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Somente enquanto criadores

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 133-136)

Por uma gaia ciência

4.1 Somente enquanto criadores

Não se trata, na Gaia ciência, de tocar finalmente no objeto da paixão do conhecimento, que continua tão inatingível quanto antes. Aqueles que chamam a si mesmos de realistas, por acreditar que o mundo é tal como lhes aparece, pretendem uma impossível sobriedade: são ainda seres apaixonados quando comparados a peixes. Não se pode olvidar a própria humanidade e animalidade no conhecimento _ repete Nietzsche várias vezes nesse livro. É impossível subtrair daquela nuvem ou naquela montanha o acréscimo humano que nelas colocamos (GC, 57).

Já em Aurora, Nietzsche apontava como o próprio homem impede-se de enxergar as coisas por que coloca a si mesmo no caminho. Contudo, onde mais poderia colocar-se? Onde quer que esteja, verá o mundo através de sua própria imagem refletida; até mesmo as sombras que o impedem de ver provêm de um Deus que ele próprio criou e destruiu. Existe, pois, a possibilidade de que o conhecer nada mais faça do que oferecer àquele que conhece a sua própria imagem travestida.

A outra perspectiva consiste em saber-se embriagado, mas procurar ultrapassar a embriaguez (GC, 57). Contudo, seria preciso fazê-lo sem pretensões a uma total sobriedade. A abstinência é impossível: enquanto seres vivos, não seca a fonte da qual bebemos, nem dela podemos prescindir. O engano sobre a vida é necessário à vida, insiste Nietzche, sempre e mais uma vez.

Uma novidade se destaca, porém, na Gaia ciência, cujas implicações convém examinar, tanto para o conhecimento quanto para a moral. Trata-se da consideração da questão do valor, aqui relacionada àquelas dos gostos nobre e vulgar, da exceção e da regra.

Estas reflexões sobre a exceção e a regra chegam também à dimensão do conhecimento. O homem do conhecimento _ a exceção _ acorda de um sonho apenas para a consciência de que sonha, devendo todavia continuar sonhando para não sucumbir. Age como mestre de cerimônias da dança, para prolongá-la: pela ligação de todos os conhecimentos pode-se talvez manter a universalidade do sonho e a mútua compreensibilidade entre todos os sonhadores (GC, 54). Ou seja, fazendo com que o sonho não seja apenas a “exceção” de cada um, vivência única e intransmissível, que tornaria impossível a partilha, ele zela pela universalidade que asseguraria a compreensibilidade mútua dos sonhadores.

Fazem parte do sonho os erros fundamentais do ser vivo, mais uma vez reiterados por Nietzsche: que existem coisas iguais, que existem coisas, matérias, corpos. Desses erros, incorporados por sua utilidade para a conservação da espécie _ que o homem do conhecimento não pode abolir, embora deva apontá-los _ nascem as normas que definem o verdadeiro e o falso, mesmo quando se trata da lógica mais pura.

Esse não poder acordar do sonho, ou seja, esta obrigatoriedade em seguir certas convenções que o perpetuam, ressurge quando Nietzsche aponta o perigo da loucura, entendida como capricho no ver e no ouvir. “O oposto no mundo dos loucos não é a verdade e a certeza, mas a universalidade e a obrigatoriedade de uma crença: os homens necessitam de entrar em acordo sobre muitas coisas e submeter-se a uma lei da concordância, não importando se tais coisas são verdadeiras ou falsas” (GC, 76). Recorde-se que em Verdade e mentira no sentido extra-moral Nietzsche já apontava as leis da linguagem como fundamento desse acordo.

Os “investigadores da verdade”, quanto mais se refina a sua mente, enjoam-se do ritmo monótono instituído por tal obrigatoriedade. Contudo, são a exceção; “a estupidez virtuosa é necessária, para que os fiéis da grande crença geral continuem sua dança” . Mais uma vez, Nietzsche reitera: a exceção não pode pretender tornar-se regra, assim como a vigília não pode invadir o sonho; os “investigadores da verdade” destruiriam as

regras necessárias à vida ao tentar impor-lhes a exceção que eles próprios representam (GC, 76).

Se Nietzsche reconhece a impossibilidade de acordar do sonho ou de romper com a regra, onde reside então a alegria da Gaia ciência? Quais as novas possibilidades nela apontadas para o conhecimento?

No aforismo 58, intitulado Somente como criadores!, o filósofo nos diz que a nomeação e a avaliação das coisas são roupagens estranhas a elas com as quais as vestimos, nelas se enraizando até se tornarem seu próprio corpo. Não basta apontar esta ilusão para destruir a suposta realidade que ela cria _ e aqui voltamos à impossibilidade de acordar do sonho. Contudo, uma possibilidade se coloca: criando novos nomes e avaliações, a longo prazo podemos criar novas coisas. Ou seja, se compreendemos o processo pelo qual se produz aquilo a que chamamos realidade, percebemos que o conferir nome e valor, sendo constituinte do processo mesmo, não pode ser elidido, e sim utilizado criativamente para a produção de uma outra “realidade” _ talvez tão arbitrária quanto a primeira, mas ordenada segundo valores mais nobres. Afirma-se, portanto, a ideia de que o conhecimento não deve depreciar-se em virtude do seu caráter necessariamente ficcional, mas alegrar-se com ele, pela produção de ficções novas e mais elevadas. Aqui, a nosso ver, a gaia ciência se aproxima de uma nova formulação da sabedoria trágica, ao mesmo tempo próxima e distinta daquela do Nascimento da

tragédia.

Para essa recriação, é invocada novamente uma preciosa aliada: a arte. A compreensão de que o erro é condição da existência sensível, logo do conhecimento, seria insuportável “se não tivéssemos inventado este culto ao não verdadeiro que é a arte.” A retidão que se exerce na prática da ciência, levando a reconhecer a inverdade geral que assim se revela, pode resultar “em naúsea e suicídio”. Em Humano,

demasiadamente humano, já citado aqui, Nietzsche, constatando este mesmo problema,

encontrara como saída um conhecimento purificador. Agora, diferentemente, a arte é a força contrária à retidão do homem do conhecimento, que o levaria, na ausência de tal oposição, a recair na moral. “Necessitamos de toda arte exuberante, dançante, zombeteira e venturosa, para não perdermos a liberdade de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós” (GC, 107). Já em Humano, demasiadamente humano,

exigia-se tal liberdade; a diferença aqui é que não poderíamos dispor dela se nos privarmos da arte no exercício mesmo do conhecimento.

Portanto, a questão do valor é ressaltada na concepção de uma gaia ciência: criar novas coisas através de novas avaliações e nomes, tendo a arte como “boa vontade de aparência”.

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 133-136)

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