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Novas reflexões sobre o conhecimento

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 124-129)

Da sabedoria trágica à filosofia histórica

3.5 Novas reflexões sobre o conhecimento

Humano, demasiadamente humano representa o marco de ruptura com a trajetória

até então seguida por Nietzsche, constituindo, segundo afirma no prólogo, a grande liberação que o levará a transformar-se num espírito livre, assim reencontrando a tarefa da qual se extraviara, e à qual acreditara mesmo ter perdido o direito.

O significado desta “grande liberação”, tal como se refere a ela nos prólogos de

Humano, demasiadamente humano I e II, será abordado mais detidamente no sétimo

capítulo desse trabalho. Contudo, comecemos por examinar seus efeitos no teor mesmo do livro que, segundo Nietzsche, a representa. A seguir, abordaremos certas retificações em seu pensamento que farão da filosofia científica ou histórica uma gaia ciência.

3.5.1 Uma nova dieta

Como vimos, já no Nascimento da tragédia, Nietzsche assinala a operação moralizadora do otimismo dialético, desde a “morte da tragédia” até a “cultura teórica” dos nossos dias, marcando também sua presença no ideário político da “dignidade do trabalho”. Contudo, é em Humano, demasiadamente humano que apresenta pela primeira vez o projeto de uma investigação dos sentimentos morais, até então escamoteada pela filosofia, contando com o rigor e o método da ciência para empreendê-lo.46

Por que teria se voltado para esta direção, ou seja, por que o seu interesse, a partir das rupturas anteriores, tomou especificamente a ciência por objeto? Nietzsche nos dirá, em Ecce homo, ao deplorar os anos vividos em Basileia: “Arrastar-me com grande minúcia e péssima vista entre os métricos antigos _ a isto havia chegado!” Sentia-se

46

Vale lembrar que Nietzsche, em 1873, ao preparar seu texto sobre os pré-socráticos, retomou um programa de estudos das ciências naturais esboçado e abandonado em 68, quando de sua convocação para a cátedra de Basiléia. Desde então, iniciou-se um período de leituras sobre química, física, biologia, etc, que se intensifica entre 1875 e 1882, coincidindo, portanto, com o período intermediário de sua obra (Janz, 1984)

“magro e esquálido”, a alimentação de seu espírito se interrompera. “Uma sede abrasadora me tomou: a partir de então ocupei-me apenas de fisiologia, medicina e ciências da natureza” (EH, Humano, demasiadamente humano, 3). Mesmo levando em conta o exagero da afirmação, esse trecho nos indica a ânsia de “realidades” como um dos móveis de seu direcionamento às ciências naturais.

Certamente, as novas e amplas possibilidades de abertas pela ciência, a importância dos debates científicos e sua repercussão filosófica constituíam razão suficiente para que Nietzsche procurasse inteirar-se do assunto. É lícito supor, contudo, que, ao aproximar-se da ciência, sobretudo das ciências naturais, aí buscando sustentação para o questionamento da metafísica, um dos pontos importantes de tal questionamento consistia em recuperar na filosofia a dimensão do corpo, negada desde Platão _ essa “deplorável idéia fixa dos sentidos” tão completamente elidida pelo idealismo, “embora insolente o bastante para mostrar-se real” (CI, III, 1). As metáforas que utiliza _ sede, alimentação, esqualidez _ apontam nesse sentido. No início da sua doença, afastado temporariamente da universidade quando da elaboração do livro, Nietzsche experimentou, segundo nos conta, as consequências de uma dieta idealista, inadequada sob todos os aspectos, prescrita pelo pessimismo romântico de Wagner e Schopenhauer. A filosofia como “má interpretação do corpo” (GC, Prólogo, 2) expressa uma dicotomia entre homem e natureza da qual resultam consequências nefastas, como por exemplo a “fábula da liberdade inteligível”, que opõe natureza e liberdade, colocando a última acima ou além da primeira. O empreendimento metafísico de fundar a liberdade num reino além da natureza e superior a ela será, como veremos mais adiante, um dos objetos de questionamento mais importantes do livro. Ademais, a consideração do corpo permite levar em conta a historicidade do próprio pensamento, ao longo da evolução biológica que faz do homem o que hoje é.

