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As referências críticas à doutrina da liberdade da vontade

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 163-170)

A crítica à doutrina da liberdade da vontade

5.1 Primeiras críticas à liberdade da vontade

5.1.2 As referências críticas à doutrina da liberdade da vontade

Considerando o enquadre da reflexão nietzscheana sobre a moral nesse momento, que procuramos esboçar acima, examinaremos os trechos em que faz sua crítica à liberdade

54 A este propósito, observa Marton (2000) que, segundo a concepção da doutrina da vontade de poder,

um organismo não age ou reage em relação ao prazer e desprazer; estes são simples consequências ou fenômenos secundários do combate pelo aumento de poder.

da vontade. Ele a empreende a partir da rigorosa necessidade que rege as ações humanas, cuja compreensão nos permite a ciência, resgatando dessa maneira a irresponsabilidade do homem e a inocência do devir.

Essa crítica exige um confronto com Schopenhauer, que encontramos no aforismo 39, A fábula da liberdade inteligível. Nietzsche começa por identificar a história dos sentimentos morais com a história dos sentimentos pelos quais tornamos alguém responsável por seus atos, numa concepção que sustenta ao longo de sua obra. Reconstituindo esta história, nela encontra quatro etapas. Na primeira, a ação é boa ou má conforme os seus efeitos. Na segunda, o efeito é tomado como causa: “esquecemos” esta origem, e o bom ou o mau é tido como inerente à ação em si. Na terceira, a qualidade de bom ou mau é introduzida nos motivos da ação. Na quarta, finalmente, é estendida a todo o ser do homem, do qual o motivo brota. Dessa maneira, “...sucessivamente tornamos o homem responsável por seus efeitos, depois por suas ações, depois por seus motivos, e finalmente por seu próprio ser”. Ora, sustenta Nietzsche, o ser do homem não pode ser responsável por coisa alguma, pois é uma conseqüência necessária, formada por influxos de coisas passadas e presentes.

Nesse movimento de responsabilização que identifica à história dos sentimentos morais, Nietzsche inclui o raciocínio de Schopenhauer. Segundo este, observa Nietzsche, desde que certas ações acarretam mal-estar, ou “consciência de culpa”, deve existir responsabilidade. Ora, tal mal estar não se pode justificar a partir do agir do homem, pois, conforme admite o próprio Schopenhauer, esse agir ocorre por necessidade. Partindo do fato desse mal estar, o filósofo acredita poder demonstrar uma liberdade que o homem deve ter tido de algum modo, não no que toca às ações, é certo, mas no que toca ao ser: o homem seria livre não para agir dessa ou daquela maneira, mas sim para ser desse ou daquele modo. Do esse, esfera da responsabilidade e da liberdade, decorre, segundo ele, o operari, a esfera da estrita causalidade, necessidade e irresponsabilidade. O mal estar, que aparentemente diz respeito ao operari, na verdade se refere ao esse, que é o ato de uma vontade livre: o homem se torna o que ele quer ser, de forma que seu querer precede sua existência.

Nietzsche assim resume claramente o raciocínio exposto por Schopenhauer no quinto capítulo do Ensaio sobre a liberdade da vontade, examinado no item 2.3.2 deste trabalho, para refutá-lo através de dois argumentos. Em primeiro lugar, diz, o filósofo

parte do fato do mal estar para inferir daí a sua admissibilidade racional. Contudo, o mal estar não precisa ser racional, e na verdade não o é, pois baseia-se no pressuposto errôneo de que o ato não teria de produzir-se necessariamente. O homem sofre de remorso porque se considera livre, e não por que é livre, contrapõe Nietzsche. Em segundo lugar, questiona a universalidade do mal estar: as mesmas ações que o provocam em algumas pessoas absolutamente não perturbam outras; sobretudo, trata-se de algo variável, que se relaciona à evolução dos costumes e das culturas. Conclui enfim, peremptoriamente, por uma tese que lhe parece clara como o sol, embora não aceita por medo de suas consequências: “Ninguém é responsável por suas ações; ninguém responde por seu ser” (HDH, 39).

