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Castigo e recompensa

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 42-45)

Platão e Aristóteles: uma ética anterior à vontade

1.2 Platão: conduta moral e discurso verdadeiro

1.2.3 Castigo e recompensa

Cabe destacar, a propósito da concepção platônica de justiça, o lugar conferido ao castigo. Considerado benéfico ou terapêutico para aquele que o sofre justamente, ele se justifica não apenas nessa vida, mas também naquela que aguarda a alma após a morte do corpo.

Enquanto o mito do anel de Giges, na República, quer mostrar que o homem injusto é mais feliz, desde que permaneça impune, e Polos, no Górgias, afirma que ele só será infeliz se for castigado, Sócrates sustenta, pelo contrário, que será menos infeliz se o for (G, 472-4). Sendo justo sofrer pena em virtude de uma falta, age justamente aquele que pune, e sofre também justamente quem a recebe. O homem punido com razão daí aufere vantagem, pois sua alma liberta-se da injustiça. Assim como a medicina livra o corpo da doença, embora de maneira dolorosa, também o castigo livra a alma através da dor. Não há infelicidade maior do que aquela trazida pela injustiça para a alma daquele que a comete: eis por quê o tirano Arquilau, longe de ser o mais feliz dos homens por sua impunidade após os crimes cometidos, como pretendem os interlocutores de Sócrates, seria antes o mais infeliz deles (G, 476-79).

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Como assinala Chatêlet (1974), o discurso integralmente justificado deve corresponder a uma organização das essências, de tal forma que não seja apenas uma ordem de razões, mas também uma ordem do ser.

Deve-se sublinhar ainda o lugar ocupado pela imortalidade da alma e as punições e recompensas recebidas na vida após a morte na fundamentação da exigência de uma vida virtuosa. Esse lugar varia em diferentes diálogos, adquirindo importância crescente. Podemos vê-lo claramente na trilogia relativa à condenação de Sócrates, na

Apologia; à sua aceitação da sentença, no Críton; e à sua morte, no Fédon. A Apologia

mostra-nos Sócrates diante do tribunal, apresentando como pauta de sua conduta o seguimento das ordens divinas. No Críton, justifica sua aceitação da sentença pela obediência às leis da cidade. Apenas no Fédon, porém que se encerra com o cumprimento da pena de morte, apresenta-se um Sócrates cujo destemor diante da morte explica-se por sua convicção quanto à imortalidade da alma.

Sócrates afirma sua crença numa vida depois da morte, conforme reza a tradição. Contudo, a essa crença, busca somar uma demonstração racional, através das provas da imortalidade da alma. Não se pretende recapitulá-las aqui. Basta lembrar que tal imortalidade é afirmada, no Fédon, após o estabelecimento da distinção entre as duas classes de realidade, a invisível e a invisível. A importância do cuidado da alma encontra aqui justificação por sua pertinência à realidade imutável, à qual se relaciona sua essência imortal. Em A República, a imortalidade da alma é reafirmada, e mais uma vez empreendida a sua demonstração. Ao fazê-lo, Sócrates considera já estabelecido que a justiça em si mesma é a coisa melhor para a alma, recebendo ou não reconhecimento e recompensa pelos homens. Os deuses amam os justos e não os negligenciam, cuidando de que sejam recompensados já nessa vida, e de que sejam punidos os injustos (R, 613). Entretanto, não são essas as recompensas máximas da virtude: os bens recebidos nesta vida nada são em comparação com aqueles que aguardam o homem justo após a morte (R, 614). Por conseguinte, a imortalidade da alma, estreitamente ligada ao merecimento de prêmios e castigos ao longo da eternidade, também reiterada no Górgias e no Fedro, dentre outros diálogos, mostra sua importância na fundamentação socrática da justiça.

