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A causalidade pela liberdade: mundo sensível x mundo inteligível

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 87-90)

A vontade a partir do cristianismo

2.2 A autonomia da vontade em Kant

2.2.2 A filosofia prática kantiana: alguns aspectos

2.2.2.3 A causalidade pela liberdade: mundo sensível x mundo inteligível

Kant, na Crítica da razão pura, buscando resolver a terceira antinomia da razão, qual seja, a contraposição liberdade x necessidade, encontra a possibilidade de fazê-lo através da distinção entre caráter inteligível e caráter sensível, segundo a qual a regularidade exibida por nossas ações, conectadas têmporo-espacialmente segundo a lei de causalidade, seria a expressão de nosso caráter sensível ou empírico, este último determinado pela causalidade da razão. Não sendo submetida à forma temporal, ou seja, à lei natural dos fenômenos, na medida em que esta determina temporalmente séries causais, a causalidade da razão não surge, nem começa a produzir um efeito depois de um certo tempo. Se a razão possuir uma causalidade com respeito aos fenômenos, então ela é um poder através do qual começa primeiramente, a condição sensível de uma série empírica de efeitos, de tal forma que a condição de uma série sucessiva de eventos poderia ser ela mesma empiricamente incondicionada, embora aparecendo no plano empírico em conformidade com a causalidade da natureza.

A distinção entre estes dois tipos de causalidade mostra-se fundamental para a elaboração kantiana da noção de vontade livre.

A forma da legislação universal como fundamento suficiente de determinação da vontade pode ser representada apenas pela razão, pois não é objeto dos sentidos nem faz parte dos fenômenos; ela deve, pois, determinar a vontade segundo uma causalidade diferente daquela que determina os eventos da natureza. Kant denomina como

liberdade transcendental a independência que a vontade assim determinada guarda com relação à lei da causalidade, conceituando como vontade livre aquela para a qual a pura forma legisladora da máxima pode servir de lei (CRPr, p.48). Como a natureza sensu

latu supõe a existência de coisas sob leis, teríamos, por um lado, a natureza sensível dos

seres racionais, existindo sob leis empiricamente condicionadas; de outro, a sua natureza supra-sensível, sob leis independentes de toda condição empírica. Nessa última esfera situa-se a autonomia da razão pura, cuja lei é a lei moral. A liberdade, admitida como possível pela razão teórica, mostra a realidade do seu poder nos seres que reconhecem a lei moral como obrigatória para si mesmos. Logo, a lei moral, que não necessita de fundamentos que a justifiquem, equivale à lei da causalidade pela liberdade, apontando a possibilidade de uma natureza supra-sensível (CRPr, p.76). O conceito problemático de liberdade da razão teórica, como causalidade que se determina completamente a si mesma, adquire agora realidade indubitável, embora apenas prática. Em suma, a própria lei de uma causalidade da vontade tem uma causalidade em si mesma; o seu princípio é o fundamento determinante dessa causalidade (CRPr, pp.79-80).

Dessa forma, a realidade objetiva do conceito de causa vale para o noumenon, podendo ser usada para ele, embora não para produzir conhecimentos a seu respeito. (CRPr, p.87). Mas por que não nos basta o conceito de causalidade aplicado aos fenômenos, e queremos aplicá-lo às coisas em si? É uma intenção prática que faz disso uma necessidade, diz Kant. O conceito de vontade pura, ou razão prática, contém o conceito de uma causalidade como liberdade, não determinável segundo as leis da natureza. Assim, o conceito de um ser que possui vontade livre é idêntico ao conceito de uma causa noumenon. Eis o que permite a união do conceito de causalidade com o de liberdade. O conceito de uma causalidade empiricamente incondicionada, embora teoricamente vazio, adquire uma significação na lei moral, tendo uma aplicação real em intenções ou máximas (CRPr, pp. 88-90).