No aforismo 33 de Opiniões e sentenças diversas, a crítica à posição de Schopoenhauer é retomada: percebendo corretamente a rigorosa necessidade das ações humanas, ele se equivoca, contudo, ao sustentar _ e aqui Nietzsche cita textualmente seu antigo mestre _ que “a última e verdadeira explicação sobre a íntima essência da totalidade das coisas deve, por necessidade, ligar-se estreitamente àquela sobre a significação ética do agir humano”. Ora, esta ideia contradiz a primeira, que afirma expressamente a absoluta não-liberdade da vontade e, portanto, a irresponsabilidade É inútil que as mentes filosóficas capazes de tal percepção procurem elidir suas conseqüências: por trás das escapatórias pelas quais procuramos o “ar livre do livre arbítrio”, esbarraremos sempre no “muro brônzeo do fado”.

É curioso, ademais, observa Nietzsche, que o indivíduo busque a liberdade do seu arbítrio justamente ali onde está mais fortemente atado _ neste, em suas paixões, naquele em sua consciência lógica, naquele outro em seu dever, ou seja, onde se encontra aquilo que nele é o mais necessário, e de onde deriva, portanto sua força e sensação de vida. Dessa forma, o homem se considera tanto mais livre quanto mais é obrigado: “É como se o bicho-da-seda buscasse a liberdade do seu arbítrio justamente no tecer” (AS, 9).

Essa noção de uma causalidade que obedece a uma necessidade natural relaciona-se, num primeiro momento, à determinação dos organismos vivos segundo o prazer e o desprazer, o útil e o nocivo, mencionada em outras passagens que tratam da liberdade da vontade. Podemos vê-lo no longo aforismo intitulado Questões fundamentais da

a distinguir progressivamente substâncias distintas, à medida em que se apuram os estímulos de prazer e desprazer. “A nós, seres orgânicos, nada interessa originalmente numa coisa, exceto sua relação conosco no tocante ao prazer e a dor”. A nossa crença de que há coisas iguais é uma herança dos organismos inferiores, para os quais tudo é uno e idêntico, num primeiro nível do lógico do qual o pensamento da causalidade se encontra ainda distante. A seguir, audaciosamente e sem transição, Nietzsche julga encontrar aí a gênese de nossa noção de livre arbítrio: cada sensação do nosso organismo parece-nos impor-se de forma incondicionada, sem razão e finalidade, de tal modo que temos fome sem pensar que o organismo, através da fome, visa ser conservado. Essa falsa impressão de incondicionalidade das sensações encontra-se na raiz da nossa convicção quanto à liberdade da vontade: “Portanto, “a crença na liberdade de vontade é um erro originário de todo ser orgânico, de existência tão antiga quanto as agitações iniciais da lógica”; o mesmo vale para a crença em substâncias incondicionadas. Concluindo o aforismo, diz Nietzsche: “...na medida em que toda metafísica se ocupou principalmente da substância e da liberdade do querer, podemos designá-la como a ciência que trata dos erros fundamentais do homem, mas como se fossem verdades fundamentais” (HDH, 18).

Nietzsche parece empreender aqui a tentativa literal de empregar um “método científico” para o questionamento de conceitos-chave da metafísica, aplicando a fisiologia da percepção a problemas epistemológicos para justificar sua concepção da cognição como vir a ser. Contudo, a suposição que o organismo através da fome visa ser conservado traz implícita uma concepção teleológica dos instintos que introduz objetivos e fins no seio da necessidade. Nietzsche continuará considerando a liberdade da vontade e a substância como “erros fundamentais da metafísica”, sem voltar a recorrer aos meios pelos quais chega neste momento a tal conclusão.

Nessa etapa de seu pensamento, porém, a motivação de nossas ações pela busca do prazer e fuga do desprazer é mais uma vez invocada para negar qualquer espécie de dano intencional em que não esteja em jogo o nosso bem estar: todas as nossas ações, boas ou más, podem ser consideradas como legítima defesa, já que é sempre em busca da auto-conservação e do prazer que fazemos qualquer coisa (HDH, 104). A necessidade das ações enquanto guiadas pela auto-conservação liga-se aqui, mais uma vez, à crítica da liberdade da vontade.