A adoção de um novo paradigma científico por Nietzsche no chamado período intermediário pode ser posta em relação com esta consideração da insolente realidade do corpo, fazendo parte do projeto nietzscheano de retradução do homem à natureza. Nas descobertas inovadoras e audazes das ciências naturais, se oferece a ele uma via possível para tal: ali onde o homem já não se distingue do animal, onde a própria distinção entre orgânico e inorgânico torna-se problemática, onde “se dissolve em movimento tudo o que tem natureza de coisa” (HDH, 19), há inegavelmente uma

dimensão de realidade que sua “dieta” não lhe oferecera até então, assim como um método mais rigoroso e exigente para abordá-la47.

3.5.2 Ciência x metafísica

Vejamos algumas das novas posições assumidas por Nietzsche em Humano,

demasiadamente humano.

Aqui já não parece falar “o discípulo de um deus desconhecido”, como em O

Nascimento da tragédia. A sabedoria trágica aparentemente sai de cena para dar lugar a

um modo de conhecer mais frio, metódico e distante, que Nietzsche pretende aplicar à “história dos sentimentos morais”, ultrapassando o que mais tarde denominará de pessimismo romântico. Busca-se o resfriamento de uma exaltação febril: a frieza e o ceticismo proporcionados pelo espírito da ciência devem agir contra a superexcitação de sentimentos provocada pelo cristianismo, pela filosofia, pela música (HDH, 244). Algumas doenças, diz, necessitam de compressas de gelo: a necessidade de um ar frio e cortante apresenta-se aqui como essencial aos “homens mais espirituais de uma época”, dentre os quais, como de costume, Nietzsche se inclui (HDH, 38). Tendo antes apresentado a arte como “a tarefa suprema e propriamente metafísica dessa vida”, agora parece manter certa reserva em direção a ela; tendo criticado então a cultura teórica por sua avidez de saber, passa a depositar na ciência as esperanças para o futuro da humanidade.

A ciência é convocada para a sustentação de uma posição antimetafísica. Para tal, Nietzsche defende “uma filosofia histórica que não se pode mais distinguir das ciências naturais” (HDH, 1). A crença em fatos eternos e verdades absolutas remetem apenas a suposições baseadas na paixão e no erro. Por falta de sentido histórico, não se admite o

47 Cabe lembrar que o materialismo filosófico empreendera a seu modo uma abordagem das relações

entre o físico e o psíquico. Os ideólogos, na esteira do sensismo de Condillac, julgavam, como Cabanis, que a fisiologia poderia explicar toda vida consciente, sendo o sistema cerebral o órgão do pensamento e da vontade; ou como Destutt de Tracy, que a explicação última do conhecimento seria dada pela fisiologia. Assim também pensavam filósofos materialistas contemporâneos de Nietzsche, como Vogt, e Buchner (Reale, 1990). O próprio Comte considera necessária a raiz das leis do espírito na estrutura anátomo-fisiológica do homem; seu projeto de uma sociologia científica, parte da consideração dos fenômenos sociais como naturais, sujeitos às leis da natureza e modificáveis dentro dos limites de suas regras (Rovighi,1999).Contudo, a abordagem dos fenômenos psíquicos e morais pelo método das ciências naturais assim realizada acaba por estabelecer inadequadamente uma relação direta e linear entre o biológico e o psíquico.

devir: tomando “a mais recente configuração do homem como forma fixa e eterna”, não se percebe que ele veio a ser, como também veio a ser sua própria faculdade de cognição. A consideração da historicidade do homem estende-se, pois, ao seu próprio pensamento, pelo qual, ilusoriamente, julga apreender as “verdades eternas” que inventou.48

Ora, justamente para que possa indicar tais erros, a razão deve compreender que sua própria origem neles se ancora. Nietzsche mantém em linhas gerais idéias que já expressara em Verdade e mentira no sentido extra-moral, reiterando-as em toda sua obra: o erro das crenças na base da linguagem, da lógica e da matemática, da própria noção de “coisa”, que se encontram na origem da razão, como necessidades impostas pela conservação do indivíduo e da espécie.

Como combater essas falsas crenças através do conhecimento científico, cuja edificação só se pôde fazer a partir delas? Seremos sempre os coloristas da pintura do vir a ser, que fazemos surgir ao introduzir nas coisas as “errôneas concepções fundamentais do nosso intelecto”. A ciência mais rigorosa só pode libertar-nos do mundo da representação em pequena medida; contudo, “pode...iluminar a história da gênese desse mundo como representação” (HDH, 16). Descrendo da consistência dos alicerces do nosso “andaime conceitual”, ela deve prosseguir e aprimorar, todavia, a construção iniciada.

