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A prefiguração da vontade em Aristóteles

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 56-60)

Platão e Aristóteles: uma ética anterior à vontade

1.3 A fundamentação da responsabilidade em Aristóteles

1.3.2 A prefiguração da vontade em Aristóteles

Segundo Vetö (2005), embora não se encontre em Aristóteles uma filosofia da vontade propriamente dita, vários dos seus conceitos o prefiguram. Ross (1957) considera a doutrina aristotélica da escolha como um importante ensaio para a formulação de uma concepção clara da vontade. Contudo, embora crie condições para uma conceituação da vontade, a Ética a Nicômaco não a apresenta ainda20.

Vetö (2005), secundado por Dihle (1982), aponta a ênfase aristotélica na autarquia da ação moral, ou seja, o fato de que sua finalidade é desejada por si mesma, como vimos no início do item anterior. À poiesis, agir transitivo cujo fim se situa fora de si mesmo, contrapõe-se a praxis, ação imanente, prefigurando, segundo Vetö a autonomia da razão prática kantiana. As ações imanentes constituem um agir que não visa a fins exteriores, cujo exercício coincide com seu objetivo, tendo em si mesmas seu próprio fim.

Os comentadores destacam o estatuto próprio concedido pelo filósofo à inteligência prática. A concepção aristotélica separa a vida prática na qual a ação é requerida do reino da determinação racional, sem desvalorizar a primeira por sua falta de racionalidade, observa Dihle. Ao estabelecer pela primeira vez a diferença entre natureza e moral, Aristóteles mostra que a ação humana não pode ser objeto de

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Schopenhauer (1992), em seu Ensaio sobre o livre arbítrio, considera que o problema da liberdade moral não foi apreendido por Aristóteles, cuja Ética a Nicômano aborda essencialmente questões relativas à liberdade física e intelectual. Identificando os atos voluntários aos atos livres, ele teria esbarrado na pretensa oposição entre voluntário e necessário, não reconhecendo que o voluntário é necessário precisamente enquanto voluntário, em decorrência do motivo que determina a vontade. Entretanto, essa argumentação, para tornar-se compreensível, requer o conhecimento prévio da abordagem schopenhaueriana da vontade, que apresentaremos mais adiante, no item 2.3.

conhecimento no mesmo sentido em que o é um fenômeno cósmico. Desatando a rígida conexão entre coisas naturais e humanas típicas da ética grega, o filósofo crê que o esforço teórico do intelecto pode verificar a utilidade e a justiça implicadas numa determinada situação, mas faz derivar inteiramente da inteligência prática a decisão que coordena os objetivos estabelecidos por elas; destarte, suprime a visão tradicional que identifica a intenção de fazer a coisa certa com um tipo de conhecimento cuja verdade poderia ser verificada objetivamente, evitando, assim, um grande número dos problemas da equação que identifica virtude e conhecimento. Reale (1994) aí encontra uma tentativa de superar a interpretação intelectualista da moral da filosofia socrático- platônica, indicando que uma coisa é conhecer o bem, outra é atuar o bem. Segundo Vetö, embora ainda não contemplando uma verdadeira inteligibilidade da esfera prática que se articularia segundo um discurso próprio, as intuições de Aristóteles quase prefiguram a distinção kantiana entre razão teórica e razão prática.

Contudo, não encontramos em Aristóteles uma filosofia da vontade, sustenta Vetö, e sim uma importante contribuição indireta para uma fundação metafísica da noção. Segundo Vernant (1999), assim como em sua língua não há uma palavra para livre arbítrio, a noção de um livre poder de decisão não se encontra em seu pensamento: mesmo fundando a responsabilidade individual sobre as condições puramente internas da ação, tanto no caso da decisão quanto no da inclinação o que põe o sujeito em movimento é um fim que orienta sua conduta desde o exterior21.

Segundo Ross (1957), alguns traços da doutrina de Aristóteles representam considerável avanço com relação ao pensamento anterior rumo à formulação de uma doutrina da vontade. Ressalta particularmente a noção de razão desiderativa ou desejo raciocinativo, que, apresentando o desejo guiado pela razão e a razão estimulada pelo desejo, aponta para um elemento distinto e novo, que já não é só desejo nem só razão, na determinação do agir humano.

