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A filosofia de Agostinho na história da vontade

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 76-79)

A vontade a partir do cristianismo

2.1 A vontade em Santo Agostinho

2.1.3 A filosofia de Agostinho na história da vontade

A filosofia agostiniana, observa Dihle (1982), interpreta a liberdade de escolha, tradicionalmente atribuída a todos os seres racionais, como liberdade da vontade, da qual depende a vida moral e religiosa. A resposta ao chamado de Deus é uma decisão da

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Ou todas as almas provêm de uma só; ou a cada nascimento humano, uma nova alma é criada;ou as almas já existentes em qualquer outro lugar são enviadas, por Deus, aos corpos daqueles que nascem; ou, enfim, elas descem por sua própria vontade para estes corpos. Contudo, embora não haja acordo a respeito de qual dessas hipóteses é a verdadeira, as coisas futuras importam mais do que as passadas, diz Agostinho: que inconveniente haveria no fato de ignorarmos quando começamos a existir, se constatamos que existimos agora e não desesperamos de continuar a existir no futuro?

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Agostinho, observa Dihle (1982), redescobre a doutrina da predestinação em São Paulo, “Ama e fez o que quiseres”; o amor a Deus e ao próximo é a condição da vida virtuosa.

vontade, anterior a qualquer raciocínio; a consciência é o inato conhecimento do bem e do mal que todo homem possui, precedendo qualquer atividade intencional do intelecto. O mal, entendido como ausência do bem na tradição anterior, é substituído pela vontade má.

O mesmo autor ressalta a importância do auto-exame em Agostinho, do qual resultaria o papel chave que atribui à vontade. Leitor de Plotino, que nunca fala de si, Agostinho fala continuamente de si mesmo, diz Reale (1990), tratando, pois, não da essência do homem em geral, ou da alma e da interioridade em abstrato, mas do homem como indivíduo irrepetível, como pessoa29.

É conhecida a controvérsia com os pelagistas na elaboração da concepção agostiana de liberdade da vontade. Pelágio enfatiza a importância do próprio esforço do homem, atribuindo à graça divina apenas os dons da razão e da livre escolha. Em Agostinho, diferentemente, a vontade humana, pervertida por sua tentativa de tornar-se independente do Criador, é impelida a escolher o pior, e pode ser curada apenas pela graça de Deus, numa intervenção imprevisível, inexplicável, não influenciável pela atividade humana. Enquanto os pelagistas consideram Adão apenas um exemplo nefasto, diz Pépin (1974), Santo Agostinho sustenta a tese do pecado original, que destrói nossa liberdade, por que não podemos por nós mesmos deixar de pecar; a vontade impenetrável e soberana de Deus cria os valores a seu bel prazer, de tal forma que a obediência cega de Abraão é o único fator de moralidade.

Vetö (2005) detém-se particularmente no discernimento da não-naturalidade da vontade, que lhe parece consistir a intuição central de Agostinho sobre o tema. O mal moral, ou seja, a má vontade, não provém da natureza, mas acusa uma realidade de outra ordem. O querer não surge do universo físico, a vontade não é uma natureza. Surge daí uma interrogação, desenvolvida na elaboração filosófica posterior, quanto à inteligibilidade própria da vontade, que, sobretudo ao manifestar-se como má, portanto desviante, não está submetida à mesma lógica que os objetos do mundo. Nesse sentido, explicita-se pela primeira vez a intuição da diferença entre a força e o sentido da

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Reale (1990), a esse propósito, cita Pohlenz, segundo o qual o problema do Eu, surgido do conflito do querer, é superado por Agostinho ao abdicar inteiramente de sua vontade pela vontade de Deus _ e traz assim algo totalmente novo com relação ao pensamento clássico, para o qual o Eu como suporte unitário da vida é um dado tão imediato de consciência que não se torna objeto de reflexão, e a vontade permanece apenas como função do intelecto, que indica a meta a alcançar.

vontade. Enquanto a força querente é uma faculdade natural, que se dirige necessariamente a coisas exteriores e contingentes, a vontade é matéria de pura intenção, da qual depende a qualidade do ato moral.

Por conseguinte, há duas orientações possíveis para a vontade, que se refletem em duas relações distintas com o objeto do nosso querer: podemos usufruir dele, ou seja, apegarmo-nos a ele amorosamente por si mesmo, ou podemos fazer uso dele. Essa distinção, destinada a uma grande fortuna na história do pensamento moral, diz Vetö, acabará por ser absorvida na doutrina kantiana da autonomia e heteronomia morais. Contudo, segundo Schopenhauer (1992), Agostinho, embora tendo sido o primeiro a conhecer adequadamente o problema, esbarra em um grande embaraço em seu O Livre

arbítrio. Diferentemente de Pelágio, ele não quer conceder ao homem o livre arbítrio,

por temer que o pecado original, a necessidade de redenção e a graça acabem suprimidos, e que, por conseguinte, o homem possa por seu próprio mérito tornar-se justo e ganhar a salvação. Sustenta, pois, que os homens não poderiam viver segundo a justiça se a vontade humana não for libertada por Deus da servidão que a submete ao pecado. Entretanto, em sua oposição aos maniqueus, que admitem um princípio do mal no universo, e movido sobretudo pela necessidade um tanto embaraçosa de harmonizar a responsabilidade do homem com a justiça de Deus, Agostinho sustenta que a alma recebeu de Deus o livre arbítrio. Essa questão, elidida por filósofos que sucederam Agostinho, teria sido retomada por Lutero em seu Servo arbítrio, ao dizer que não agimos como queremos, pois a presciência e a onipotência divinas encontram-se em oposição radical à ideia da liberdade da vontade.

Cumpre ainda destacar concepções que nos pareceram importantes em Agostinho, algumas das quais desenvolvem temas já presentes em alguns dos filósofos aqui estudados, ou antecipam outros que estudaremos ainda. Reencontra-se no filósofo, embora sob outra roupagem, a antiga questão da distinção entre bem aparente e bem real, tratada em Platão e Aristóteles: quem deseja aquilo que não deveria desejar está em erro, ainda que deseje aquilo que lhe parece ser um bem. A identificação entre querer e poder _ que ressurge em Kant, para o qual, no âmbito da ação moral, cada um pode o que quer _ enfatiza o poderio da vontade, ao passo que, paradoxalmente, a teoria da graça divina, sem a qual a vontade não pode ser boa, realça sua impotência. A ideia da causalidade da vontade apresenta-se claramente, quando Agostinho faz ver que é ocioso

indagar a causa do ato da vontade, pois, se pudessémos encontrá-la, perguntaríamos, ainda, qual a causa dessa causa, tornando infindável a busca. Caracteristicamente agostiniana é a ideia de que todos os bens provêm de Deus, enquanto todo defeito provém do não ser, inclusive o movimento voluntário, e não natural, pelo qual nos desviamos Dele; desse modo, a perfeita harmonia da criação, da qual participam inclusive as almas pecadoras, reconstitui-se, através do castigo, quando ameaçada pelo pecado.

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 76-79)

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