O enfático elogio à ciência vem ao lado de uma problematização do papel da arte: qual lugar lhe resta, uma vez extinta a finalidade metafísica pressuposta em seus objetos (HDH, 150)? O sentimento religioso expulso pelo Iluminismo lança-se nela; contudo, o homem artístico é agora continuado pelo homem científico (HDH, 223). Numa imagem que lembra a lei dos três estágios de Comte, Nietzsche dirá que a vida de um homem de hoje, ao começar pela religião, chegando à metafísica, depois à arte, e finalmente à ciência, recapitula um trabalho que ocupou a humanidade durante milênios (HDH, 272). Uma vez extintas as crenças religiosas e metafísicas, o que pode sustentar as grandes construções da humanidade? Nietzsche faz notar o efeito corrosivo que pode advir do avanço crescente do conhecimento, conforme fizera, como vimos, na Segunda

Extemporânea; cumpre, porém, não recuar diante desse risco. Por conseguinte, há uma

48 A propósito da influência recebida por Nietzsche da leitura kantiana de Lange, veja-se Janz (1984),

tensão, cuja percepção parece-nos permear seu pensamento, entre o muito que se pode esperar da ciência, e o pouco que se acaba obtendo dela, sempre que nos esquecemos da crítica aos seus próprios postulados: eis por quê, face ao “otimismo da lógica”, é preciso sempre convocar a “grande suspeita” .

Coloca-se, pois, a questão, sempre levada em conta por Nietzsche, do valor da ciência para a cultura. Enquanto na religião, na arte, na metafísica, os impulsos do homem levam-no a buscar o prazeroso e o útil, e a afastar-se do doloroso e do nocivo, o conhecimento científico é buscado independentemente das vantagens que possa trazer; agora, o socratismo é censurado por Nietzsche pelo vínculo que estabelece entre saber e utilidade. A ciência, que imita a natureza em conceitos, também o faz em sua desconsideração pelos fins últimos: tanto no caso de uma como outra, a vantagem e o bem estar dos homens podem produzir-se ocasionalmente, mas não a título de um fim (HDH, 38). Contudo, sem se deixar comprometer pelo imediatismo das finalidades utilitárias, o conhecimento deve favorece o engrandecimento do homem.

Esse engrandecimento deve desvincular-se das noções pomposas com as quais até então a humanidade julgava afirmá-lo: uma origem superior, uma finalidade divina. Negando qualquer harmonia preestabelecida entre o progresso da verdade e o bem da humanidade, Nietzsche, entretanto, considera possível criá-la, ao propor a decisão por uma nova cultura, apoiados naquilo que a ciência nos pode trazer: no lugar das velhas crenças, é ela própria que poderá _ tendo a dúvida como aliada _ justificar as maiores construções humanas (HDH, 22).

Citamos textualmente alguns trechos a este respeito que nos parecem característicos do estilo e das idéias de Nietzsche neste momento: “Os homens podem conscientemente decidir se desenvolver rumo a uma nova cultura, ao passo que antes se desenvolviam inconsciente e acidentalmente: hoje podem criar condições melhores para a procriação dos indivíduos, sua alimentação, sua educação, sua instrução, podem economicamente gerir a terra como um todo”(HDH, 24). “Os próprios homens devem estabelecer para si objetivos ecumênicos, que abranjam a terra inteira”. À ciência cumpre oferecer um conhecimento das condições da cultura a partir do qual o homem encontrará critérios para o desenvolvimento conscientemente escolhido, resgatando-o da inconsciência e do acidental (HDH, 25). Embora o projeto de “um governo global consciente” seja aqui uma formulação um tanto canhestra, a ideia de dar um sentido àquilo que é puro acaso

ou acidente é axial no pensamento nietzscheano, sendo claramente afirmada em Assim

falava Zaratustra.

A isso se relaciona uma aposta de Nietzsche: propiciando a investigação da moralidade, o conhecimento permite problematizar a fixidez dos valores morais que aprisionam e culpabilizam o homem; leva-nos a reencontrar a inocência, restituindo-nos à natureza pela compreensão de que tudo é necessidade. A partir daí, pode-se sustentar a “doutrina da total irresponsabilidade” do homem por si mesmo e por suas ações, essencial à filosofia trágica cujo projeto, apesar das retificações em seu percurso, Nietzsche não deixa de perseguir. Nesta perspectiva, a arte será mais tarde reconvocada _ como já se pode ver claramente na Gaia ciência _ como essencial- a um conhecimento criador.

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 124-129)

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