Muitos acreditam encontrar aqui o que chamamos de vontade, já que a escolha não é só desejo, nem só razão, diz Reale (1994). Contudo, em Aristóteles, como vimos, a escolha e a deliberação dizem respeito aos meios, enquanto a aspiração, boúlesis, diz respeito apenas aos fins. Logo, se a escolha é o que nos torna responsáveis, não nos

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Em sentido semelhante, Reale (1994) observa o contraste entre o Timeu, no qual o finalismo universal sustenta-se porque o Demiurgo projeta um mundo em função do bem e do melhor, e a concepção aristotélica, segundo a qual o mundo existe por um mecânico e fatal anelo das coisas à perfeição.

torna todavia moralmente bons, sendo a volição dos fins o princípio primeiro da nossa moralidade. Mas o que é esta volição dos fins? Reale aí julga encontrar um impasse: ou é tendência infalível ao que é verdadeiramente o bem; ou é tendência para o que nos parece bem. Ora, no primeiro caso, a escolha não reta será involuntária, como quer Sócrates; no segundo, todos seriam bons, por fazer o que lhes parece bem. Portanto, embora compreendendo que somos responsáveis por nossas ações e causas de nossos hábitos morais, Aristóteles não teria sabido determinar corretamente a verdadeira natureza da vontade e do livre arbítrio, que apenas através do cristianismo seria

apreendida pelo homem ocidental.22

Aristóteles crê sair do dilema relativo à volição dos fins, prossegue Reale,

considerando que o objeto da aspiração é o que a cada um parece bem, mas apenas para o virtuoso este bem aparente é o verdadeiro. Segundo o filósofo, recordemo-nos, não só os prazeres de criaturas diferentes variam quanto à sua espécie, como também, no caso da espécie humana, têm grandes variações entre os indivíduos: as mesmas coisas que deleitam alguns são odiosas a outros. Considera, porém, que as coisas são tais como parecem ser às pessoas boas: aquelas que lhes parecem constituir prazeres são realmente prazeres, e as que apreciam são verdadeiramente agradáveis. Se outros sentem diferentemente, isso se dá em virtude de uma corrupção do gosto; as coisas aviltantes são prazeres apenas para o gosto pervertido (EN, X, 5). Somos responsáveis, pois, por aceitar a aparência do bem em lugar do bem verdadeiro, aprendendo a gostar das coisas certas, segundo nos diz o desejo raciocinativo. Contudo, como saber quais são as coisas de que devemos gostar? Serão aquelas apreciadas pelos homens bons; mas como estes, por sua vez, aprenderam a identificá-las e gostar delas? É introduzida aqui a questão do gosto, com os problemas que comporta.

Encontramos um exemplo curioso de tais problemas quando Aristóteles trata dos gostos aberrantes. O filósofo distingue as coisas que são naturalmente agradáveis para uma classe de animais ou pessoas daquelas que não o são, mas assim se tornam por hábito, aberração ou tara: a mulher que devora fetos, o canibalismo dos bárbaros, os loucos que comem a própria mãe, o hábito de roer as unhas. Embora assustadoras, pois não se relacionam aos prazeres próprios ao gênero humano, estas disposições mórbidas são consideradas pelo filósofo como males menores, não pertencendo à esfera dos

22Ainda segundo Reale (1994), Aristóteles teria entrevisto melhor do que seus predecessores que há algo

em nós do qual depende o ser bom ou mau, que não é mero desejo irracional, mas não é tampouco razão pura; contudo, este algo lhe teria caído das mãos sem que conseguisse determiná-lo.

vícios morais (EN,VII, 5). Pode-se, porém, indagar: se o homem não pode ser considerado moralmente vicioso em virtude de um gosto aberrante, logo contrário à razão, por quê poderia sê-lo por “comprazer-se com coisas abomináveis, ou comprazer- se mais do que o razoável com aquelas das quais é razoável gostar”, como é o caso dos concupiscentes?

A ideia de um adestramento do gosto encontra-se em Platão, no qual Aristóteles diz inspirar-se. De fato, em A República, o gosto dos guardiões quanto à música, à poesia, à ginástica deve ser educado precocemente, dentro de padrões já definidos segundo uma legalidade quanto ao tipo de música, de poesia e de ginástica que se deve apreciar; ali, entretanto, essa educação é apenas uma introdução para a seguinte, que, como vimos na primeira parte, faz apelo essencialmente à atividade intelectual. A Ética dá um destaque maior ao treinamento do gosto, pela própria concepção de que aprendemos a gostar de agir bem justamente à medida em que nos exercitamos a fazê-lo; contudo, esbarramos no problema de que não é fácil determinar o significado de “gostar da coisa certa”, quando os critérios para tal devem ser exteriores ao próprio gosto.

Capítulo 2

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 56-60)

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