Aparentemente, prossegue Kant na Crítica da razão prática, um conceito de bem deve servir de fundamento à lei moral. Contudo, teria sido este o erro de todos os filósofos quanto aos princípios da moral, buscando um objeto da vontade - o bem supremo, a felicidade, a perfeição, a vontade de Deus - como matéria e fundamento da lei; nesse caminho, acabavam por deparar-se com condições empíricas para uma lei

moral, pois a pedra de toque só pode ser a conformidade do objeto com o prazer ou o desprazer. Ora, o conceito do bem e do mal não deve ser determinado antes da lei moral, mas apenas segundo esta lei, e por ela. O sumo bem é o objeto de uma razão pura prática, ou de uma vontade pura, mas não o seu princípio de determinação: é a lei moral a causa que determina a razão a fazer do sumo bem o seu objeto (CRPr, p.179).

A faculdade de julgar prática parece ter dificuldades particulares, pois uma lei da liberdade deve aplicar-se a ações que são da esfera da natureza. Eis a sua regra: “Quanto à ação que pretendes, pergunta a ti mesmo se podes considerá-la possível, mediante a tua vontade, supondo que ela deveria ocorrer segundo uma lei da natureza da qual também fazes parte”. Aqui uma lei universal da natureza é tomada não como princípio determinante da vontade, e sim como um tipo: se a máxima da ação não resiste a um confronto com a forma de uma lei natural, tal máxima é moralmente impossível, pois as leis enquanto tais são idênticas, seja de onde for que queiram tomar seus princípios de determinação (CRPr, pp.108-09).

Como implicações da doutrina kantiana para a imputação moral, temos os exemplos do arrependimento _ uma sensação dolorosa e estéril, porque não se consegue evitar o que já aconteceu, mas legítima enquanto dor, porque a razão não reconhece distinção temporal quando se trata da lei moral, indagando apenas se o ato me pertence ou não; e o dos malvados natos _ nós os julgamos porque suas ações não derivam de uma natureza má da vontade, e sim de princípios maus voluntariamente adotados, que os tornam ainda mais reprováveis e dignos de castigo (CRPr, pp.160-62).

A responsabilidade moral exige a distinção entre o conceito empírico de liberdade como propriedade psicológica, consistindo no encadeamento interior de representações da alma, e seu conceito transcendente, segundo o qual é independente de todo elemento empírico, logo, alheia à natureza em geral Seria um expediente mesquinho, ressalta Kant, chamar de efeito livre aquilo cujo fundamento, naturalmente determinado, está no interior do agente. Se a liberdade da vontade não fosse mais que a liberdade psicológica, seria semelhante “à liberdade de um mecanismo que, uma vez dada a corda, executa por si os seus movimentos” (CRPr, pp.153-57).

Enquanto a causalidade como necessidade natural refere-se apenas à existência das coisas enquanto determináveis no tempo, logo, enquanto fenômenos, a causalidade

como liberdade refere-se às coisas enquanto tais. Toda ação no tempo está necessariamente condicionada por aquilo que ocorreu antes, sendo indiferente que a causalidade enquanto lei natural se faça necessária por princípios de determinação situados dentro ou fora do sujeito; quer as representações interiores que determinam uma ação derivem de sua existência no tempo ou de um estado exterior, estarão de qualquer forma submetidas à ordem temporal, que não está em seu poder. Nessa infinita sucessão de elos naturais, não há lugar para a liberdade; seu conceito, portanto, seria quimérico e impossível sem considerar as coisas em si (CRPr, pp.154-55).

Como, porém, pergunta Kant, pode ser inteiramente livre aquele que, no mesmo momento e relativamente à mesma ação, está submetido a uma necessidade natural inevitável (CRPr, p.155)? Sua resposta é que o mesmo sujeito tem, por outro lado, a consciência de sua existência como coisa em si, na qual não há nada anterior à determinação de sua vontade. A série total de sua existência sensível, portanto, é consequência da inteligível (CRPr, p.158). Dessa forma, afirma: se pudéssemos ter uma visão tão profunda de um homem que nos mostrasse tanto os mais insignificantes dos seus motivos, como as circunstâncias exteriores que agem sobre ele, poderíamos calcular sua conduta com tanta exatidão como um eclipse, e, ainda assim, sustentar que o homem é livre (CRPr, p.161). A mesma ação que é, enquanto inscrita no mundo sensível, sempre condicionada pela sensibilidade, pode ter por fundamento uma causalidade sensivelmente incondicionada _ logo, pode ser livre.

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 87-90)

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