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O conhecimento desinteressado

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 92-95)

A vontade a partir do cristianismo

2.3 A vontade em Schopenhauer

2.3.1 O conhecimento desinteressado

A filosofia de Schopenhauer distingue o mundo como representação, tendo como

metades inseparáveis o sujeito e o objeto; e o mundo como vontade, primordial e una, que corresponderia à coisa em si kantiana. O tempo, o espaço e a causalidade são formas universais de todo objeto, também encontradas a partir do sujeito (MRV, I, §2). O princípio da razão é a expressão comum para essas formas do objeto das quais estamos conscientes a priori; submetido a ele, todo objeto está em relação com outros, de um lado determinado, de outro determinante (MRV, I, §3). A vontade, una e indivisa, objetiva-se fenomenicamente na pluralidade da representação.

Enquanto o entendimento, comum ao homem e aos animais, tem como única função o conhecimento causa-efeito segundo o princípio da razão, essencialmente intuitivo, à razão, presente apenas no homem, compete a formação de conceitos, através do conhecimento reflexivo, que permite ponderar, prever o futuro, usar a linguagem, agir em concordância. Cabe à faculdade de juízo, intermediária entre o entendimento e a razão, transmitir corretamente para a consciência abstrata o que foi conhecido intuitivamente. Contudo, os conceitos, representações de representações, nada seriam sem as representações intuitivas. Tanto a priori quanto empiricamente, a intuição é a fonte de toda verdade e o fundamento de qualquer ciência, com exceção da lógica, que é

ciência pura da razão (MRV, I, §9). Toda evidência última é intuitiva, de tal forma que ciência alguma pode ser inteiramente demonstrável. A título de exemplo, as forças naturais, como a gravidade, a rigidez, etc, essências íntimas dos fenômenos, não podem ser fundamentadas, pois a explanação começa a partir delas; podemos conhecer apenas a lei natural, ou seja, a aparição necessária e regular de uma força natural sob certas condições (MRV, 1, §14).

De fora não é possível chegar à essência das coisas: a significação das representações não se pode alcançar a partir da representação, segundo o princípio de razão, e sim necessita subtrair-se completamente às suas formas e leis. Ora, o sujeito que conhece se enraíza no mundo como indivíduo, sendo o seu conhecimento intermediado por um corpo, que lhe é dado de dupla maneira. Por um lado, aparece a ele como representação entre outras; por outro, como aquilo que é conhecido imediatamente por cada um, indicado pela palavra vontade, de tal forma que todo ato da vontade é simultaneamente um movimento do corpo (MRV, II, 18). O sujeito do conhecimento, tendo acesso à vontade através do corpo, para além da representação, pode reconhecê-la como a essência mais íntima não apenas de fenômenos semelhantes aos nossos, nos homens e nos animais, mas também na força que age na planta, no cristal, ou na própria gravidade: tudo isso, conforme sua essência, é vontade (MRV, II, § 1).

O aparecimento da vontade na representação possui infinitas gradações. As forças mais universais da natureza são os seus graus mais baixos de objetivação; nos mais altos, ou seja, no homem, a individualidade surge em grande diversidade de caracteres individuais, de tal forma que cada homem é um fenômeno particularmente determinado e característico da vontade (MRV, II, §26).

A vontade não tem fundamento, nem razão, nem causas, nem finalidades: é livre, independendo do princípio de razão que a representação deve seguir. Sendo una, livre de pluralidade, manifesta-se todavia numa luta geral, numa discórdia essencial consigo mesma, que se desdobra nos conflitos presentes em toda parte da natureza: o mundo da representação é uma contínua batalha entre as vontades individuais. Nessa luta, a vontade não cessa de morder a própria carne: faminta, devora-se a si mesma, por não existir nada que lhe seja exterior (MRV, II, § 27).

