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O otimismo da lógica

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 114-118)

Da sabedoria trágica à filosofia histórica

3.3 Consideração teórica x consideração trágica do mundo

3.3.1 O otimismo da lógica

Os aspectos destacados pelo próprio Nietzsche em Ecce homo como “as duas decisivas novidades” presentes no Nascimento da tragédia _ a compreensão do fenômeno dionisíaco nos gregos, e a do socratismo como sinal de declínio de sua cultura _ relacionam-se, ambos, com a noção de sabedoria trágica, apresentada então pela primeira vez.

Na abordagem do fenômeno do socratismo estético, da qual trataremos neste capítulo, nos interessam suas relações com o conhecimento e a moral, instaurando a nova cultura teórica; a apreensão do “elemento dionisíaco”, embora estreitamente ligada à primeira, será examinada no oitavo capítulo.

Embora Nietzsche aborde neste livro questões relativas à história e à filosofia da arte, a “morte da tragédia” não é tratada num âmbito estritamente estético, e sim como sintoma de uma profunda transformação cultural que se manifesta sobretudo na forma de conceber e valorizar o saber. Eurípides interessa-o como a máscara e o porta-voz de um outro: o filósofo Sócrates, representando o advento de uma nova cultura teórica que irá estender-se por toda a terra.

A assimilação do dionisíaco e sua conciliação com o apolíneo caracterizam a época trágica dos gregos, que, segundo Nietzsche, não toma a racionalidade como base nem para o conhecimento nem para a conduta moral. Essa interpretação é muito própria a Nietzsche; difere bastante, como se pode ver, daquela que examinamos no item 1.1 deste trabalho, que considera o racionalismo como um atributo já característico dos antigos gregos, inclusive em sua concepção da ação moral. Se a precisão, a clareza, a medida de Apolo sempre se fizeram presentes nesta cultura, ela só adquire seu pleno vigor, segundo o filósofo, ao entrelaçar-se com a desmesura dionisíaca. Nesse sentido, a

filosofia socrático-platônica não seria o apogeu de um crescente desenvolvimento da razão, e sim um ponto de ruptura com a época trágica dos gregos.

Eurípides, diz Nietzsche, com seu potente talento crítico, não podia apreciar na obra de seus antecessores algo de incomensurável e enigmático, resultante da mescla entre Dionísio e Apolo. Não concebendo a fruição sem o entendimento, procurou abolir da tragédia o elemento dionisíaco, buscando fundá-la unicamente no apolíneo; recorreu aos mais diversos expedientes para tornar inteligível o drama, buscando assegurar a realidade do mito, enquanto reduzia o lugar até então ocupado pela música. Ora, dessa forma já não restava senão o epos dramatizado, no qual poeta e atores, sem misturar-se com suas imagens, apenas miram-nas à distância, sem obter, portanto, o pathos trágico. Embora visando incluir o espectador na ação dramática, na verdade todos os seus protagonistas eram afastados dela, já não mais partilhando o estado dionisíaco que fazia da tragédia a experiência viva e singular de um povo (NT, 11-12).

Todavia, Eurípides lhe parece sobretudo um porta-voz de Sócrates, em seu desapreço pela tragédia e por aquilo que ela representava: a capacidade inconsciente e instintiva de criação. Sócrates julgava ver em seus contemporâneos uma presunção de saber, na ausência de um saber efetivo: espantava-o que homens considerados sábios não pudessem fundamentar racionalmente o que faziam (NT, 13). Os poetas, como os adivinhos, diziam muitas coisas belas, sem nada saber daquilo que diziam, e sim por uma inspiração desconhecida ou inexplicável para o racionalismo socrático. Nietzsche, aqui, relembra a valoração negativa da arte e sua incompatibilidade com o conhecimento verdadeiro que encontramos em alguns diálogos platônicos, entre os quais a Apologia e A República.

Assim, o que Sócrates desconhecia e não podia aceitar era o saber instintivo do qual nasceu não só a tragédia, mas toda arte e toda ética vigente entre os gregos. Através de uma “inaudita valorização do saber”, torna-se o precursor de uma cultura, uma arte e uma moral inteiramente distintas, nas quais a visão trágica, característica dos gregos, dá lugar a uma consideração teórica do mundo.

Nietzsche supõe uma peculiar inversão na natureza de Sócrates, o homem não místico por excelência: enquanto nos outros homens o instinto é a força criativa e afirmativa, tendo a consciência apenas uma função de dissuasão, nele o impulso lógico tem o potente vigor de uma força instintiva, enquanto o instinto, através de seu daímon,

exerce apenas um poder de veto sobre suas ações (NT, 13). Todavia, a força do socratismo lógico, que transparece nos diálogos platônicos, encontra-se por trás do próprio Sócrates. Pela primeira vez surge no mundo, através de sua pessoa, “aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em condições não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo” (NT, 15).

Ditada pelo otimismo da lógica, não é menos ilusória a nova representação que guia o homem teórico. Ela possui, certamente, o poder de toda ilusão na qual se crê: neste sentido, modifica profundamente o mundo humano, instaurando “pela primeira vez sobre toda a terra o conjunto de uma rede de pensamentos” (NT, 15). Resulta, porém, pensa Nietzsche, numa degeneração da cultura grega que se estende até os nossos dias. O homem teórico, incapaz do “consolo metafísico” do mito trágico, encerra-se “num círculo estreitíssimo de tarefas solucionáveis”, que lhe permitem desejar viver porque a vida é digna de ser conhecida (NT, 17). Entretanto, a lógica acaba por morder a própria cauda, demonstrando a impossibilidade da tarefa à qual se propôs: apesar da fé otimista do homem teórico, o pensar não pode conhecer e corrigir o ser pelo fio da causalidade. Fatalmente, o homem volta a necessitar da redenção da arte, através da qual a sabedoria trágica torna-se mais uma vez possível (NT, 15).