A doutrina do livre arbítrio, portanto, é uma miragem da vaidade humana. Toda sensação de independência é ilusória, causada por nosso orgulho e avidez de domínio: mesmo ao julgarmo-nos independentes, nosso sentimento de liberdade deriva apenas de estarmos tão habituados aos nossos grilhões que sequer os sentimos mais (AS, 10). Quando alguém pensa que não deveria ter realizado certa ação, ou que as coisas poderiam ter ocorrido de uma outra maneira, expressa o vaidoso “sentimento básico da humanidade” segundo o qual o homem é o único ser livre num mundo de não liberdade _ o “perene taumaturgo”, “o sentido da criação”, “a chave do mistério cósmico” (AS, 12). É risível, naturalmente, dizer “eu quero que o sol se ponha” quando cai a tarde; ou “eu quero que a roda rode” quando não posso pará-la; ou “eu quero estar deitado” quando fui derrubado por meu adversário; contudo, embora de forma menos óbvia, são também motivo de riso todos os outros casos, quaisquer que sejam, em que usamos a expressão “eu quero” (A, 124). A vaidade faz com que o homem queira ser responsável por tudo, exceto por seus sonhos, dos quais nem sempre se pode orgulhar, embora representem, mais do que qualquer outra, sua mais íntima e autêntica obra; todavia, embora seja verdade que não somos responsáveis por eles, é pelo mesmo motivo _ qual seja, a rigorosa necessidade de nossa vida psíquica e de nossas ações _ pelo qual tampouco somos responsáveis pelo que pensamos e fazemos nossa vida de vigília (A, 128).

A íntima relação da doutrina da liberdade da vontade com o merecimento de louvor e censura, prêmio e punição, é explorada em várias passagens, opondo-se a ela a doutrina nietzscheana da total irresponsabilidade.

Sendo necessárias, nossas ações não merecem louvor ou censura. Acusamos de imoral o homem nocivo porque supomos que ele possua uma vontade livre, embora não digamos o mesmo da natureza quando a chuva nos molha, porque aí reconhecemos uma necessidade. É absurdo, diz Nietzsche, tanto censurar quanto louvar a natureza e a necessidade, e os atos humanos que elas determinam. Nem a repulsa pode basear-se na recriminação, nem a admiração pode ter o mérito por objeto: “Pode-se admirar nos atos humanos a força, a beleza, a plenitude, mas não o mérito; a dor de dentes que quer a cura tem tanto mérito quanto os embates psíquicos em que motivos diversos nos arrastam, até que nos decidimos pelo mais forte _ na verdade, até o motivo mais forte se decidir acerca de nós” (HDH,102).

O filósofo aponta os laços da noção de liberdade da vontade com a culpabilização e a o castigo, tal como se estabelecem no cristianismo: diferentemente dos gregos, que atribuem a má ação de um “bom” a um deus que o enlouqueceu, a religião cristã torna o homem culpado, ao incutir-lhe falsamente o sentimento de sua própria pecaminosidade. Esse sentimento é tanto mais falso se considerarmos que a doutrina do livre arbítrio tem uma relação paradoxal com a culpabilidade, como procura demonstrar Nietzsche no complexo aforismo 23 de O andarilho e sua sombra: embora se constitua para assegurar a justiça da punição, esta doutrina se contradiz, pois, segundo os seus próprios princípios, não poderia punir. Uma pré-condição da punição consiste em verificar se a pessoa é responsável por seus atos, ou seja, se podia fazer uso da razão, e não agiu inconscientemente ou por coação. O castigo é considerado merecido quando a pessoa, conhecendo os motivos, preferiu os piores aos melhores. Contudo, a razão não poderia ser a causa de uma má ação, pois como decidiria ela contra os melhores motivos? Na ausência de tal conhecimento, de duas uma: ou a própria ignorância se deve à negligência no aprender, de tal forma que, não querendo aprender o que devia, o infrator, da mesma forma, preferiu os maus aos bons motivos, e, portanto, merece punição _ mas neste caso, como poderia, da mesma forma, ter preferido racionalmente motivos maus? _ ou não pôde enxergar os bons motivos porque lhe faltava razão, como a um animal, e nesse caso não merece castigo. Invoca-se, diante desse impasse, o livre arbítrio: deveria surgir um momento no qual nenhum motivo opera, “em que o ato acontece, como um milagre, a partir do nada”; o infrator é punido porque fez uso do livre arbítrio, ou seja, porque agiu sem motivos quando deveria tê-lo feito por motivos. Ora, se entendemos que o exercício da razão é condição necessária para a punibilidade, não podemos punir, porquanto ninguém, usando do raciocínio, poderia preferir motivos maus; se entendemos, diferentemente, que não se fez uso da razão, tampouco a punição seria justa, pois a omissão ocorreu sem intenção, e apenas a omissão intencional do que é obrigatório é considerada punível; se o malfeitor preferiu os maus motivos, ele o fez, como vimos, sem motivo, portanto sem intenção. Logo, conclui Nietzsche: “Vocês, partidários do livre-arbítrio, conforme seus próprios princípios, não podem punir!” Opondo-se à culpabilização promovida pela doutrina do livre arbítrio, a ciência permite a qualquer homem adquirir o sentimento de plena irresponsabilidade: dissolvendo nossa crença, ao mostrar que se encontra em nós mesmos a gênese da idéia de Deus, nos faz ver que são estritamente humanas as leis que nossos atos podem violar,

