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A liberdade inteligível

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 95-99)

A vontade a partir do cristianismo

2.3 A vontade em Schopenhauer

2.3.2 A liberdade inteligível

Em O mundo como vontade e representação, Schopenahauer, como vimos, destaca o papel sempre subordinado do intelecto. Assim como uma vara que nos parece poder cair para a direita ou esquerda já tem a direção de sua queda determinada desde o início da oscilação, a decisão da própria vontade, que se produz com inteira necessidade a partir do caráter inteligível, é indeterminada para o intelecto, que a experiencia apenas a

posteriori e empiricamente, de tal forma que pode clarear a natureza dos motivos, mas

não determinar a vontade. Segundo as concepções que defendem a liberdade da vontade, o homem é a sua própria obra, à luz do conhecimento, de tal forma que ele

34 Contudo, afirma Schopenhauer, nem mesmo o gênio pode manter sempre esta grande tensão da

libertação da vontade; em outros momentos, ele se aproxima do homem comum, que só considera as coisas enquanto relacionadas à sua vontade. Por outro lado, o homem comum, sendo capaz de fruir a obra de arte, tem em si, embora em pequeno grau, esta potencialidade do gênio.

quer o que conhece; segundo Schopenhauer, o homem é sua própria obra antes de todo conhecimento, que é apenas adicionado para iluminá-la, ou seja, ele conhece o que quer (MRV, IV, §55).

Nessa perspectiva, apesar de algumas divergências importantes face às

formulações da ética de Kant, que examinaremos mais adiante, Schopenhauer, a partir da distinção feita por seu antecessor entre caráter empírico e caráter inteligível, encontra a possibilidade de uma liberdade inteligível ou transcendental que pode fundamentar a imputação moral, segundo sua própria teoria da vontade. Acompanharemos esta formulação schopenhaueriana no seu

Ensaio sobre o livre arbítrio.

Os quatro primeiros capítulos do livro dedicam-se a uma severa crítica do

conceito de liberdade da vontade ao longo da história da filosofia. Tal conceito, segundo o autor, é construído para atender a necessidade teológica de retirar de Deus qualquer responsabilidade sobre o mal: “Se com efeito uma má ação provém da natureza, ou seja, da constituição inata do homem, essa falta concerne evidentemente ao autor dessa natureza. É para escapar a essa consequência que inventou-se o conceito de liberdade da vontade” (ELA, p.126).

A confusão do voluntário com o livre perpassa toda a história do conceito de

liberdade da vontade. A consciência nos diz: “Eu posso fazer o que quero”. Ao referir-se ao poder de agir conforme a vontade, daí infere ilusoriamente uma vontade livre. Contudo, a questão da liberdade da vontade não se refere às consequências, ou seja, aos atos, e sim às suas causas. Schopenhauer nos dá como exemplo aquele de um homem que diz a si mesmo que pode fazer uma caminhada; ou pode ir ao teatro; ou pode visitar um amigo; pode até mesmo sair da cidade e nunca mais voltar. Tudo isso, pensa este homem, não depende senão dele, que tem plena liberdade de agir segundo o seu alvedrio; entretanto, não fará nada disso, e sim, não menos voluntariamente, irá voltar para casa. Embora acredite poder escolher livremente entre várias alternativas, na verdade fará necessariamente uma escolha predeterminada pelo jogo de forças entre os diferentes motivos, em sua relação com o seu caráter. Ora, assim como a água só pode se transformar em ondas, elevar-se no ar ou precipitar-se para baixo

desde que causas determinantes a conduzam a esse ou a aquele estado, também o homem só pode fazer isso ou aquilo sob determinações que não estão sob o seu poder (ELA, pp.79-80).

Todas as paixões e sentimentos referem-se à falta ou possessão do objeto desejado, ou à presença ou afastamento do objeto odiado, com os sentimentos de prazer ou de dor que acompanham as afecções relativas ao desejo e à aversão. Portanto, a vontade, ao tornar-se objeto da consciência, se produz necessariamente sob a influência de um móbil ou motivo que não pertence a esta última. Pode-se desejar coisas opostas, mas a vontade se decide apenas por uma, como o resultado de um conflito de motivos que a consciência vem conhecer apenas a posteriori (ELA, p.42). A vontade do homem se encontra, em última análise, na mesma situação de um corpo sobre o qual diferentes forças agem em direções opostas _ até que o motivo mais forte obrigue os outros a ceder-lhe lugar e determine a vontade (ELA, p.71)

Schopenhauer opõe o necessário, enquanto aquilo que resulta de uma razão suficiente, ao livre: uma vontade livre seria aquela não determinada por nenhuma razão, cujas manifestações individuais, portanto, jorrariam ao acaso _ o que é impensável para o entendimento, que tem no princípio de razão suficiente a sua forma essencial (ELA, p.29). Por conseguinte, as ações do homem, como todos os fenômenos da natureza, resultam, em cada caso particular, das circunstâncias precedentes, como um efeito que se produz necessariamente em seguida à sua causa (ELA, p.53).

