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A auto-negação da vontade

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 99-102)

A vontade a partir do cristianismo

2.3 A vontade em Schopenhauer

2.3.3 A auto-negação da vontade

Schopenhauer critica as éticas que dão um lugar central à razão: a razão, embora necessária para uma vida virtuosa, não é fonte da virtude, mas função subordinada a ela. A virtude e a santidade não se originam da reflexão, mas da profundeza íntima da vontade e de sua relação com o conhecimento. A ação racional e a ação virtuosa são duas coisas completamente distintas, podendo a razão unir-se tanto à grande bondade quanto à grande maldade (MRV, I, §16).

O filósofo discorda radicalmente, pois, da concepção kantiana da vontade como razão prática: “É uma contradição flagrante denominar a vontade livre e no entanto prescrever-lhe leis segundo as quais deve querer” (MRV, IV, §53). Em seu entender a vontade é livre, e nada tem a ver com leis. Parece-lhe inaceitável o imperativo categórico kantiano: não se pode agir por máximas abstratas, pois a universalidade do conceito nunca desce às nuances do particular, que exigem a escolha do que é justo a partir do caráter. Censura Kant, pois, por tornar condição do valor moral de uma ação o fato de que esta ocorra a partir de puras máximas abstratas e racionais (MRV, I, §13).

Ademais, Schopenhauer acredita encontrar no imperativo categórico, em última análise, o egoísmo como fonte do juízo ético: para descobrir a regra da minha conduta, levando em conta não apenas a mim, mas o conjunto de todos os indivíduos como meu fim, esse fim continua sendo o bem estar; todos só podem sentir-se bem se cada um fizer do egoísmo alheio o limite do próprio egoísmo (MRV, Apêndice, pp. 651-652).

Schopenhauer discorda também das éticas que identificam felicidade e virtude, na qual lhe parece recair a concepção kantiana ao reunir, na Crítica da razão prática, a felicidade e o bem: “A felicidade no soberano bem não deve ser propriamente o motivo para a virtude. No entanto, lá está ela como uma mercadoria contrabandeada, cuja presença torna todo o resto um mero contrato fictício” (MRV Apêndice, p.651). Enquanto a felicidade é um querer satisfeito, a virtude, pelo contrário, é plena renúncia de todo querer.

Também o desagrada a exigência kantiana de que o ato meritório deva ser praticado única e exclusivamente em respeito à lei: pretender que se deva agir segundo uma máxima conhecida pela razão in abstracto, não a partir da benevolência, da compaixão, dos sentimentos do coração, mas de mau grado e por auto-constrangimento, parece-lhe o mesmo que exigir a produção de uma obra de arte mediante o frio cumprimento de regras estéticas (MRV, Apêndice, pp.653-654). Opondo-se a tal racionalidade, Schopenhauer defende o supremo valor da compaixão, que conduz à auto-negação da vontade.

O filósofo concebe uma justiça eterna segundo a qual o mundo é como é por que a vontade, da qual é o fenômeno, assim o quer; a justificativa para o sofrimento é o fato de que a vontade se afirma a si mesma nesse fenômeno, e essa afirmação é justificada pelo fato de que a vontade porta sofrimento (MRV, IV, §60). Em tudo que acontece a

cada um, a justiça lhe é feita, pois esta é sua vontade; o mundo mesmo é o tribunal do mundo. Se colocarmos num prato a penúria, num outro a culpa, o fiel da balança permaneceria no meio (MRV, IV, §63).

A única saída, pois, reside na ascese, através da qual se pode chegar até a santidade. No homem, a vontade pode alcançar a plena consciência de si, pela apreensão das ideias. Portanto, apenas quando abandona todo o conhecimento das coisas isoladas enquanto tais, submetidas ao princípio de razão, e, por intermédio do conhecimento das

ideias, olha através do véu de Maia do principium individuationis, é possível uma entrada em cena da liberdade propriamente dita da vontade como coisa em si (MRV, IV, §55). O homem, então, movido pela compaixão, já não faz diferença egoística entre sua pessoa e a de um outro, compartilhando os sofrimentos de todos como se fossem seus, reconhecendo em todos os seres o seu verdadeiro si mesmo; a dor que daí resulta é de tal ordem que ele já não poderia querer afirmar esta vida por atos da vontade. Dessa forma, o conhecimento do todo e da essência das coisas torna-se um quietivo de qualquer volição: o homem atinge um estado de voluntária renúncia, resignação, enfim, de completa destituição da vontade. Isso se faz pela transição da virtude à ascese, da qual a completa castidade é o primeiro passo, requerendo também a pobreza, a auto- punição, o auto-flagelo, o jejum, como os santos entre os cristãos, e mais ainda, entre os hindus e os budistas (MRV, IV, §68).

Dessa forma, a liberdade, que jamais se mostra no fenômeno, pois pertence à coisa em si, pode entrar em cena no próprio fenômeno, ao suprimir a essência subjacente ao seu fundamento, embora ele mesmo perdure no tempo (MRV, IV, §55). O único caso em que a liberdade pode se tornar imediatamente visível no fenômeno é quando põe fim ao que aparece. Ora, como o fenômeno, na medida em que é um elo da cadeia das causas, continua a existir no tempo, a vontade que através dele se manifesta entra em contradição consigo mesma, pois nega o que o fenômeno expressa. A chave para a solução da contradição reside no fato de que o estado no qual o caráter se exime do poder dos motivos não procede imediatamente da vontade, mas de uma forma modificada do conhecimento _ o conhecimento das ideias _ que tem efeito quietivo, suprimindo a própria vontade (MRV, IV, §70). Essa contradição do fenômeno consigo mesmo expõe o estado de santidade e abnegação.

Recordemo-nos, todavia, de que a santidade, e a ascese que leva até ela, não é uma escolha que o homem possa fazer ao longo de sua vida, já estando determinada no plano do caráter inteligível. Aqui, o ateu Schopenhauer reconhece as verdades cristãs. O dogma da predestinação, como resultado da eleição ou não pela graça, tal como se encontra em São Paulo, parece-lhe manifestamente derivado da intelecção do homem como imutável, de tal maneira que sua vida, conduta e caráter empírico são apenas o desdobramento do caráter inteligível.35 Na doutrina do pecado original, que afirma a

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Essa intuição, considerada perfeitamente correta por Schopenhauer, dá origem a conclusões das quais discorda, quando unidas aos dogmas já encontrados na religião judaica antes do cristianismo.

vontade, e da redenção, que vem negar a vontade, reside a grande verdade do cerne do cristianismo. Mostra-se verdadeira, pois, a doutrina dos Evangelhos, defendida por Agostinho e purificada de erros por Lutero, segundo a qual a vontade não é livre, mas está originariamente propensa ao que é mau. As obras do homem não o podem salvar, só a fé, enquanto relação mais íntima entre o conhecimento e o querer no homem, que surge sem participação nossa. Portanto, somos maus e precisamos de uma redenção que só pode vir da fé, isto é, uma mudança do modo de conhecimento (MRV, §70)

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 99-102)

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