e nem mesmo pela violação destas últimas somos responsáveis: “Se por fim a pessoa conquistar...a convicção filosófica da necessidade incondicional de todas as ações e de sua completa irresponsabilidade, desaparecerá também esse resíduo de remorso” (HDH, 133). Como conseqüência da “doutrina da total irresponsabilidade”, não apenas desaparece o temor de um castigo divino, como também a justiça premiadora ou punitiva não pode ser considerada como tal: não podendo o homem premiado ou punido ter agido de outra maneira, castigo e prêmio lhe são dados não por uma questão de merecimento, e sim por razões de utilidade social, que não encontram alicerce numa suposta ordem das coisas (HDH, 105).

O reconhecimento da total irresponsabilidade é a modéstia dos grandes espíritos, diz Nietzsche. Daí o importante lugar da refutação da liberdade da vontade em sua concepção do “espírito livre”: este, justamente porque não sofre do desgosto com o seu ser, não se superestima julgando-se acima do curso necessário de todo acontecer; o comando que deve exercer exige o reconhecimento de que representa ele próprio um elo nesse curso (HDH, 292).

A total irresponsabilidade do homem por seus atos e por seu ser, embora seja “a gota mais amarga para o homem do conhecimento”, acaba por tornar-se um consolo e uma redenção: “Tudo é necessidade _ assim diz o novo conhecimento; e ele próprio é necessidade. Tudo é inocência _ e o conhecimento é a via para compreender esta inocência”. Tudo no âmbito da moral veio a ser, é mutável, oscilante, tudo está em fluxo, mas tudo se acha também numa corrente, em direção a uma meta: sob o influxo do conhecimento crescente, a humanidade, lentamente, pode adquirir “a força de criar o homem sábio e inocente..., da mesma forma regular como hoje produz o homem tolo, injusto, consciente da culpa _ que é não o oposto, mas o precursor necessário daquele” (HDH, 107). O homem, parte da natureza, participa também da inocência da necessidade: esta é uma concepção sempre reafirmada desde então por Nietzsche.

O entrelaçamento necessário de tudo o que foi, é e será permanece, portanto, como consideração essencial na filosofia nietzscheana. Ele assim a formula nessa etapa: “Se considerarmos que toda ação de um homem...de alguma maneira vai ocasionar outras ações, decisões e pensamentos, que tudo o que ocorre se liga indissoluvelmente ao que vai ocorrer, perceberemos a verdadeira eternidade que é a do movimento: o que uma vez se moveu está encerrado e eternizado na cadeia total do que existe, como um inseto

no âmbar” (HDH, 208). Há aqui um curioso contraste entre a ideia da eternidade como movimento e a eterna petrificação de tudo o que uma vez se moveu. Para que o reconhecimento da necessidade por parte do espírito livre não seja uma submissão estúpida a ela, para que o inexorável curso do acontecer não se confunda com um implacável castigo, para a afirmação de uma vontade livre, enfim, Nietzsche fará novas construções, que hão de levá-lo ao amor fati, exigindo a doutrina do eterno retorno.

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 163-170)

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