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A concepção nietzscheana de vontade livre

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 156-160)

Em nossa introdução, destacamos a coexistência, na filosofia de Nietzsche, de uma crítica radical ao conceito de liberdade da vontade tal como se apresenta na tradição filosófica, e a afirmação de uma vontade livre.

A crítica ao conceito de liberdade da vontade é feita em significativas passagens da obra de Nietzsche, que examinaremos nesta terceira parte. Contudo, além dos trechos em que é claramente expressa, encontra-se implícita em seu empreendimento filosófico como um todo, constituindo, a nosso ver, parte essencial do mesmo.

Por outro lado, a afirmação da vontade livre é necessária na busca de um sentido para o homem que se possa opor ao ideal ascético. Uma vontade de nada é ainda uma vontade, e produz de todo modo um sentido, frisa Nietzsche na abertura e na conclusão da Terceira Dissertação da Genealogia da moral; deve insurgir-se contra ela uma outra, e mais elevada, capaz de criar novos sentidos e valores, desvinculando o sofrimento e o absurdo da esfera da vingança e do ressentimento, para incluí-los no amor do necessário.

Tanto a crítica ao conceito de liberdade da vontade quanto a afirmação de uma vontade livre, que nos parecem constituir um duplo movimento do pensamento nietzschiano, articulam-se estreitamente às questões abordadas na primeira e na segunda partes deste trabalho. Na primeira parte, examinamos importantes marcos da construção do conceito de vontade e da doutrina do livre arbítrio ao longo da história da filosofia. Na segunda, procuramos mostrar, no pensamento de Nietzsche, a importância tanto da crítica à vontade de verdade que se encontra no âmago do ideal ascético, movida pelas valorações de uma moral do ressentimento, quanto a busca de uma sabedoria trágica que se possa opor a ele.

Se examinarmos as linhas gerais desse percurso na obra de Nietzsche, pode-se dizer que a noção mesma de sabedoria trágica, ainda ao pretender-se inscrita na linhagem de

Kant e Schopenhauer no Nascimento da tragédia, exigia e anunciava já desde então uma concepção da vontade que não era aquela desses filósofos. Contudo, será apenas em Humano, demasiadamente humano que Nietzsche examinará explicitamente o conceito de liberdade da vontade.

Nesse livro, Nietzsche, como vimos, solicita a ciência para uma problematização da moralidade. À luz dos seus aportes, que nos permitem incluir entre as superstições do homem certas pomposas concepções metafísicas, pode ressurgir a observação moral. Na perspectiva da necessidade que determina nosso caráter e nossas ações, o filósofo enuncia sua crítica à liberdade da vontade, segundo a “doutrina da total irresponsabilidade”: “Ninguém é responsável por suas ações, ninguém responde por seu ser” (HDH, 39).

É esta a posição sustentada no final de sua obra, no Crepúsculo dos ídolos: “Ninguém é responsável pelo fato de existir, por ser assim ou assado, por se achar nessas circunstâncias, nesse ambiente. A fatalidade de seu ser não pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e será” (CI, VI, 8). Contudo, ao longo de seu percurso, a crítica amadurece e se refina, à medida em que Nietzsche desenvolve aspectos importantes do seu pensamento.

Em Aurora, são menos numerosas e significativas as menções ao problema da liberdade da vontade; na Gaia ciência, encontram-se praticamente ausentes. Contudo, mesmo quando Nietzsche não se refere expressamente a essa questão, forja recursos que o ajudam a enfrentá-la. Em Aurora, as reflexões sobre a moralidade do costume iniciam a importante temática da gênese da consciência moral, da culpa e do castigo, que será retomada na Genealogia da moral. O exame da ordenação dos impulsos, sua relações entre si e seu predomínio na relação com a consciência amadurecem a reflexão sobre o caráter supérfluo e acessório desta última, que será identificada com a operação gregário da linguagem no livro V da Gaia ciência. Simultaneamente, inicia-se a crítica à noção da vontade como una e causal. Ainda, em ambos os livros, o questionamento dos propósitos e dos fins como antropomorfismos, a afirmação de ausência de leis e de ordem no universo, já examinados na segunda parte deste trabalho, problematizam mais profundamente a questão de uma significação ética da existência, que acaba por remeter-nos a um mundo inteligível ao qual seria referida a ação do sujeito. Cada vez mais, por conseguinte, questiona-se a imputação de juízos morais propiciada pelos conceitos de liberdade da vontade e responsabilidade.