Se os atos da vontade, no caso do homem, têm sempre um fundamento exterior a si, que reside nos motivos, estes apenas determinam o que eu quero nesse lugar, nesse tempo, nestas circunstâncias, e não o que eu quero em geral, a essência do meu querer. A vontade está fora da lei da motivação, que pertence ao princípio da razão, e determina apenas os fenômenos (MRV, II, §20). O que um homem realmente quer nunca pode mudar por ação exterior a ele; os motivos podem apenas levar a vontade a procurar o que inalteradamente procura por um caminho diferente do que seguira até então (MRV, III, §55). Aqui, mostra-se de grande importância para Schopenhauer a distinção kantiana entre caráter inteligível e empírico. O caráter de cada homem, completamente individual, é uma ideia particular, no sentido schopenhaueriano do termo, correspondendo a um ato próprio de objetivação da vontade, que constitui o caráter inteligível, não submetido ao princípio da razão. O caráter empírico é absolutamente determinado pelo caráter inteligível, fornecendo ao longo da vida a sua imagem-cópia, e não podendo tomar outra direção senão aquela que dele recebe (MRV, II, §28).

Não sendo guiada pelos motivos, que não explicam o querer em sua essência, mas são apenas suas manifestações num momento dado, a vontade tampouco se deixa dirigir pelo conhecimento. O conhecimento, intuitivo ou racional, é um meio para a conservação do indivíduo e da espécie, ou seja, visa originariamente realizar os fins da vontade, mantendo-se, por conseguinte, subordinado a ela (MRV, II, 27, §27).

Entretanto, é possível um segundo tipo de conhecimento, mais elevado do que aquele que se submete ao princípio da razão suficiente: trata-se do conhecimento das ideias, independente dele (MRV, III, §34). As ideias, para Schopenhauer, que as toma de empréstimo a Platão e aproxima-as de Kant, reformulando-as a seu modo, são as propriedades universais e imutáveis dos corpos particulares, fora do espaço, do tempo e da causalidade; são as formas imutáveis dos corpos orgânicos e inorgânicos e das forças da natureza, que os fenômenos copiam conforme o princípio da razão. Diferentemente dos fenômenos, elas sempre são, nunca vêm a ser. Representando cada fixo e definido grau de objetivação da vontade, enquanto coisa em si, logo alheia à pluralidade, estes graus se relacionam às coisas particulares como seus protótipos ou formas eternas. (MRV, III, 30-32).

Enquanto o conhecimento em geral é apenas um meio para a conservação do indivíduo ou da espécie, a serviço da vontade, a transição para o conhecimento das

ideias é uma exceção, pois liberta-se dela. Exige uma mudança prévia no sujeito, que, na medida em que concebe as idéias, não é mais indivíduo, e sim puro sujeito do conhecimento, destituído da vontade, concebendo em fixa contemplação o objeto, sem conexão com outros. Devotado inteiramente à intuição, o espírito se perde no objeto, permanecendo como seu espelho. Na ideia, sujeito e objeto estão em pleno equilíbrio: o sujeito livre da vontade, o objeto do princípio da razão (MRV, III, §34).

Portanto, o conhecimento das ideias é a apreensão intuitiva da essência dos objetos. A intuição é fundamental; dela derivam a reflexão e os conceitos. Compete à filosofia transformar o conhecimento intuitivo em saber abstrato e inteligível; contudo, mais do que dedução, ela é intuição, nisso se aparentando à arte. A arte, obra do gênio, é justamente o conhecimento intuitivo das ideias: a contemplação estética é uma representação intuitiva pura, que vê o mundo do ponto de vista da eternidade. Trata-se de uma contemplação desinteressada, pela qual o sujeito atinge uma libertação metafísica, ao elevar-se ao estado de puro sujeito do conhecimento (MRV, III, §36). Só o gênio é capaz de um esquecimento completo de sua própria pessoa e de suas relações, constituindo sua essência a capacidade para a pura contemplação; a genialidade é a objetividade mais perfeita (MVR, IV, 37).34 Contudo, como veremos a

seguir, a condição mais elevada à qual pode aceder o homem não é a genialidade, mas a santidade, que reside na auto-negação da vontade.

No documento A vontade livre em Nietzsche (páginas 92-95)

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