Segundo a concepção schopenhaueriana, examinada no item anterior, que distingue a vontade como coisa em si e a representação como o seu fenômeno, o princípio de causalidade é a forma mais geral pela qual apreendemos o mundo fenomênico: sempre que algo no mundo objetivo se modifica, antes um outro objeto se modificou, numa série regressiva de modificações sem fim, nem ponto inicial, sendo impensável uma causa primeira, que tire seu efeito de si mesma. É verdade que no mundo animal a causalidade age pela mediação do entendimento, sob a forma dos motivos, sendo acrescida, no homem, pela capacidade de deliberação; contudo, como se passa no mundo em geral, a necessidade da ação dos motivos é a mesma, por mais longe que possam estender-se os seus fios (ELA, p.70). Cada ação do homem é produto do seu

caráter e do motivo que intervém. Tudo que ocorre, ocorre necessariamente: os acontecimentos que se desenvolvem diante de nós são como os caracteres das páginas de um livro que estamos lendo, impressas já antes da nossa leitura (ELA, p.108).

Como o caráter, entendido como natureza especial e individualmente

determinada da vontade, difere de indivíduo para indivíduo, a ação de um mesmo motivo varia em cada um. Portanto, para prever a ação que deve resultar de um motivo, não basta conhecê-lo, sendo preciso também o conhecimento do caráter afetado por ele. Para Schopenhauer, o caráter é invariável, permanecendo o mesmo por toda sua vida, malgrado mudanças aparentes; é inato, como são inatas suas virtudes e vícios (ELA, p.96). Portanto, o homem, como todo o resto da criação, é um ser determinado por sua essência, possuindo qualidades individuais fixas que regem necessariamente suas reações às excitações exteriores: perguntar-lhe se ele poderia querer diferentemente do que quer é o mesmo que perguntar-lhe se ele poderia ser diferente do que é (ELA, p.48).

Contudo, essa enérgica recusa da liberdade da vontade, cuja demonstração ocupa quase todo o livro, é seguida, no final, por uma admissão da verdadeira liberdade moral, desde que concebida “numa ordem superior de coisas”. O que leva Schopenhauer a esta convicção é justamente o sentimento de responsabilidade: “O sentimento de responsabilidade é o único dado que nos faz induzir a existência da liberdade moral” (ELA, p.155). Trata-se de uma verdade atestada pela consciência, onde encontramos o sentimento da responsabilidade moral, através da plena convicção de que somos os autores de nossas ações. Por isso, a ninguém ocorre alegar a necessidade de seus atos para excusar-se dos erros que cometeu. O homem que age mal reconhece que, objetivamente, uma outra ação, inclusive oposta, teria sido possível; para isso, porém, seria preciso que ele fosse uma outra pessoa. Portanto, a responsabilidade que a consciência lhe aponta apenas aparentemente se remete ao seu ato; é por seu próprio caráter que ele se sente responsável, e é também por seu caráter, da qual suas ações dão testemunho, que os outros homens o responsabilizam (ELA, p.156).

Ora, a liberdade deve residir lá mesmo onde reside a responsabilidade, ou seja, no caráter, enquanto é a essência empiricamente reconhecida, constante e imutável, de uma vontade individual. As manifestações desse caráter ao longo da vida, levando o homem

a conhecer-se a si mesmo, constituem a consciência moral, que, por conseguinte, só se faz escutar depois da ação (ELA, p.157).

Schopenhauer, como já o vimos fazer em O mundo como vontade e representação, recorre a Kant, quanto à distinção entre caráter empírico e caráter inteligível, feita na

Crítica da razão pura, que se reporta, por sua vez, àquela entre fenômeno e coisa em si.

O caráter empírico, que é da ordem fenomênica, está submetido às leis do tempo, do espaço da causalidade, como qualquer outro fenômeno; contudo, tem como condição a vontade do homem enquanto coisa em si, ou seja, o caráter inteligível, que possui absoluta liberdade: por causa dessa liberdade, todas as ações do homem são sua própria obra (ELA, pp.159-161). Assim, diz Schopenhauer, a obra da liberdade humana não se encontra em suas ações individuais, mas em seu ser, que deve ser considerado como um ato livre. Daí a máxima Operari sequitur Esse _ as ações são conformes à essência. Do

Esse e dos motivos resulta necessariamente o Operari; contudo, a liberdade, que não

pode existir no Operari, reside no Esse. Portanto, se o homem não faz jamais o que quer, agindo sempre necessariamente, é porque ele já é o que quer (ELA, pp.162-63).

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 95-99)

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