Sendo a operação gregária da linguagem identificada com o caráter supérfluo da consciência no livro V da Gaia ciência, como dissemos acima, a “ficção do Eu” pode ser demonstrada como tal através do exame da estrutura lógico-gramatical que o coloca em primeiro plano, assim como a atribuição gramatical de uma autoria ao sujeito com relação à ação expressa no predicado acarreta sua responsabilização; tal análise é empreendida em Além do bem e do mal e na Genealogia da moral. A ela relaciona-se estreitamente a concepção do sujeito uno e causal do qual emanaria a vontade, posta em relação com os “preconceitos dos filósofos” em Além do bem e do mal. Examinaremos esses diversos aspectos no quinto capítulo desse trabalho.

Entrementes, a vontade livre no sentido nietzscheano desenvolve-se a partir da idéia de um amor de si, em oposição à moral altruísta, que não se pode confundir com o enamoramento pela própria imagem, com o egoísmo vulgar, ou com a busca de lucros ou vantagens. A “grande saúde” distingue-se de todo apego à preservação da segurança, do conforto ou do bem estar. Da mesma forma, o “nobre amor de si mesmo”, que propicia a dádiva, pretende-se bem diferente de um estéril narcisismo.

Nesse amor de si, é central a ideia de que o indivíduo se dá sua própria lei a partir de um ideal que erige para si mesmo, pela coragem da própria originalidade e do próprio gosto. Já na Terceira Extemporânea, Schopenhauer como educador, diz o jovem Nietzsche: “Temos de assumir a responsabilidade de nossa existência perante nós mesmos; queremos, por conseguinte, ser também os verdadeiros pilotos desta existência, sem permitir que se assemelhe a um acaso inconsciente”. Essa exigência permeia sua obra, ressurgindo, dentre outras passagens, na pergunta de Zaratustra: “Você pode dar a você mesmo o seu mal e o seu bem, e suspender a sua vontade por cima de si como uma lei?” Tal perspectiva não comporta qualquer complacência para consigo mesmo, e sim uma rigorosa ascese, exigindo uma interpretação apurada de si mesmo e do próprio gosto, de tal modo que, segundo Nietzsche, sua doutrina da saúde “pode ser recomendada como uma disciplina da vontade” (HDH II, Prólogo, 2).

A ideia de uma auto-legislação não se isola nem se exime da concepção de uma forma mais nobre de laço social, para o qual Nietzsche invoca a companhia imaginária dos espíritos livres. Parece-nos sempre presente na elaboração da filosofia nietzscheana essa decisão quanto a uma direção a seguir, diversa daquela que nos foi imposta até agora; esse indicativo de algo em que nos devemos tornar, no ato mesmo pelo qual nos

tornamos o que somos; essa superação de si, numa singular ascese, voltada não para a anulação da vontade, mas para uma forma singular de auto-domínio em que sua potência se efetiva.

Por outro lado, a socialização do homem, operada através da moralidade do costume, comporta algo de tirânico, estúpido, cruel, de que Nietzsche encontra ressaibos no imperativo categórico kantiano. Nem mesmo a relação com a própria tarefa é destituída de uma certa crueldade: nossa tarefa é um tirano dentro de nós, que “exerce uma terrível represália a cada tentativa que fazemos de evitá-lo ou de dele escapar” (HDH II,

Prólogo, 4). Ademais, o “indivíduo soberano”, no qual se consuma a auto-supressão da

moral, é o fruto e a razão de ser da crueldade da moralidade de costume. Não se podendo extirpar esse elemento cruel das formas de associação entre os homens, nem da relação do homem consigo, que espécie de cultivo de si e de cultura permitiria transmutá-lo?

A vontade livre é característica essencial do homem valorizado e desejado por Nietzsche, quer se trate do espírito livre, do filósofo do futuro ou do indivíduo soberano. Contudo, não se trata da vontade livre e causal da tradição filosófica, não guardando relação com nenhuma espécie de noumenon ou liberdade inteligível; trata-se antes do produto das configurações da vontade de poder na vida pulsional, que não se deixam apreender nem dominar pela consciência. À vontade assim concebida, nos tipos de homens mais elevados, cumpre realizar a transvaloração de todos os valores, após a qual poderia surgir o além-do-homem.

Para que possa levar o necessitarismo do seu pensamento até as últimas conseqüências, sem desistir da criação de um sentido para o homem, Nietzsche deve articular o projeto do além-do-homem com a afirmação do eterno retorno, apesar da aparente incompatibilidade entre o que pode existir no futuro apenas e a repetição idêntica do mesmo.

Capítulo 5

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 156-160)

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