Os dois termos dessa doutrina são apresentados de forma diferente: enquanto a imortalidade da alma é objeto de argumentos racionais que pretendem prová-la, a existência de recompensas e castigos após a morte, assim como seu conteúdo e teor, são costumeiramente ilustrados através do recurso ao mito. Platão descreve prêmios e penas de diferentes maneiras em diferentes diálogos, repetindo alguns elementos e modificando outros. As almas justas ou injustas recebem castigo ou recompensa nas

encarnações futuras, seja em corpos de homens ou de animais. A ida da alma virtuosa para lugares privilegiados é constantemente reiterada, quer sejam eles a verdadeira superfície da terra, no Fédon, as Ilhas Bem Aventuradas do Górgias, o Hiperurânio do

Fedro ou o céu da República. Aquelas que cometeram faltas graves caem no abismo do

Tártaro _ encontrando-se presente a ideia de um castigo eterno, aplicado àqueles que cometeram faltas irremediáveis.

A existência de um julgamento após a morte é afirmada no relato de Er, o armênio (R, 615), onde se descreve um lugar divino onde estão sentados os juízes, prescrevendo às almas dos justos que subam, e às dos injustos, que desçam. No Górgias, o tema do julgamento é desenvolvido num outro mito, segundo o qual os homens, outrora julgados vivos, por outros homens vivos, passam, por decreto de Zeus, a ser julgados despidos, sem o invólucro do corpo que disfarce as marcas da injustiça em suas almas (G, 523- 526).

A justiça inerente ao destino das almas é reforçada pelo destaque à responsabilidade pela escolha moral, tal como se encontra em A República. Ao tratar das mentiras sem nobreza dos poetas, Sócrates sustenta que podemos atribuir aos deuses a causa dos nossos bens, mas não dos nossos males. Parecem-lhe absurdas as palavras de Homero, segundo as quais Zeus distribui a quem quer destinos bons e maus; ou as de Ésquilo, ao dizer que Deus faz surgir uma falta no homem quando quer arruinar uma casa. Sendo bom, o deus não pode ter sido causa de desgraças para ninguém. O poeta não deve dizer que é desgraçado aquele que expia a pena, atribuindo ao deus a autoria da desgraça; e sim, pelo contrário, que os maus precisam de castigo, recebendo, pela expiação de seu crime, um benefício do deus (R, 379).

Essa ideia é reiterada no livro X de A República, a propósito da escolha entre os modelos de vida que as almas devem efetuar. Embora se apresentem escolhas mais sedutoras, a melhor delas consiste numa vida justa _ para a qual estão mais aptas as almas que estudam a filosofia. O fator da sorte não está ausente, pois as almas sorteadas primeiro têm maior número de opções; contudo, mesmo quem vier em último lugar terá uma vida agradável se souber escolher, sendo determinante para tal o que se aprendeu na encarnação anterior. Feita a escolha, a alma fica ligada a ela pela necessidade. Contudo, tal obrigação só se instaura após uma escolha pela qual a alma é responsável,

conforme anuncia Laquésis: “A responsabilidade é de quem escolhe; o deus é isento de culpa” (R, 617).

Sócrates preconiza certa reserva diante destas histórias, como faz ao dizer no Fédon: “Pretender que tais coisas sejam realmente tais como as descrevi, não será coisa de um homem de bom senso” Acrescenta, contudo: “Mas acreditar que algo semelhante venha a acontecer com as almas e seu destino _ uma vez que esta é imortal, como é evidente _ eis a opinião que parece boa e digna de confiança” (Fédon, 114). Ou seja, uma vez estabelecida a imortalidade da alma, é certo que as almas virtuosas receberão prêmios, e as más, castigo, não importando se consistem exatamente naqueles que nos relatam os mitos.

Vale observar que, sem a doutrina da imortalidade da alma e dos castigos e recompensas que sofre, a fundamentação da justiça em Platão permaneceria incompleta: o empreendimento de uma vida justa, por mais conforme que seja à racionalidade da ordem das coisas, adquire seu pleno sentido sobretudo a partir do momento em que castigo e recompensa são incluídos nesta mesma ordem.

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 42-45)

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