à nossa razão. Daí, Nietzsche faz uma severa crítica ao materialismo mecanicista, por considerar a mecânica como a doutrina das leis primeiras e últimas, sobre a qual a existência se deve construir: “Uma interpretação do mundo científica, tal como a entendemos, poderia ser uma das mais estúpidas, isto é, das mais pobres de sentido de todas as interpretações possíveis do mundo.” E pouco depois: “Um mundo mecânico seria um mundo essencialmente desprovido de sentido” (GC, 373).

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 142-144)

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