Pode-se constatar a persistência dessa avaliação da filosofia socrático-platônica na origem do declínio da cultura em várias outras passagens da obra de Nietzsche. Por hora, limitamo-nos ao Crepúsculo dos ídolos: “Eu percebi Sócrates e Platão como instrumentos da dissolução grega”. Em Sócrates, ressaltará então não apenas a “superafetação da lógica”, mas também a “malvadez de raquítico” que o coloca na origem da moral do ressentimento (CI, II, 4). Portando em si a anarquia dos instintos tornada comum entre os gregos, encontrou o remédio do qual necessitavam, qual seja, opor a seus desejos obscuros a permanente defesa da racionalidade. Nessa necessidade de combater os instintos, pela ausência de um arranjo próprio a eles, reside justamente a fórmula daquilo que Nietzsche passa a chamar de décadence. Décadence, niilismo, ideal ascético: à luz destes novos conceitos e de uma outra terminologia, mantém-se a apreciação desfavorável da filosofia socrática como um sinal de degeneração da cultura.41

41 Nietzsche se refere a Sócrates, e a Platão, principalmente, com respeito e admiração em diversas

passagens, em contraste com outras, hostis e mesmo agressivas a eles. Estas últimas, assim nos parece, são recursos retóricos para apresentar uma ideia realmente sustentada por Nietzsche, qual seja, a de que o

Uma questão relevante para este trabalho consiste nas relações entre crítica à ciência e crítica à moral, que caminham juntas no primeiro e no último Nietzsche. O que sustenta aqui o filósofo é o caráter intrinsecamente moralizante do otimismo da dialética e da lógica. Por um lado, o próprio surgimento da ciência pressupõe uma necessidade de justificação da existência pelo conhecimento que é, ela própria, de ordem moral. Por outro lado, o socratismo estético _ tudo deve ser consciente para ser belo _ tem como correlata a moralidade _“Tudo deve ser consciente para ser bom” _ que, por sua vez, assegura a felicidade: “Só o virtuoso é feliz” (NT, 12). No Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche mais uma vez há de referir-se pejorativamente à “bizarra equação socrática de razão = virtude = conhecimento”, que contraria radicalmente, a seu ver, os mais poderosos instintos dos gregos antigos. Mais uma vez, destacamos quão distinta é a sua leitura daquela dos intérpretes para os quais o adágio socrático segundo o qual “ninguém erra de propósito” encontra-se profundamente arraigado na antiga cultura grega.

De agora em diante, prossegue Nietzsche em O nascimento da tragédia, o otimismo dialético faz da recompensa ao herói virtuoso o desfecho necessário do drama, aburguesando-o; já não se encontra o prazer dionisíaco do aniquilamento do herói trágico (NT, 17). Apenas o que é justo se justifica, enquanto na tragédia “tudo o que existe é justo e injusto, e em ambos os casos igualmente justificado” (NT, 9). A partir de então, deve haver entre virtude e saber, crença e moral, uma relação obrigatoriamente visível. Mais, ainda, Nietzsche já antecipa aqui polemicamente a ligação entre o otimismo da ciência e as ideias que mais tarde chamará de “modernas”: embora necessite de uma classe de escravos, a cultura alexandrina ou teórica nega esta necessidade, com suas palavras vazias sobre a “dignidade da pessoa humana” e a “dignidade do trabalho”: a crença na felicidade terrena de todos converte-se na ameaçadora exigência dessa felicidade (NT, 18). Assim, a associação entre o ideário da igualdade e a ciência é colocada em termos tais que as “ideias modernas”, o utilitarismo, a democracia, dos nossos tempos são postos em relação com o percurso histórico que, desde Sócrates, nos torna mais lógicos, mais otimistas e mais científicos.

A filosofia alemã, aliada à música alemã, é apontada por Nietzsche como capaz de ressuscitar a tragédia e a consideração trágica do mundo. Kant e Schopenhauer são

pensamento socrático-platônico institui um modo de filosofar constitutivo do ideal ascético, ao qual se opõe sua própria filosofia.

invocados como os bravos representantes modernos do conhecimento trágico: enquanto a nova cultura teórica necessita de crer no espaço, no tempo e na causalidade como leis incondicionais universalmente válidas, esses filósofos, mostrando o caráter condicionado destas categorias, e, portanto, os limites do conhecimento obtido a partir delas, negam sua pretensão à validade universal. Destarte, contribuem para abalar o otimismo lógico da cultura socrática, já não mais convencida da segurança infalível de seus fundamentos, possibilitando um ressurgimento da cultura trágica, que viria recolocar a sabedoria trágica no lugar do qual a ciência a afastou (NT, 18).

Nietzsche assinala o embrião do discurso científico já presente na dialética socrática, anunciando “uma avidez de saber jamais pressentida que instaura pela primeira vez sobre toda a terra o conjunto de uma rede de pensamentos, com vistas mesmo ao estabelecimento de leis para o próprio sistema solar” (NT, 15). Dessa forma, um posicionamento crítico sobre a ciência, em seus laços com a moral, se manifesta neste primeiro livro, ainda que sobre o fundo de concepções posteriormente abandonadas pelo autor.

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 114-118)

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